Professores e diretoria da Escola Municipal Enzo Antonio Silvestrin, em Pirituba, são alvos de pais que espalham mentiras em defesa da ‘Escola Sem Partido’
Em 2017, quando Sandra Bouças assumiu a direção da Escola Municipal de Ensino Fundamental Enzo Antonio Silvestrin, em Pirituba, zona norte da cidade de São Paulo São Paulo, trouxe consigo a palavra liberdade. Queria transformar as paredes cinzentas e desbotadas em um ambiente de formação e emancipação. Quando a desejada liberdade aos alunos começou a ser conquistada, a escola passou a sofrer ataques e difamações com o termo “Ideologia de gênero”.
Ainda que o projeto de Lei Escola Sem Partido não tenha sido sancionado, os pais dos alunos defendem exatamente o que o programa propõe. Mesmo em casos de ilegalidades, como a obrigatoriedade do uso de uniformes. O movimento, que começou em 2004, ganhou ainda mais força depois das eleições de 2018, já que o chamado “fim da ideologia de gênero” é uma das pautas defendidas pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Desde o segundo semestre do ano passado, o medo dos funcionários da escola acontece dentro de redes sociais. Como em um movimento, pais de alunos começaram a questionar a atuação do corpo docente. Acusando-os de entregar conteúdo sexual para as crianças e “incentivando” a prática homossexual. “Como se isso fosse possível”, rebate a professora Gisele Villafan, responsável pela sala de leitura.
A questão também chegou a um veículo local, chamado Freguesia News. Pelo Facebook, o jornal acusou a escola de “questão ideológica”. Além de publicações no Facebook, os pais também se reuniram em um grupo de WhatsApp para rebater. “Estamos tentando dizer que a escola se constrói aqui dentro. Não é no WhatsApp, não é no Facebook e nem no portão da escola”, completa Sandra.
Uma das insatisfações apontadas pelos pais é a existência de um banheiro unissex na escola. As cores das portas dos banheiros foram escolhidas pelos próprios alunos, que decidiram em: porta amarela para meninas e porta laranja para os meninos. Ainda que não exista uma placa com os dizeres “feminino” e “masculino”, os alunos identificam a separação. Na tarde de quarta-feira (7/11) a reportagem foi até a escola e confirmou que os meninos frequentam o banheiro laranja, enquanto as meninas frequentam o banheiro amarelo.
Desde a época em que Sandra assumiu a direção da escola, a liberdade emancipatória e os direitos humanos passaram a ser pautas fundamentais para a educação dos alunos. Trabalhando em conjunto com eles, as paredes do colégio passaram a refletir manifestações artísticas. O que antes não era coisa de aluno passou a ser. Os pequenos tinham o poder de decisão de um lugar que eles precisavam sentir que era deles.
Em uma das últimas publicações da página da escola no Facebook, há um pequeno texto parabenizando os alunos do coral, que conquistaram o primeiro lugar no Festival de Música Instrumental e Corais da Cidade de São Paulo. “Parabéns a todxs envolvidxs”, diz o texto, com a letra ‘x’ em vogais, utilizado como forma de maior pluralidade identitária.
Um perfil, de nome Isnei Lopes Texeira, questionou o uso da linguagem inclusiva de gênero: “Corrigindo a postagem ‘obrigado a todos os envolvidos’, por isso as crianças dessa escola não sabem escrever. Começando pelos professores. Depois dizem que não há ideologia nem doutrinação. Pais prestem atenção no que seus filhos estão aprendendo. Antes que seja tarde. Escola, pelo amor de Deus, menos ideologia, mais estudo!!!”, esbravejou.
A escola, que até 2006 atuou com a chamada estrutura de “latinha”, de cabo a rabo preenchida de metais, foi perdendo as grades e a circulação ficou cada vez mais livre. A secretaria, que antes mais parecia uma cabine de confessionário, foi transferida para dentro do colégio. Agora estampada com um enorme adesivo de Frida Kahlo na porta. O parquinho também perdeu o alambrado e não é necessária autorização para entrar.
Dentro das salas de aulas, o significado de liberdade vem escrito em canetinha: “É um dragão no mar de Aracati”, trecho do samba-enredo “História pra ninar gente grande”, da Estação Primeira de Mangueira, que homenageou a vereadora assassinada no Rio de Janeiro, Marielle Franco (Psol). A letra que desfilou neste ano na Marquês de Sapucaí é uma referência a Francisco José do Nascimento, o Chico da Matilde, que ficou conhecido como dragão do mar depois de liderar os jangadeiros do Ceará.
Sandra conta que recebeu alguns pais no colégio para entender o que estava gerando tamanho tumulto. Para um deles, que ela não expõe o nome, foi levantada a questão do que seria a chamada “ideologia de gênero”. “E a resposta dele é a seguinte: ideologia de gênero é incutir na cabeça da criança que ela não é nem menino e nem menina, que ela pode gostar de meninos e meninas”, conta a diretora. Ela reforçou que a pauta da escola são os direitos humanos e que todos sempre terão os mesmos direitos. Lá, um menino não será impedido de usar uma fantasia de princesa. Se houver questionamentos da família é justamente com os pais que eles pretendem conversar.
“Existe um projeto de sociedade por trás dessas operações. E a todo tempo ele se coloca como, praticamente, um Messias. Muita gente pensa assim, muita gente não quer isso e precisava de uma pessoa como eu para enfrentar. Ele [pai] se coloca quase como um herói, né?”, explica a diretora.
Depois de uma conversa de quatro horas, direção e pai saíram com um compromisso: um encontro aberto à comunidade dentro da escola. Mas, no dia seguinte, o mesmo pai passou a criticar a escola com inverdades, dizendo que a diretora tinha justificado a não obrigatoriedade de uniformes, porque “as meninas têm que mostrar os seus corpos”.
Um dos reclamantes, Gabriel Agustini, foi à escola filmar os alunos, segundo conta Sandra. “Aquela semana que ele veio na segunda-feira. Publicou no Facebook na terça, na quarta ele estava aqui e pegou quase um período inteiro. Na quinta, eles voltaram, toda vez que eles vêm é das 13h30 até às 17h40. E ele é YouTuber. E na sexta-feira estavam programados para voltar e não deixei. Porque não tem diálogo, eles não vêm para dialogar, é para falar as mesmas coisas e ouvir as mesmas coisas”, explica a diretora.
As mentiras atormentam os professores, que acabam por transformar a entrevista em um desabafo em grupo. Angustiados, alguns andam pelas ruas olhando para os lados. Há um medo presente em cada passo e eles se sentem vigiados. “Com todas as forças do meu coração, eu morro de medo. Eu tenho medo de me relacionar com as pessoas ignorantes”, assume uma professora, que não quis se identificar por questões de segurança.
O assistente de direção Rafael Gonçalves consegue observar no caso três violências: institucional, docente e psicológica. Já Sandra analisa como uma violência contra a vida. “Eles têm acesso a um conhecimento na escola diferente daquele que eles têm na casa deles, que passa a colocá-los para questionar a própria casa deles. E isso incomoda as famílias e incomoda o líder do templo que eles frequentam, porque desempodera. Desempodera esse pai, essa família”, completa Rafael.
A reportagem tentou contato com os pais que estão propagando as mensagens contra a direção da escola, entre eles Gabriel Agustini e Mirian Reis. Em um primeiro momento, eles pediram para que a entrevista fosse feita pessoalmente. “Se for pessoalmente, fique à vontade. Não vou falar nada por telefone, afinal, ainda não nos conhecemos, não é mesmo?”, escreveu Gabriel. Logo depois, tentamos contato por telefone com o homem para marcar um horário pessoalmente e ele disse que preferia não se manifestar. Em seguida escreveu: “Desculpa, mas não tenho interesse em dar entrevista, não quero denigrir nada nem ninguém, apenas gostaria de uma escola melhor para todos”, detalhou. Gabriel não quis comentar sobre as falas de Sandra.
No dia 6 de novembro, a reportagem tentou contato com Isnei Lopes pelo Messenger, do Facebook. Que, por sua vez, só procurou a equipe depois da publicação da reportagem, no sábado (9/11), pela mesma ferramenta que estabelecemos o primeiro contato. Escreveu que não havia sido procurado e que “a escola não defende a liberdade do aluno”.
Na tarde de segunda-feira (11/11), ele explicou, por telefone, que tem “nada a ver com o grupo de pais que foram à escola” e completa: “A gente acabou, sim, se juntando na internet por uma causa comum”. Isnei ainda diz que não procurou a Secretaria Municipal de Educação, porque “são todos amigos, são todos do mesmo lado”. “Só se passasse o Escola Sem Partido e fizesse alguma punição”, opinou.
Para ele, os alunos também não “poderiam escolher os homenageados da escola”. “Isso não faz parte do mundo deles. O meu filho gosta de videogame, de desenhos. Na minha época [a homenagem] era Tiradentes, Pedro Alvares Cabral, o descobrimento do Brasil, o desenho da Mônica [personagem dos quadrinhos Turma da Mônica, criado por Maurício de Sousa], esse tipo de coisa”, completou.
Isnei finalizou dizendo que é um cara conservador e que ele e a esposa, evangélica, criam os filhos na “concepção cristã”.
A Ponte questionou a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo sobre as questões apontadas pela direção da escola e dos pais. Em nota enviada às 14h53 desta sexta-feira (8/11), a pasta explicou que “repudia qualquer ato de violência e acompanha as atividades desenvolvidas na EMEF Enzo Antonio Silvestrin por meio da supervisão de ensino. A unidade segue o Currículo da Cidade, o calendário de atividades e teve o seu Projeto Político Pedagógico aprovado pelo Conselho de Escola no inicio do ano letivo”, diz a secretaria, que se coloca à disposição dos pais para esclarecer quaisquer dúvidas.
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