Era para caber 6, mas tem 26: o retrato do sistema prisional do Ceará

    Relatório aponta maus tratos contra detentos, superlotação e diferença de tratamento entre presos comuns e ‘amigos da polícia’; informações foram coletadas em visitas às penitenciárias de Fortaleza, no Ceará

    Presos empilhados dentro da cela | Foto: Reprodução Relatório MNPCT

    Em uma cama de concreto, sem colchão na maioria das vezes, tem dois, até três corpos. Pessoas são tratados como coisa, embora estejam vivos. Ao menos respiram. Uma cela de aproximadamente 15 metros quadrados, onde deveriam estar 6 detentos, tem de 20 até 27 pessoas se amontoam para passar seus dias. A ausência de condições básicas de higiene somada ao calor de mais de 30°C de Fortaleza deixa o cheiro das galerias do presídio beirando o insuportável. Na maior parte das celas não há acesso à água potável. Esse é um pequeno retrato do sistema prisional do Ceará que aparece no relatório do MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura), feito a partir de inspeções realizadas entre 25 de fevereiro e 1º de março de 2019.

    O Ceará passou a ter prioridade depois da série de ataques ocorridos no estado em janeiro deste ano, motivados pela mudança de comando da Secretaria de Administração Penitenciária com a nomeação de Mauro Albuquerque. O trabalho do mecanismo enfrentou diversos obstáculos para realizar o trabalho, desde dificuldade de acesso a documentos até tentativa de impedimento por parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.

    Três unidades prisionais localizadas em Fortaleza foram objetos de inspeção: CDP (Centro de Detenção Provisória), a Casa de Privação Provisória de Liberdade Professor José Jucá Neto (CPPL II) e o Centro de Triagem e Observação Criminológica (CETOC).

    As evidências de maus tratos sistemáticos e a superlotação são os dois pontos bastante graves apurados pelas vistas do mecanismo. De maneira geral, a avaliação é de que houve falha de planejamento nas ações do início do ano, incluindo as transferências que colocaram 4 mil detentos, que estavam cumprindo pena, no interior em unidades da capital.

    A crise foi construída pela falta de planejamento. Aí você traz um grupo de intervenção, a FTIP [Força-Tarefa de Intervenção Penitenciária], eles têm um plano para fazer a intervenção, organizar a situação e ir embora. Agora parece que a FTIP vai ficar no estado. O que parece é que foi uma ação pouco planejada. Já havia em curso uma situação delicada nas cadeias públicas e o que vemos é que não houve um planejamento mínimo, o que criou uma superlotação nas cadeias da capital e o agravamento dessas violações todas, que não são novidades, mas se agravaram”, avalia Daniel Melo, perito e integrante do MNPCT.

    Lesões nas mãos: evidência de sistematização de agressões | Foto: Reprodução Relatório MNPCT

    As violações comprovadas pelo relatório foram denunciadas em reportagens da Ponte antes mesmo do início das inspeções. Em 18 de janeiro, a Ponte trouxe relatos do interior do CPPL, uma das unidades vistoriadas pelo mecanismo, que denunciavam agressões e descarte de comida e colchões. Dois dias depois, uma nova reportagem mostrava que, quando Mauro Albuquerque comandava o sistema prisional do Rio Grande do Norte, ele impôs uma política baseada na tortura e que, de acordo com denúncias de familiares de presos e entidades de defesa dos direitos humanos, estava aplicando a mesma metodologia no Ceará.

    Nas inspeções, o MNPCT identificou ferimentos que depreendem de uma possível sistematização de agressão, o que seria análogo à tortura. “Há algo deliberado acontecendo. No relatório, você consegue localizar uma série de fotos de mãos com aparentes lesões e fraturas. Nós tivemos acesso a um documento de maneira não oficial de 32 laudos que apontam para um conjunto de lesões sistemáticas nesse sentido. São dedos com lesões, fraturas na altura das falanges, algumas pessoas mostraram para a gente lesões na cabeça, na região de cima, que para nós está muito associado a posição do chamado ‘procedimento’ que os presos são colocados [sentados, enfileirados, encaixados um ao outro e com as mãos na cabeça]. Não sou médico e não fiz o laudo, mas é possível relacionar onde houve as agressões e a forma com que eles ficam sentados. Não parecem que são lesões por enfrentamento como a secretaria quer fazer crer que são”, explica Daniel Melo.

    Para Daniel Melo, que participou das inspeções de fevereiro, a situação basicamente se mantém. “A gente usa o teórico Edward Hall para pensar a estrutura arquitetônica de presídios. Ele vai dizer um pouco da ocupação do espaço físico pelo ser humano. Basicamente, ali a gente tem um lugar que seria ideal para 6 pessoas, pela quantidade de camas, pelo espaço da cela, que é em torno de 15 metros quadrados. Só que estão sendo colocadas de 20 a 27 pessoas. É isso que pudemos ver e que as imagens que constam no relatório provam. Tem gente que dorme perto do vaso sanitário, pessoas dividem a cama, que eles chamam de ‘comarca’. Nas unidades que a gente visitou era a regra geral”, pontuou.

    A superlotação não agrava apenas o bem estar do detento, mas afeta outros serviços, como por exemplo, o acesso ao sistema de saúde. “Nesse processo todo das transferências, procedimentos que determinado preso estava passando, por exemplo, com acompanhando no interior, foram interrompidos. Cirurgia que não aconteceu, tratamento de HIV. A gente tem casos emblemáticos como uma pessoa que estava hipoglicêmica por falta de alimentação e que precisava da suplementação durante a noite para que não morresse e o caso de um senhor com câncer em um estado lastimável e que, agora, acabou conseguindo ir para a domiciliar. A gente tem uma carência de profissionais, porque a demanda é alta”, avalia Daniel Melo.

    Celas onde ficam ex-policiais ou parentes de policiais | Foto: Reprodução Relatório MNPCT

    No CTOC, uma das unidades inspecionadas conhecida na ditadura como “selva de pedra”, há uma parte que é uma espécie de centro de triagem conhecido como “selvinha”, o Mecanismo também constatou uma diferença grande nas celas de presos comuns e de presos “amigos de policiais” (ex-policiais ou parentes de agentes das forças de segurança).

    Há nesse local presos qualificados. Pessoas que cometeram crimes de grande repercussão, pessoas LGBT, por exemplo, pessoas que estão enquadradas na Maria da Penha. Nesse espaço, na ‘selvinha’, vimos uma rua, que é como eles chamam as galerias, onde tinham ex-policiais e filhos de policiais, que não poderiam ter contato com o restante massa carcerária por risco à vida mesmo. Lá encontramos uma situação que deveria ser regra, deveria ser o padrão para todos, que não é regalia, benefício. É o mínimo. Deveria ser o padrão estabelecido tanto pela LEP [Lei de Execuções Penais] como para que se seguisse padrões internacionais: um local bem mais limpo, com acesso a livro, água potável, radinho de pilha, remédios. Isso deveria ser o padrão. Eram acho que 8 celas que estavam nessa condição”, relatou. “É importante dizer que a gente defende que todos tenham direito a isso, não que esses percam os direitos. E também é uma prova de que uma outra forma, ainda que na dinâmica do cárcere, é possível”.

    Ainda de acordo com Daniel, a distribuição de alimentos também apresenta falhas. Oficialmente se diz que são 4 refeições por dia, mas as inspeções verificaram que os detentos recebem apenas 3 e um detalhe: do jantar, serviço por volta das 18h, até a próxima refeição, que é o café da manhã, há um jejum de mais de 12 horas. “A gente não chegou a fazer nenhum tipo de prova da comida, mas a gente é orientado, por exemplo, pelo Conselho de Nutrição e que só de você olhar para o prato, pela cor dá para saber que não é rico em nutrientes, não é diversificado. Quanto mais cor, mais variedade, mais rico é ele. Se você quiser comer apenas batata frita na sua casa, problema é seu. A questão é que no cárcere não há essa opção”, afirma. “A família tinha um papel importante de complementar a alimentação, que é chamado aqui de lote [jumbo em SP], e isso também não estava sendo distribuído. E o detalhe é que isso nem deveria ser obrigação da família”, ponderou Daniel.

    Na quarta-feira (10/4), o Copen (Conselho Penitenciário) emitiu uma nota afirmando que os resultados das inspeções mostram claras violações aos direitos humanos. “Diante da contundência das conclusões do relatório expedido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, o Conselho Penitenciário do Estado do Ceará vem a público para repudiar veementemente as práticas adotadas pela atual Gestão Penitenciária do Estado do Ceará, identificadas como indiciárias de violações de direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade no Estado do Ceará, bem como alertar a Sociedade Civil para a difícil situação em que se encontra o sistema penitenciário do Estado, fragilizado pela insuficiência de vagas, precariedade da estrutura dos estabelecimentos prisionais, o que redunda no descumprimento reiterado das garantias fundamentais e dos princípios elementares de direitos humanos. Os dados trazidos pelo relatório do Mecanismo Nacional constituem em fragrante afronta ao Estado de Direito, desafiando, assim, uma enérgica reação dos órgãos competentes para a rigorosa apuração da responsabilidade administrativa, e criminal, dos agentes públicos envolvidos”, diz trecho da nota.

    Outro lado

    Em nota*, a Secretaria de Administração Penitenciária do Ceará informa que todas as medidas tomadas respeitam o Código Penal e a Lei de Execuções Penais e que respeita as prerrogativas das instituições como OAB, Ministério Público e Defensoria Pública, bem como o próprio trabalho do MNPCT, “garantido o acesso nas unidades prisionais do Ceará, como pode ser conferido nos relatórios de visitação de cada unidade”. Além disso, esclarece que o fechamento de 98 cadeias e respectiva transferência para outras unidades garantiu segurança ao sistema, desde os presos como os agentes penitenciários. “A reestruturação e a presença do Estado tem por objetivo estabelecer o controle dentro da lei, o que ocasionou, por vezes, reações dos presos, como amotinamento e agressões contra servidores públicos. Os presos feridos nesse tipo de confronto foram medicados, autuados por um delegado de polícia e passaram por exame de corpo e delito, que não comprovam ferimentos com marcas ou fraturas com indícios de prática de tortura. Tudo registrado pelas unidades com acompanhamento de autoridades de outras instituições”, diz outro trecho da nota.

    A pasta também destaca que tem feito esforços para reduzir o número de presos provisórios fazendo parcerias com a Defensoria Pública que, em dois meses, analisou mais de 7 mil processos. Em outra parte da posição oficial, a SAP rebateu a informação contida no relatório de que as refeições estariam sendo insuficientes. “Os presos do sistema carcerário cearense recebem quatro refeições diárias. Todas monitoradas e acompanhadas por equipe de nutricionistas, que garantem a quantidade necessária e saudável de proteínas, vitaminas, carboidratos e outros nutrientes exigidos”, apontou, além de reforçar que todos recebem os kits básicos de higiene.

    *Reportagem atualizada no dia 17/4 às 8h45

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