Erguida na Vila Dionísia por conta da pandemia, favela será despejada a pedido de R.R. Soares

    Área da Igreja da Graça de Deus foi ocupada por cerca de 500 pessoas, muitas com necessidades especiais; defesa da igreja alega que “situação epidemiológica não pode ser considerada justificativa plausível” para manutenção dos moradores

    Favela Penha Brasil, na zona norte de SP, é abrigo para cerca de 200 famílias sem-teto | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Erguida em 3 de dezembro de 2020, após boa parte de seus atuais moradores ficarem desempregados devido à pandemia da Covid-19 e o corte de auxílios pagos pelos governo federal, a favela Penha Brasil, na Vila Dionísia, zona norte de São Paulo, está com os dias contados. Ao menos no que depender dos donos do terreno, uma igreja com atuação no Brasil e em outros cinco países, e da justiça.

    A área de aproximadamente 12 mil m², de acordo com os ocupantes, que antes estava abandonada e tomada pelo mato, como comprovam fotos feitas do início da ocupação, agora serve de moradia para 500 sem-tetos. O terreno está em nome da Igreja Internacional da Graça de Deus, denominação comandada por Romildo Ribeiro Soares, mais conhecido por seus seguidores como R.R. Soares, dono de uma fortuna estimada em milhões de reais, também proprietário de emissora de TV, rádio e editora.

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    A alegação dos advogados do religioso para remoção dos pobres, incluindo adolescentes autistas, que necessitam atendimento especial, é de que a ocupação foi feita “sem permissão e de forma criminosa”. O advogado de Soares, Marco Antonio Cecílio Filho, afirmou no processo que a “situação epidemiológica não pode ser considerada justificativa plausível para que seus ocupantes venham a permanecer no imóvel, até porque os próprios vizinhos do terreno e suas famílias vem sofrendo as consequências”.

    A igreja se respalda nas reclamações de síndicos de condomínios vizinhos que citam num documento crianças vendendo balas, barulho, lixo deixado em calçadas e também pessoas transitando pelas ruas sem máscaras, algo comum em qualquer lugar da cidade, como forma de agilizar o despejo, autorizado pela justiça desde janeiro.

    A Ponte esteve sexta-feira (16/04) na comunidade, localizada entre a rua Afonso Lopes Vieira e a Avenida General Penha Brasil, na Vila Dionísia, região da Vila Nova Cachoeirinha. Lá, estão homens, mulheres, idosos, adolescentes e crianças vindos de bairros próximos como Peri Alto, Limão e Barra Funda, na zona oeste. Entre os inquilinos de R.R. Soares estão alguns autistas e esquizofrênicos, que estão à mercê do apoio do poder público e reclamam do abandono em tempos de pandemia.

    A organização da ocupação é feita pela Associação Vila dos Heróis e Instituto Sidney Fernandes.

    Barracos de madeira, chão de terra batida e muitas histórias tristes. Os dramas que refletem favelas de SP | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Por ironia do destino, a maior parte das cerca de 200 famílias que ali habitam congregam das doutrinas evangélicas e afirmam que não sabiam que o terreno vazio era de propriedade de uma igreja. “A gente achou que era uma área municipal que pudesse atender as famílias”, explicou a auxiliar de embalagem Ana Paula da Silva, 46, uma das lideranças do local. Segundo ela, o espaço já foi garagem de ônibus e campo de futebol, até ser tomado pelo mato.

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    As pessoas que estão ali em meio ao sol, barracos de madeira e chão de terra batida contam que o lugar era só mato e breu, ponto apropriado para esconder criminosos que rondam a região e roubam nos pontos de ônibus e se embrenham em meio ao capim. Com a chegada dos novos moradores o cenário mudou, já que houve limpeza da área, energia elétrica —através de gatos— e movimento de pessoas.

    Karina de Alcantara da Silveira, 41, uma das moradoras da ocupação, conta ter chegado ali após sofrer uma ação de despejo ao não conseguir mais pagar o aluguel da casa em que vivia com o filho Gabriel, 16, um adolescente autista. Durante toda conversa com a Ponte, mãe e filho ficaram de mãos dadas, com o menino segurando um objeto.

    “Até março de 2019 eu recebia o benefício de bolsa aluguel, o que me ajudava muito. Sem trabalho, veio a pandemia e não consegui mais pagar o aluguel. Estou com ordem de despejo e vim para cá. Não tenho condições de pagar aluguel. Mesmo com um filho especial eles me despejaram”.

    Gabriel e Karina são inseparáveis. Autista, ele sempre carrega um pacote, feito com três caixas de leite envoltas em fita adesiva | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Karina deixou de trabalhar para cuidar do filho, já que os locais onde o menino podia interagir tiveram as atividades suspensas por conta da propagação da Covid-19. Diante do quadro, ela disse que vivem do Loas (Lei Orgânica da Assistência Social) que garante um salário mínimo mensal a Gabriel, além de doações. “Morávamos no Parque Tietê [perto da ocupação] e pagava R$ 650 por mês por uma casa de três cômodos. Não consigo mais pagar. Eu sou evangélica. Não é certo estar aqui porque tem dono, mas a gente precisa, não tenho opção”.

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    De mãos dadas com a mãe e em silêncio absoluto, Gabriel segurava com a outra mão uma embalagem envolta em fita adesiva azul, a qual não largou em nenhum momento. “São três litros de leite. É uma forma de segurança. Ele se sente seguro com coisas mais pesadas. Ele coloca feijão nos carrinhos para deixá-los pesados”. O ritual é refeito toda vez que o leite começa a perder textura e as caixas passam a amolecer. Karina contou que toma o leite mesmo após o mesmo passar semanas nas mãos do filho, uma vez que Gabriel se alimenta apenas de leite em pó, e compra outras caixas para refazer o brinquedo logo depois.

    A reportagem seguiu poucos passos até se deparar com mais um drama familiar que está presente no cotidiano da comunidade Penha Brasil. Agora, é a vez da ajudante geral desempregada Cleusa Maria de Tolledo, 46, contar sua vida. Ela faz questão de explicar que a escrita de seu nome com duas letras “L” está associada ao seu passado, por ser filha de angolano. A explicação da grafia de seu nome é o único momento de descontração. A partir dali, a mulher respira fundo e passa a contar seu dia a dia ao lado da filha Karina Maria de Tolledo, 19. Karina, assim como o vizinho Gabriel, também é autista e foi diagnosticada com esquizofrenia.

    “Ela tem ataques, por vezes precisa ficar internada. Não posso trabalhar. Vou para igreja para ter forças para cuidar da minha filha”, explicou Cleusa. Na porta de sua casa está afixada uma placa que revela a forma com que busca se manter. “Conserto roupa para ganhar um dinheiro”.

    Cleusa e Karina Tolledo. A mulher não consegue trabalho já que necessita cuidar da filha em tempo integral | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Mesmo no outono, o sol imita o do verão e várias pessoas pedem para conversar com a reportagem à sombra. A sombra também é desfrutada pelas crianças. Elas se reúnem em um barraco de madeira vazio que serve de escola improvisada. Priscila Karolina da Silva, 29, é a professora das muitas crianças da ocupação. Sensibilizada ao vê-las correndo de um lado para outro, em meio aos barracos de madeira e o chão de terra batida, Priscila resolveu usar um dos espaços vagos e montar uma escola. “Peguei alguns cadernos e trouxe para cá. Não tem o que fazer. Vão só brincar no barro?”

    Com duas filhas pequenas, a escolinha no local é um alívio para Camila da Silva, 23. Ela ocupa um dos barracos junto com o marido, que tem sua idade, e duas filhas de dois e três anos. Segundo Camila, a Prefeitura de São Paulo cortou sua bolsa aluguel há dois meses após ter sido despejada da ocupação Córrego do Bispo. “Uma injustiça, cortaram ser dar qualquer satisfação”, resumiu.

    Priscila Karolina da Silva é a professora das crianças da comunidade Penha Brasil | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Além da escola improvisada, a comunidade Penha Brasil ainda possui uma igreja para tentar confortar espiritualmente quem vive ali. “Eu vejo que a igreja tem a responsabilidade de suprir a necessidade do povo. Olhando por esse lado, ver o despejo por uma igreja que não tem fins lucrativos e vive do dízimo do povo, não é justo”, afirmou o pastor Idney da Glória, 37, líder da Igreja Evangélica Tenda do Encontro com Deus, localizada logo na entrada da comunidade.

    Reintegração de posse

    Mesmo com pouco tempo em pé, com alguns barracos de madeira ainda sendo construídos e com expectativa de receber mais pessoas, a comunidade Penha Brasil deve ir ao chão em breve. Ao menos no que depender da Igreja Internacional da Graça de Deus, proprietária do terreno avaliado em R$ 2,3 milhões.

    Em dezembro, no mesmo momento que o deputado federal David Soares (DEM) costurava com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) o perdão das dívidas milionárias contraídas pelas igrejas evangélicas, entre elas a denominação congregada por seu pai, os advogados da Graça de Deus ingressavam na 4ª Vara Cível do Foro Regional de Santana com o pedido de despejo de alguns fiéis evangélicos sem-teto. A entidade tem a posse do lugar desde 2015.

    “A maioria das pessoas chegou ao local por não ter condição de pagar aluguel após desempregos motivados pela pandemia ou após a gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) cortar a bolsa aluguel que alguns recebiam”, disse o músico Alexandro Fernandes da Silva, 42. Alexandro é o morador que tem seu nome vinculado ao processo judicial para a desocupação do terreno. Ele conta que ninguém da Igreja Internacional da Graça de Deus foi até o local, apenas um advogado da entidade religiosa.

    No entanto, em um encontro na sede da igreja em São Paulo que visava solucionar o problema, ouviu de um religioso de nome Hilton que o “o terreno é dos dizimistas”, ou seja, pessoas que pagam o dízimo para igreja.

    Uma igreja dentro do terreno da igreja. Pastor Idney da Glória ministra cultos na Tenda do Encontro com Deus | Foto: Paulo Eduardo Dias/Ponte

    Durante o processo, o advogado Marco Antonio Cecílio Filho, defensor dos interesses da denominação, também usou de uma informação trazida pela prefeitura para agilizar a remoção. Tal relato é de que no local existem pessoas que realmente precisam de moradia, mas outras que “buscam obter vantagem em cima da situação apresentada”.

    Autorizada pela justiça, após anuência do Ministério Público, a reintegração de posse só não ocorreu ainda porque a Polícia Militar solicitou mais tempo para agir. No início de janeiro, o tenente Everson de Morais, do 9° Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, alegou que era “necessário um maior planejamento e respeito às diretrizes de trabalho, que obedecem várias etapas a serem cumpridas”, o que forçou adiamento.

    Ao lado dos moradores está a advogada Karina Rodrigues de Andrade, 39. Ela atua na área criminal, mas foi procurada pelos moradores da favela Penha Brasil e não fugiu do convite para atuar pelos sem-tetos. “Era uma área desocupada e sem função social”, sustenta Karina.

    À Ponte, a advogada explicou que está agendada para a próxima segunda-feira (19/04) uma reunião em um batalhão da PM da região para tratar sobre a ação de despejo. Karina conta que a intenção de compra da área por parte dos moradores não foi aceita pela igreja, mas que tem outra proposta para fazer. “Vou pedir 90 dias de carência para tentar realocar as famílias. Fizemos até mesmo proposta de compra do terreno, mas não aceitaram”.

    Procurada, a defesa da entidade religiosa informou, por meio de mensagem pelo WhatsApp, que a “igreja não tem pronunciamento a fazer sobre o assunto”.

    Em nota, a prefeitura informou que a “Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social cadastrou as famílias que ocupam o local e orientou sobre a rede socioassistencial, acolhimento e cadastro para programas de transferência de renda”. Sobre a questão de Camila da Silva e a suspensão de seu auxílio, a gestão Bruno Covas alegou que a mulher “foi removida da Comunidade Córrego do Bispo, por conta de Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo em face da Municipalidade, referente à ocupação das áreas de risco alto e muito alto. Diante da remoção, a mesma foi cadastrada por Sehab e inserida no auxílio aluguel provisório por 12 meses e teve seu atendimento prorrogado por mais 12 meses, completando 24 meses de benefícios”.

    Em outro trecho, a prefeitura sustentou “em decorrência do agravamento da pandemia está estudando formas de atendimento às famílias cadastradas na área do Córrego do Bispo”.

    Por meio de nota, o Ministério Público informou que “as ações de reintegração de posse são acompanhadas pelas varas regionais, nesse caso mencionado pelo Fórum de Santana.”. Já o Tribunal de Justiça disse que um reunião marcada para esta segunda-feira (19/4) foi adiada para o dia 29 porque o promotor responsável não pode comparecer.

    Também procurada, a Polícia Militar não se pronunciou.

    ERRATA: Uma versão anterior deste texto informava que a área em disputa tinha 450 m². Na verdade a área é de 12 mil m². A informação foi corrigida às 11h30 do dia 19/4/2021

    ERRATA 2: O titulo da reportagem foi atualizado para refletir o pedido da Igreja Internacional pelo despejo das famílias. A informação foi modificada às 13h33 do dia 25/4/2021

    ATUALIZAÇÃO: Reportagem atualizada às 17h50 do dia 19/4/2021 para incluir posicionamentos do MP-SP e do TJ-SP

    Correções

    ERRATA: Uma versão anterior deste texto informava que a área em disputa tinha 450 m². Na verdade a área é de 12 mil m². A informação foi corrigida às 11h30 do dia 19/4/2021 ERRATA 2: O titulo da reportagem foi atualizado para refletir o pedido da Igreja Internacional pelo despejo das famílias. A informação foi modificada às 13h33 do dia 25/4/2021

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