Entidades envolvidas no caso João Alberto criticam acordo com Carrefour e querem que indenização vá para fundos públicos

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões firmado entre a Educafro e o Carrefour é alvo de críticas de advogados e do movimento negro, que denunciam a tentativa da empresa de excluir a própria responsabilidade pela morte

João Alberto foi espancado e asfixiado por seguranças de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre | Foto: Reprodução vídeo

O assassinato por espancamento e asfixia de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, homem negro conhecido como Beto Freitas, ocorrido em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, dentro de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre (RS) pelos próprios seguranças da empresa Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva (que também era policial militar), provocou uma onda de protestos no final do último ano. 

A revolta dos movimentos negros voltou a tona nesta semana com um anúncio das entidades negras e de Defesa dos Direitos Humanos – a Soeuafrobrasileira (Sociedade de Economias Unificadas Afro Beneficência Brasileira) e o Coade (Coletivo de Advogados para a Democracia) de que irão recorrer a uma nova ação na Justiça para anular cláusulas do acordo do Carrefour firmado com a Educafro e o Centro de Direitos Humanos Santo Dias. O comunicado foi dado durante coletiva de imprensa realizada nesta quinta-feira (23/9).

O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) no valor de R$ 115 milhões foi fechado no final de junho e, segundo as entidades e advogados, ignorou a família da vítima e violou a Lei da Ação Civil Pública que deu origem ao acordo. Eles dizem que os valores do TAC se destinam a entidades privadas e não a fundos públicos, como estabelece o artigo 13º da Lei de Ação Civil Pública (ACP). 

Segundo o paragrafo 2º da referida lei, havendo acordo ou condenação com fundamento em dano causado por ato de discriminação étnica, a prestação em dinheiro reverterá diretamente ao fundo de que trata sobre a questão e será utilizada para “ações de promoção da igualdade étnica, conforme definição do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, na hipótese de extensão nacional, ou dos Conselhos de Promoção de Igualdade Racial estaduais ou locais, nas hipóteses de danos com extensão regional ou local, respectivamente”.  

O advogado Dojival Vieira do Coletivo Cidadania, Ação Antirracista e Direitos Humanos, uma das organizações criticas ao TAC, explica que o acordo exclui a responsabilidade do Carrefour pela morte de Beto Freitas, o que retira o caráter de reparação e permite que o dinheiro seja deduzido no Imposto de Renda da empresa. “Se trata de uma aberração, quando a empresa se isenta da responsabilidade ela transforma a reparação em uma doação, eles estão fazendo marketing. Ao final, serão os contribuintes brasileiros que vão pagar pelo resultado desse ato bárbaro sobre o qual o Carrefour tem responsabilidade direta e objetiva, de acordo com a lei civil brasileira?”

Momento em que seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar da Silva agridem João Alberto | Foto: Reprodução Vídeo

O advogado também aponta que o caso aconteceu em Porto Alegre e que dos R$ 68 milhões destinados a bolsas de estudo, somente 30% vão para a capital do Rio Grande do Sul. “Quem é que vai definir para onde vão essas bolsas de estudo? Bolsas que serão destinadas a entidades privadas.”

Ele explica que também serão destinados R$ 2 milhões a comunidades quilombolas, no entanto sem especificações de quais. “Em Porto Alegre, onde o caso aconteceu, existem 11 comunidades quilombolas que não foram ouvidas e não vão receber um centavo. A lógica da gestão desse dinheiro é a lógica privada, por isso que o objetivo da Lei da ACP é a garantia dos direitos difusos e coletivos violados. Tem que ser público porque os fundos públicos, a partir do acesso a esses recursos ,abrem editais e as entidades disputam esses recursos de forma republicana.”

O advogado Onir de Araújo, que também representou a viúva de Beto Freitas, Milena Borges Alves, afirmou que serão tomadas medidas na Justiça para anular cláusulas do TAC. “Considerando a tragédia familiar, no mínimo nós entendemos que tem que se seguir a legalidade e o que o movimento social negro conquistou nos últimos anos, vamos suscitar as medidas cabíveis junto ao poder judiciário. É importante frisar que aqui no RS tem um conselho da comunidade negra e no nosso entendimento esse valor deveria ir para esse conselho estadual, para que as entidades desse conselho determinem a utilização desse fundo.”

Já o advogado André Luiz Moreira observa que uma parte do valor está sendo distribuído para o próprio Carrefour fazer treinamento com os seus funcionários. “Estamos falando de uma multinacional bilionária, que vai definir como vai gastar para algo que deveria ser uma indenização moral. Sair sem o reconhecimento do racismo institucional e apresentar aos seus acionistas como ação social é uma violência, é um disparate,” disse na coletiva de imprensa. 

Claudio Latorraca, do Coletivo Cidadania, Ação Antirracista e Direitos Humanos, questionou durante a coletiva quem são as pessoas que estão trabalhando como seguranças nos mercados. “A quem eles servem?”, indagou.

Sobre o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)

Firmado com a participação dos Ministérios Públicos gaúcho e da União, Defensorias Públicas da União e do Rio Grande do Sul e Ministério Público Federal do Trabalho, além das entidades Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescentes e Carentes) e Centro Santos Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo, o TAC teve a homologação do juiz João Ricardo dos Santos Costa da 16ª Vara Cível de Porto Alegre. Nele ações de combate ao racismo estão firmadas e deverão ser investidas em um período de de três anos, contando a partir de junho de 2021, entre elas o treinamento dos próprios funcionários da rede.

Entre algumas medidas colocadas está o gasto do valor de R$ 68 milhões com um plano antirracista no qual incluem bolsas de estudo de gradução e pós-graduação para alunos negros em universidades públicas e privadas. Projetos de inclusão social e empreendedorismo negro receberão R$ 8 milhões. Editais a serem definidos pelas instituições de justiça e entidades receberão R$ 7,5 milhões. 

Outros R$ 6 milhões vão para bolsas para cursos de idiomas, inovação e tecnologia e R$ 8 milhões para projetos de inclusão social e empreendedorismo negro. Cerca de R$ 4 milhões serão encaminhados a medidas de treinamentos visando a prevenção de práticas discriminatórias, com fiscalização, bem como políticas de combate à violência e à discriminação racial. 

Outros R$ 2 milhões devem contribuir com a elaboração de projetos de iniciativa museológica ou de centro de interpretação destinados à reflexão sobre o processo de escravização e do tráfico transatlântico de pessoas africanas escravizadas na região do Cais do Valongo, localizado na zona portuária do Rio de Janeiro. No mesmo valor o TAC determina a contratação de uma empresa privada de auditoria externa independente para verificação anual do cumprimento do termo.

A realização de campanhas educativas de combate ao racismo, projetos sociais com foco no combate ao racismo, vão receber R$ 6,5 milhões. Um programa específico e exclusivo de estágio e um de trainee para pessoas negras no próprio Carrefour receberá R$ 4 milhões. O Carrefour se compromete a contratar, pelo menos, o total de 30 mil colaboradores negros com o valor de R$ 5 milhões. 

Responsabilização civil e criminal

Nove familiares de João Alberto finalizaram acordos extrajudiciais com o Carrefour por danos morais e materiais no final do mês de maio. Em dezembro do último ano, seis pessoas foram denunciadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) pela morte de João Alberto Siveira Freitas. As acusações são de homicídio doloso, com os agravantes de motivo torpe, meio cruel e “dolo eventual”, ou seja, sabiam que corriam o risco de matar João com suas ações. 

Conforme relatou a Ponte, se condenados, eles podem pegar até 30 anos de prisão. Eles já haviam sido indiciados anteriormente pela Polícia Civil. Atualmente dois estão no sistema prisional, uma pessoa está em prisão domiciliar e três estão em liberdade.

Outro lado

Em uma nota publicada em seu site, a Educafro apontou em julho que “após esse TAC as lutas contra o racismo estrutural irão ganhar incríveis e positivas dimensões e ferramentas, empoderando as entidades da sociedade e fazendo as empresas se anteciparem e investirem na formação Antirracista de de todos que compõem seus quadros. Desde do mais alto escalão até os servidores na ponta.”

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A entidade ainda afirma que “a EDUCAFRO e o Centro de Direitos Humanos Santo Dias, apenas emprestaram seus nomes. Quem olha a inicial da ação civil pública vai encontrar lá os 38 pontos debatidos e enviados pela FNA para compor, inicialmente a ação civil pública e, posteriormente o TAC (termo de ajuste e conduta), com a excelente participação da Defensoria Estadual, do MPF, MP-RS, MPT, DPU. A história um dias, através de um livro escrito por alguém inspirado, irá contar os bastidores dessa vitória inovadora!.”

A reportagem procurou a Educafro, para falar sobre as críticas ao TAC apontadas pelas entidades negras e coletivos de advogados e está aberta para respostas.

O presidente do Centro de Direitos Humanos Santo Dias, Luciano Caparroz Pereira Dos Santos disse que não há violação alguma à Lei da Ação Civil Publica. “Acordos que preveem outra destinação que não o Fundo de Direitos Difusos acontecem diariamente no foro. O acordo do caso Brumadinho também não remete recursos para o FDD, por exemplo, o que a lei diz é para quem o juiz deve destinar o valor em caso de sentença. Mas se a solução for por acordo compete às partes e ao MP decidirem para onde direcionar as verbas.”

Ele lembra também que a Justiça analisou e homologou o acordo, “que é totalmente lícito”, diz. “Não cabe mais recurso dessa decisão. A solução encontrada evitou que os valores fossem parar no Fundo Nacional de Direitos Difusos onde não haveria garantia alguma de que estes recursos seriam utilizados para o combate ao racismo estrutural, ao contrário como podemos constatar o governo federal não tem esta pauta. As entidades Educafro e Centro Santo Dias não receberão nenhum valor proveniente desse acordo. Os valores pagos em virtude de processo judicial não podem ser deduzidos do Imposto de Renda. Essa afirmação é falsa.”

Com relação a responsabilização do Carrefou, Luciano diz que a culpa é atribuída numa sentença condenatória. “Num acordo as partes decidem solucionar a lide sem que haja reconhecimento de responsabilidade. Isso é algo muito elementar no mundo jurídico. Mesmo assim, exigimos que o Carrefour reconhecesse a existência do racismo estrutural e admitisse a necessidade de combatê-lo, subscrevendo um Plano Antirracista que entre outras conquistas contém a maior indenização da história da luta por igualdade racial no Brasil, com reconhecimento publico do próprio CEO da empresa. Uma vitória histórica da qual nos orgulhamos muito.”

O advogado comemora o acordo. “Abrimos um precedente que ajudará muito a luta antirracista no Brasil. A responsabilidade criminal esta sendo devidamente apurada nos processos contra os que praticaram, colaboraram ou foram omissos no ato”, afirma. “Essas observações [das entidades] são intempestivas. A sentença, aliás, sequer admite mais recurso, pois já transitou em julgado. Teria sido bom que essas sugestões houvessem sido apresentadas nas inúmeras oportunidades abertas para discussão coletiva. Nós mesmos passamos a participar após sermos convidados juntamente com várias outras entidades do movimento negro para debater o tema com o Ministério Público e com a defensoria. Essas propostas, apresentadas tardiamente, sequer terão espaço para serem consideradas de modo efetivo.”

Em nota o Grupo Carrefour Brasil afirmou que “segue comprometido com a luta antirracista que se materializa no maior investimento privado já feito para a redução da desigualdade racial no Brasil. São valores que superam R$ 115 milhões e serão majoritariamente investidos em educação e geração de renda para a população negra.”

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