No dia do seu aniversário, Marcelo fez festa para arrecadar roupas para presos e ganhou homenagem de escola da periferia da zona sul de SP, que vai falar sobre racismo 130 anos após a abolição da escravidão

O cheiro da feijoada preparada por mais de dez mãos chegava longe. Entre o corre-corre para ajeitar os pratos, talheres, verificar a caixa de som, Marcelo Dias cumprimentava os que chegavam aos risos e abraços calorosos. Um convidado, apressado, chegou tirando uma camisa da sacola e o entregou com entusiasmo: “chegou!”. Marcelo recebe o presente, olha e pergunta: “e aí, está parecido?”, brinca.
O rosto do educador social que ficou seis meses preso acusado de tráfico de drogas e que ainda luta para provar sua inocência estava estampado na camisa do GRES (Grêmio Recreativo e Escola de Samba) Quilombo. Ele é um dos homenageados do tema para o carnaval de 2019 da escola que foi fundada em 2007 no bairro da Saúde, na zona sul da capital paulista. O mote “A senzala continua: 130 anos depois (o dia seguinte)” visa contar “uma nova história do negro brasileiro, liberto de suas correntes, mas preso pelo racismo e intolerância” após a Lei Áurea, que determinou o fim da escravidão dos negros no Brasil em 1888.
“Todo esse tempo passou e nada mudou para a gente, então temos que resistir, mostrar que samba é resistência”, declarou Felipe Fernandes, presidente da escola – que vai desfilar no dia 23 de fevereiro, na região da Luz, no centro da capital.
O presente chegou num dia especial. No domingo (3/2), Marcelo comemorava seu aniversário de 40 anos, mas segundo ele próprio, o momento era mais uma celebração de sua liberdade e da companhia de familiares e amigos que o apoiaram durante o período e continuam o apoiando. E também para lembrar dos amigos que formou quando esteve no CDP (Centro de Detenção Provisória) de Pinheiros II, já que a festa também se transformou num evento de solidariedade para arrecadar camisetas para presos.

“Quando você chega no CDP, eles te dão um kit com uma camisa, uma bermuda, uma toalha, um chinelo e é com isso que você acaba ficando por tempo indeterminado. Os presos que não recebem visita, como uns com deficiência, não ganham isso de suas famílias, então muitas vezes eles lavam aquela camisa e já vestem molhada para não sujar e não têm como trocar”, explica o educador. “Num raio de 400 presos, pelo menos uns 180 estão nessa situação, então quero levar pelo menos umas 200 camisetas até quinta-feira (7/2)”.
Ali, os convidados que se comprometeram a levar uma camiseta branca lisa como “ingresso” ocuparam as mesas e cadeiras dispostas na quadra da escola de samba Brinco da Marquesa, que fica embaixo do Túnel Maria Maluf. Os próprios familiares de Marcelo contam que ajudaram a criar a escola fundada há 31 anos no bairro. “Quando faz festa na quadra, lota, fica umas 4 mil pessoas, é bem bonito. Hoje a gente não gerencia mais, mas sempre estamos por aqui”, conta dona Sônia Dias, tia de Marcelo.

Entre o repertório da roda, os presentes faziam coro das músicas de Jair Rodrigues, Dona Ivone Lara, Alcione, Milton Nascimento e até Erasmo Carlos virou samba enquanto uma fila indiana se formava para que cada um fizesse seu prato ou comprasse sua bebida. As crianças brincavam em pula-pulas, piscina de bolinhas, corriam entre os pares que formavam e improvisavam passos.

Diante do clima de celebração, Marcelo confidencia um sonho. “Quando eu conseguir minha liberdade definitiva, quero fazer um projeto da ONG com os presos. Meu objetivo é dar atendimento psicológico e cursos de capacitação para que eles sejam reinseridos na sociedade. Eu estou fazendo tratamento e vejo que só consegui dormir de verdade quando o diretor disciplinar do CDP disse que eu poderia levar a doação. Esse vínculo com eles eu não quero perder, eu quero ajudar a mudar o sistema”.

A Ponte procurou a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária) para questionar sobre os pertences e roupas dos detentos: se só recebem um único kit, quantos são os itens oferecidos pela administração penitenciária e sobre os presos que não tem acesso ao “jumbo” por não receberem visitas de familiares, mas até o fechamento da reportagem, a solicitação não havia sido respondida.