‘Escolha de muitas é entre se contaminar ou passar fome’, diz ativista pelo direito das prostitutas

    Monique Prada fala sobre a situação da categoria de trabalhadoras sexuais frente ao medo da pandemia e a necessidade de manter a renda familiar

    Foto: arquivo pessoal

    “Um dilema total” enfrentam as prostitutas brasileiras que hoje convivem entre a fome e os riscos de contaminação pelo coronavírus. Segundo Monique Prada, trabalhadora sexual, escritora e ativista membra do GASC (Grupo Assessor da Sociedade Civil) da ONU Mulheres Brasil e da Associação Nacional de Profissionais do Sexo, o que resta hoje para a categoria é “organização e autoapoio”.

    A autora do livro “Putafeminista” (Editora Veneta) avalia que, entre as trabalhadoras sexuais, é inevitável que ainda haja quem se arrisque a estar nas ruas. “São elas que, muitas vezes, sustentam suas famílias, principalmente quando têm filhos, mesmo quando estão exercendo suas profissões em segredo”, explica Monique, em entrevista à Ponte.

    Quando faltam políticas públicas, a alternativa dessas mulheres se limita, em grande parte, ao trabalho nas ruas e ao acolhimento mútuo articulado por organizações espalhadas pelo país. Monique cita que, uma das alternativas sugeridas pelo próprio governo ao mercado da prostituição, é ir para o ambiente virtual. “Trabalho por meio de webcam e chamadas privadas pode até ser um caminho, mas ele não é acessível por boa parte dessas trabalhadoras, pelo menos não no Brasil”, pondera.

    Confira a entrevista: 

    Ponte – Como está hoje a situação das profissionais do sexo diante dos riscos de contágio por coronavírus?

    Monique – O fato é que hoje não dá para trabalhar. Claro que o ideal seria não trabalhar, mas mesmo pra quem continua tentando, porque precisa, quem ainda está nas ruas se arriscando à contaminação por coronavírus, o movimento anda muito fraco. Ainda nos primeiros casos confirmados [da doença] no Brasil, o movimento delas abaixou terrivelmente. Então, além do risco [de se contaminar], ainda tem o rendimento baixo. Até surgiram sugestões de partirmos para o trabalho virtual, por meio de webcam e chamadas privadas, mas ele não é acessível por boa parte dessas trabalhadoras, pelo menos não no Brasil. Inclusive, saiu em uma cartilha da Damares Alves [do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], uma recomendação sobre isso, que até pode ser algo possível em vários lugares pelo mundo, mas aqui não tem essa estrutura. 

    Ponte – O que fica como alternativa para elas neste momento?

    Monique – As alternativas, por enquanto, são buscar apoio em organizações que estão fazendo arrecadação para ajudar essas mulheres, ou entre as famílias e amigas, mas é complicado. A grande questão é que, muitas vezes, a gente exerce esse trabalho na clandestinidade, então, o que acontece é que em diversos lugares as trabalhadoras são migrantes e vão de várias cidades até o lugar onde trabalham. Tão logo foi determinado o fechamento de bordéis e hotéis [pelos governos estaduais e prefeituras], elas ficaram sem ter onde morar. Então, isso prejudica bastante e, muitas vezes, ficam sem ter o que dizer em casa porque perguntam: “Estão voltando pra cá agora por que?”, uma vez que boa parte delas exerce suas atividades em segredo.

    Ponte – Quais são as principais preocupações dessas trabalhadoras agora?

    Monique – São dois os maiores receios. Primeiro, o medo de se contaminar [pelo coronavírus], que é muito grande porque ainda se entende pouco sobre os riscos da doença. Mesmo que o presidente e outras pessoas venham dizer que não tem tanto perigo, porque são jovens e não fazem parte desses grupos de risco, não sabemos. Ainda mais porque, no nosso caso, nem todas as profissionais do sexo são jovens. A gente tem uma situação bem pesada em alguns espaços, como no Parque da Luz, em São Paulo, que está com uma campanha de arrecadação forte para mulheres com mais de 60 anos. Então, para elas, existe o receio da contaminação, mas também o da fome, uma vez que são elas que, muitas vezes, sustentam sua família, principalmente quando têm filhos, mesmo quando estão exercendo suas profissões em segredo. É um dinheiro que faz uma imensa falta. Como normalmente são elas que bancam suas famílias, é inevitável que, as que podem e precisam, se arrisquem a trabalhar nas ruas. 

    Ponte – E como está a situação de quem segue nas ruas?

    Monique – Agora, o que eu sei é que, pelo menos até semana passada, o Jardim Itatinga, por exemplo, que é um bairro famoso de prostituição [em Campinas, no interior de São Paulo], tava funcionando livremente. Lá, as mulheres continuam nas ruas e não há o que se possa fazer para impedir que elas sigam trabalhando. Só que, ao mesmo tempo, é bem arriscado. Saíram, inclusive, algumas cartilhas com dicas muito “furadas”, do tipo: “se for beber, beba caipirinha e ponha mais limão”, como recomendação [de prevenção ao coronavírus], e é um risco total. Só que, ao mesmo tempo, nem teria muito o que falar sobre os lugares [casas de prostituição] que seguem abertos porque essas mulheres precisam trabalhar. Ou seja, é um dilema total.

    Ponte – Você citou o caso da arrecadação no Parque da Luz. Sabe de outras organizações pelo Brasil que buscam apoiar essas mulheres?

    Monique –  Sim. Em Minas Gerais, por exemplo, as mulheres também estão com um movimento forte de arrecadação de recursos. Em Belo Horizonte, elas conseguiram uma casa com a ajuda da Rede Oblata, para abrigar as trabalhadoras que moravam em hotéis, por não terem outra opção, e não conseguiram voltar às suas cidades. Outra [também em BH] é a Transvest, que tem ajudado bastante com arrecadações e doações. No Rio de Janeiro, a Casa Nem, por exemplo, também abriga e ajuda muitas trabalhadoras sexuais e estão arrecadando doações. Algumas dessas organizações, estão tentando financiamento por meio de fundos [de arrecadação] e campanhas ou “vaquinhas”. E essas iniciativas não vem só de trabalhadoras sexuais cisgênero ou mesmo somente de trabalhadoras sexuais, mas também de muitas organizações LGBTs que estão empenhadas em conseguir alguma renda básica para essas mulheres, pra que elas não cheguem à situação de fome total, como a Transvest, em Belo Horizonte, e o Pessoal do Faroeste, em São Paulo, que tem conseguido ajudar bastante também.

    Ponte – Ou seja, o apoio parte delas próprias e da sociedade civil?

    Monique – É isso. Quando faltam políticas públicas para apoiar essas trabalhadores, elas só podem contar com ajuda mútua. É praticamente um momento de organização e autoapoio.

    Ponte – Falando em políticas públicas, qual deveria ser o papel do Estado neste momento em relação às trabalhadoras sexuais?

    Monique – Nesse contexto, é muito difícil pensar no papel do Estado agora porque o Estado para nós sempre foi a força de opressão, né? Então, sinceramente, eu não tenho muita ideia. Teoricamente, estamos mais ou menos inclusas nessa renda básica do governo [federal]. A questão é que estão pedindo documentações que a maior parte de nós não tem. E não só as prostitutas, como a população de rua e todo mundo que exerce trabalho em situação precária. Então, vai ser complicado ter acesso a esse valor. De qualquer maneira, algumas ONGs, como as que eu citei, estão fazendo documentos e pressionando por ações governamentais, mas tem que se pensar como é que poderiam fazer isso.

    Ponte – Tem mais alguma coisa importante de ser dita?

    Monique – Eu vi a matéria de vocês sobre as profissionais do sexo da Luz e é muito aquilo que está lá mesmo. A situação passa muito por aí. Primeiro, porque, por exemplo, tem gente ali que nem sabe qual documento precisaria para pedir esse apoio [renda básica] e, além disso, boa parte daquela população, provavelmente, nem tem esses documentos, principalmente a população trans de trabalhadoras sexuais. E [na reportagem] a Keila [Simpson Sousa, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais] diz que as putas não guardam dinheiro porque elas têm a ideia de que vão morrer jovens. Mas, além disso, a questão principal é que nem se ganha tanto pra conseguir guardar qualquer dinheiro.

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