‘Enxugando gelo’: polícia faz nova ação na ‘Cracolandia’ de SP

Novo desdobramento da Operação Caronte não teria cumprido mandados de prisão e dividiu a Rua Helvétia entre o “fluxo” e o trânsito nesta terça (14); especialista avalia que ação atrapalha atendimento de saúde e assistência social

Guardas civis metropolitanos revistam pessoas na região da ‘Cracolândia’, no centro de SP | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

Em mais uma vitória para as drogas na longa “Guerra às Drogas”, a Polícia Civil de São Paulo deflagrou nesta terça-feira (14/6) a 11ª etapa da 5ª fase da Operação Caronte, série de incursões que tenta acabar com o tráfico de entorpecentes na cena aberta de venda e consumo de substâncias no centro da capital paulista conhecida pejorativamente como “Cracolândia”. Com usuários e pessoas em situação de rua instalados na Rua Helvétia, entre a Avenida São João e a Rua Barão de Campinas, a nova fase da Caronte (que empresta o nome do barqueiro da mitologia grega que levava os mortos através do Rio Estige rumo ao submundo) seguiu o roteiro repetido das últimas semanas: policiais e guardas civis metropolitanos fecham a rua, fazem uma revista minuciosa em todas as pessoas que estão ali no momento, com certa truculência calculada, recolhem alguma poeira de crack, uns trocados, fazem imagens para as redes de televisão e se dão por satisfeitos — às vezes, com “sorte” (sorte de quem?), fazem alguma prisão para “averiguação” (ou seja, ilegal).

Um comunicado emitido pela Polícia Civil no início da tarde desta terça dizia que a ação visava combater o tráfico de drogas na área e também cumprir 30 mandados de prisão emitidos em maio, quando uma operação similar, também no âmbito da Caronte, expulsou as pessoas em situação de rua que ocupavam a Praça Princesa Isabel. Em entrevista à Ponte, Severino Vasconcelos, delegado do 77 DP (Santa Cecília), negou que o objetivo da ação dessa terça fosse cumprir os mandados: “hoje foi mais essa ação de coibirmos o tráfico e o uso explícito da droga. Desses 30, não era o objetivo prendermos eles aqui. Essa ação é uma ação pontual. Quando nós entendermos que há ocorrência do tráfico explícito, filmarmos, acontecerá isso”.

No fim das contas, a nova operação se limitou a “liberar para o trânsito” parte da Rua Helvétia. “Eles podem ficar aqui, desde que não atrapalhem o trânsito e sem consumir drogas”, explicou Vasconcelos. Diferente do informado pelo delegado, a Folha de S. Paulo relata que uma mulher com mandado de prisão em aberto foi detida na região, além de outras seis pessoas, quatro delas suspeitas de tráfico de drogas. A Ponte testemunhou três pessoas algemadas que foram levadas para trás de uma tenda do Serviço Integrado de Acolhida Terapêutica (Siat). Questionada, a Secretaria de Segurança Pública comandada pelo governador Rodrigo Garcia (PSDB) não respondeu sobre as prisões até a publicação desta reportagem.

Desde que o chamado “fluxo”, grupo de pessoas que forma a “Cracolândia”, se mudou para a Princesa Isabel no fim de abril deste ano após o início da Caronte, a Polícia Civil e a Guarda Civil Metropolitana (com um apoio menos destacado da Polícia Militar) segue com essas operações — é a quarta delas no período de um mês.

Na avaliação do advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos humanos, segurança pública e presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, as ações policiais que acontecem no chamado “fluxo”, somadas às internações involuntárias que aconteceram nas últimas semanas com dependentes químicos, são “operações de guerra contra pobres e doentes”. “O anúncio recente da prefeitura de 22 internações involuntárias de dependentes de drogas e de outros 6 usuários encaminhados para comunidades terapêuticas demonstram que as operações e ações da prefeitura e do governo do estado tiveram resultados pífios desde abril”, critica.

“A polícia passa o dia tocando os dependentes como se estivessem tocando bois. Todas as vezes que isso ocorreu nunca teve resultados positivos, pelo contrário, o problema foi ampliado, além da disseminação de várias ‘Cracolândias’ na região central de São Paulo”, prossegue.

O advogado também considera que a dispersão do “fluxo” tem atrapalhado até mesmo o trabalho dos assistentes sociais e dos agentes de saúde. “A constância da ação repressiva da polícia torna impossível os atendimentos e o estabelecimento de vínculos entre os agentes públicos e os usuários de drogas. Não se resolve o problema sem uma grande oferta de programas sociais, de saúde, moradia, trabalho, educação e geração de renda”, aponta.

O professor Acácio Augusto, do Departamento de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador do Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento (LASinTec/EPPEN-UNIFESP) lembra que, nos últimos 30 anos, diferentes gestões lidaram com essa questão com ações que não apresentaram soluções e usaram o mesmo método de dispersão. “A cena de uso vai migrando para outras regiões do centro e daqui a pouco vamos ver outras operações como essa. É enxugar gelo para dizer que a polícia está fazendo alguma coisa e coincidentemente, ou não, em ano eleitoral”, aponta.

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“O que talvez tenha piorado a situação é que nós tivemos o crescimento absurdo da população de rua nos últimos dois anos, combinado a cenário de crise econômica, a degradação social e a pandemia. Ficou uma coisa incontrolável”, destaca Acácio. “Não se pensa nessa situação de maneira prática. Não é indo lá prendendo meia dúzia e recolhendo alguns quilos de droga que vai resolver. É preciso que haja uma ação que demanda longo prazo, investimento e o envolvimento de outros agentes do poder público, principalmente da saúde e da moradia”, avalia o professor.

Pessoas algemadas são conduzidas após nova ação da Operação Caronte em SP | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Guarda civil metropolitano revista uma pessoa na Rua Helvétia, no centro da capital paulista, em mais uma fase da “Operação Caronte” | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Pertences de pessoas em situação de rua abandonados na Rua Helvétia | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Pessoas em situação de rua esperam o desfecho de nova fase da Operação Caronte | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Homem em situação de rua com crise de asma é atendido por agentes de saúde na tarde desta terça (14) na capital paulista | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo
Guardas civis metropolitanos revistam homem no começo da noite desta terça (14) na Rua Helvétia, em São Paulo | Foto: Daniel Arroyo / Ponte Jornalismo

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