Erica Malunguinho: mulher trans, deputada, educadora e artista plástica

    No Dia Nacional da Visibilidade Trans, a Ponte conversa com a parlamentar sobre o primeiro ano na Assembleia Legislativa de SP e as batalhas que tem travado

    Erica Malunguinho, eleita primeira mulher trans na Assembleia Legislativa de SP | Foto: Sergio Silva/Ponte Jornalismo

    Erica da Silva, mais conhecida como Erica Malunguinho, 38 anos, fez história. Nas eleições de 2018, ela se tornou a primeira mulher trans negra do mundo a se tornar parlamentar. Erica foi eleita deputada estadual na Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) com 54 mil votos. Natural de Recife, capital de Pernambuco, Malunguinho nasceu no Dia da Consciência Negra.

    Seu corpo carrega muitas lutas. Mulher, transexual, nordestina e negra. Antes de se tornar deputada estadual pelo Psol ela era conhecida por ser a criadora do Aparelha Luzia, quilombo urbano de luta e resistência negra e LGBT que fomenta produções artísticas e intelectuais.

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    As lutas de Malunguinho, que também é educadora e artista plástica, dentro da Alesp, vão além dos símbolos que ela carrega no corpo. No primeiro ano de mandato, ou “Mandata Quilombo” como ela mesma intitulou, a deputada olhou também para as lutas de pessoas em situação de rua e de cárcere, e para os trabalhadores prejudicados pela reforma da previdência.

    Neste Dia Nacional da Visibilidade Trans, Erica conversou com a Ponte para contar como tem sido ser deputada estadual em um espaço que ainda é majoritariamente branco, hétero e cisgênero, e as lutas diárias que a população trans enfrenta.

    Ponte – Como você avalia esse primeiro ano do seu mandato?

    Erica Malunguinho – Esse lugar da política institucional é uma construção, ainda mais que nós acabamos de adentrar na Alesp. O que a gente percebe é que colocamos e trouxemos debates importantes relacionados ao povo preto e às populações marginalizadas, como a população LGBT, à luta dos trabalhadores na questão da reforma da previdência e das privatizações, que são projetos constantes do governo do estado, porque tudo incide na população mais vulnerável, que é a população negra. Esse primeiro ano foi um ano para isso, um ano de compreender o funcionamento da máquina legislativa. Obviamente, também, conduzir ações importantes junto à população carcerária, à população de rua, à população LGBT. Visitas em presídios, acolhimento de famílias de violações de direitos humanos são ações que temos feito constantemente. Destinação de emendas parlamentares que estão relacionadas a essas lutas.

    Erica (à dir.) ao lado da mãe Abigail durante cortejo no dia da posse da Alesp | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Ponte – As suas bandeiras foram muito além da pauta trans…

    Erica Malunguinho – Eu acho muito triste quando tentam me enquadrar como uma deputada que fala apenas de luta LGBT e população negra. Isso é redutivo, é uma escolha muito consciente e estratégica pensando que são esses dois grupos, que são esses dois fundamentos, que são os mais vulneráveis. Então trabalhar e reivindicar sobre isso, sobre o fundamento racial e o fundamento LGBT, significa pensar como mover uma estrutura como um todo. São nessas populações que vivem as violências mais estruturais, então, sem dúvida, é muito além de raça e gênero.

    Ponte – Quais os principais desafios que você tem enfrentado na Alesp? Me recordo daquele episódio transfóbico com o deputado Douglas Garcia sobre a questão do uso do banheiro…

    Erica Malunguinho – Em relação ao Douglas, a Assembleia Legislativa, em uma decisão histórica, pelo Conselho de Ética, que há muito tempo não dava continuidade aos processos o fez. Eles deram continuidade e advertiram o deputado. Isso parece pouca coisa, mas ele foi advertido por quebra de decoro parlamentar por uma ação transfóbica. Isso é um recado importante e simbólico. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, temos um projeto [Projeto de Lei 491/2019] chamado Transcidadania que não consegue tramitar na Casa. Ele está bloqueado na Comissão de Constituição e Justiça que só analisa a constitucionalidade e lá estão debatendo o mérito. Notadamente é uma tentativa de boicotar o projeto, mesmo que o debate sobre o mérito não perpasse pela Constituição e Justiça, mas ela é a primeira comissão que deve analisar o projeto. À medida projetos de cunho transfóbico e de exclusão das travestis e transexuais como o PL [Projeto de Lei 346/2019], do Altair Moraes [PRB], que exclui pessoas trans do esporte e ganhou uma rápida tramitação, esse está bloqueado. Também temos uma PL [Projeto de Lei 113/2019], que se chama “Dossiê mulher”, que foi construído pela Isa Penna [Psol], que foi baseado em Marielle Franco e fala sobre a violência contra a mulher, esse projeto é na verdade um cadastro, um banco de dados, só foi aprovado depois que excluíram as mulheres trans. Então vemos que existe sim uma transfobia demarcada pela resistência da Assembleia Legislativa de tramitar projetos que sejam positivos à população trans, afirmativos em relação à população trans.

    Ponte – Isso conversa bastante com os dados divulgados no Dossiê Trans, que aumentou muito o número de assassinatos em São Paulo e que assuntos fundamentais como uso do banheiro, empregabilidade e nome social não são respeitados, não há políticas públicas para pessoas trans…

    Erica Malunguinho – E isso não é só dentro da Alesp, a dificuldade de tramitar algo positivo à população LGBT é generalizada nas Casas Legislativas de todo Brasil, inclusive na Câmara Federal. A gente só tem conseguido viabilizar algumas demandas a partir do Judiciário. Isso é um retrato do país. Não cabe dizer que é só da Assembleia, é uma marca do Legislativo e do poder público brasileiro que insiste em permanecer com essa transfobia programada de modo a excluir qualquer política afirmativa. Sabendo que somos um grupo de um alto grau de vulnerabilidade.

    Equipe política de Erica Malunguinho | Foto: Caê Vasconcelos/Ponte Jornalismo

    Ponte – Uma outra coisa que o seu mandato tem cuidado é dos casos de transfeminicídio. A maioria das mulheres trans e travestis que estão sendo mortas são negras e trabalham como profissionais do sexo. Por que acha que isso acontece?

    Erica Malunguinho – Existe uma cascata de exclusões, violências históricas e estruturais que vão efetivamente colocando diversos grupos em condições de marginalidade e de precarização a ponto de chegar no ápice da morte. Quando não é a morte é o encarceramento, quando não é o encarceramento é a situação de rua. Isso é histórico e estrutural e perpassa por todos os grupos que não são considerados como cidadãos, como humanidades. O que acontece principalmente com mulher trans e negras faz parte dessas camadas de exclusões constantes que excluem pessoas negras, que excluem pessoas LGBTs, que excluem mulheres e chega nesse combo de exclusões que gera o maior grau de vulnerabilidade. Estamos falando do transfeminicídio efetivamente no processo do assassinato, mas a gente tem que pensar na morte simbólica e que ela também perpassa por um processo de desumanização e de precarização tão violento que beira a condição da morte, que é a condição do encarceramento e da situação de rua. São duas questões que também precisamos colocar dentro do transfeminicídio. O transfeminicídio segue uma linha, que tem a morte e o assassinato objetivo, mas ele também passa por outras etapas, que são simbólicas até chegar na finalização que é a morte. 

    Ponte – Não respeitar o nome social ou expor o nome de registro seriam exemplo dessa morte simbólica?

    Erica Malunguinho – Quando fazem isso estão puxando mais um gatilho da morte de pessoas trans e travestis. Essas violências que são simbólicas, que partem pelo desrespeito do nosso direito em utilizar o banheiro, por exemplo, são passos ligados a essa política de extermínio e de precarização aos nossos corpos. Então, assim, não permitir o acesso ao banheiro, não respeitar o nosso nome social, impossibilitar o estudo, o trabalho, isso tudo são passos e caminhos dados rumo a nossa morte. Temos que pensar que a morte é o final do ciclo, mas esse ciclo se inicia em um processo que é muito bem organizado e que perpassa por tudo isso.

    Ponte – E como serão os próximos passos?

    Erica Malunguinho – Os próximos passos serão consequência do processo político que nos levou à Alesp. Vamos firmar e potencializar o trabalho em torno dos fundamentos de raça e de gênero, junto à população carcerária e à população em situação de rua. Agora é aprofundar e radicalizar mais os processos em relação a esses fundamentos. Eu acho muito importante frisar que isso não se trata de pautas, não são pautas LGBTs, pautas raciais, isso são fundamentos, porque entendemos de forma política e estratégica que esses dois fundamentos incidem as violências estruturais. Logo, remover essas populações desses lugares de vulnerabilidade sistêmica e estruturais significa movimentar as estruturas. Isso é um ganho para a sociedade como um todo. É muito importante falarmos da população trans em situação de cárcere, porque muitas não têm o nome social respeitado, o acesso a hormonioterapia, a entrada de itens de uso de acordo com a identidade de gênero [nas prisões]. Por exemplo, as mulheres trans e travestis que estão em presídios masculinos não têm acesso aos produtos de beleza e de saúde que são específicos da população T. Isso também tem que ser falado. Afinal de contas a gente sabe que a população carcerária tem como pena a reclusão, não a exclusão do direito à saúde, ao exercício da sua identidade. 

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