Especial Palestina: Trabalhadores dependem de autorização para entrar na própria terra

    Na segunda parte do especial sobre a Palestina, a rotina dos agricultores que precisam de autorização de militares para poderem trabalhar

    Palestinos aguardam a abertura do portão Qaffin, no norte da Cisjordânia | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    Para chegar aos terrenos onde cultiva laranjas na área palestina de Qalqiliya, o palestino Hasan precisa passar pelo o portão agrícola Habla, guardado por soldados. Deve apresentar a documentação que autoriza a estadia em sua própria fazenda por um período de até 12 horas. Sempre que precisa ir a suas terras, Hasan é submetido ao horário de abertura do portão, estabelecido pelos israelenses. Para sair, deve aguardar a chegada dos militares, que abrem os cadeados. “Se você é fazendeiro, tem que organizar sua vida de acordo com o portão. Não depende do fazendeiro. Muitos deixaram suas terras já. Mas nós estávamos aqui antes do muro”.

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    Fazendeiro Hasan mostra documento que autoriza sua travessia pelo portão agrícola | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    Esta situação se repete em diversos pontos da Cisjordânia e é resultado da barreira de separação que vem sendo construída por Israel desde 2002. As terras de Hasan ficaram na área entre o muro e a Linha Verde, que delimita a fronteira entre Cisjordânia e Israel. Segundo o Escritório das Nações Unidas de Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA) nos territórios palestinos, cerca de 150 comunidades têm terras nessa área, e as restrições de acesso impostas por Israel afetam 11 mil pessoas.

    Trabalhadores esperam a abertura do portão agrícola Qaffin | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    No contexto de fracasso dos acordos de Oslo, da violência da Segunda Intifada e do fortalecimento da narrativa de “guerra ao terror” após os ataques de 11 de setembro de 2001, o governo do então primeiro-ministro Ariel Sharon iniciou a construção da barreira. Nota no site do Ministério das Relações Exteriores de Israel diz que a chamada “cerca de segurança” é uma medida “legítima e temporária” que “ajudará a acabar com o terror e restaurar a calma – passos que são necessários para renovar o processo de paz. ”

    De acordo com a OCHA, a barreira já tem quase 442 quilômetros de extensão. Se for finalizada de acordo com a rota planejada por Israel, terá cerca de 712 km, 85% deles dentro de território palestino, enquanto a Linha Verde tem 323 quilômetros. O muro, então, será mais de duas vezes maior que a delimitação do que seria a fronteira entre os dois territórios.

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    A Linha Verde é resultado do armistício assinado em 1949 após a guerra iniciada em 1948 com a criação do Estado de Israel. O território palestino ao leste da linha, incluindo Jerusalém Oriental, ficou sob domínio da Jordânia (por isso o nome Cisjordânia – ao lado ou alinhada à Jordânia); do outro lado do mapa, a Faixa de Gaza ficou sob domínio do Egito.

    Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, Israel derrotou os países árabes e dominou o que restava do território palestino, incluindo a Cidade Velha de Jerusalém, além da Península do Sinai e das Colinas de Golã. Nesse contexto, o conselho de segurança da ONU aprovou em 22 de novembro de 1967 a resolução 242. O documento é referência na questão Israel-Palestina, pois determina que uma “paz justa e duradoura” na região deve incluir a “retirada das forças armadas de Israel dos territórios ocupados no conflito recente”. Portanto, órgãos internacionais reconhecem a Cisjordânia como território ocupado e Israel é sujeito à aplicação do direito humanitário internacional – que inclui as Convenções de Genebra, ratificadas pelo país.

    “Muito bem vestido para ser agricultor”

    Segundo a OCHA, quando a barreira for finalizada, 9,4% das terras palestinas estarão cercadas e isoladas do lado israelense, fazendo parte da área conhecida como “seam zone” (“zona de costura”). As terras entre a Linha Verde e o muro são consideradas zonas militares restritas e, para que palestinos acessem suas propriedades, foi estabelecido um complexo sistema de portões agrícolas, postos de controle e documentos.

    Trabalhador aguarda para atravessar o portão agrícola Sal’it | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    Ao todo, 84 portões agrícolas estão localizados ao longo da barreira, mas as autoridades israelenses abrem 65 deles apenas na época de colheita das oliveiras, o que não permite o cultivo dos campos no resto do ano. Os outros portões ficam abertos em horários determinados pelos israelenses – alguns funcionam durante a semana toda ou em dias específicos. Isso significa que as pessoas só podem entrar em suas terras no horário definido e sair apenas quando militares chegam para abrir o portão novamente.

    O fazendeiro Hasan diz que é difícil conseguir autorização para que trabalhadores acessem suas terras. “Antes eles davam um documento que durava dois anos. Agora é um ano, às vezes seis meses. Alguns trabalhadores são recusados por questões de segurança. Se você tem cinco documentos para mostrar, eles vão criar outros cinco. Mais cinco problemas. Toda vez é assim”.

    Parte do muro construído em Qalqiliya por Israel | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    O fazendeiro Jamal, que também usa o portão agrícola Habla, afirma que tinha 73 oliveiras antes de parte de suas terras serem confiscadas para a construção da barreira – agora são 35 árvores. Ele explica as limitações que a separação física causa aos agricultores. “Se alguma coisa acontecer, eu não posso ir para a minha terra. Então, limão, por exemplo, pode ficar alguns dias sem água. Mas pepino, tomate… você precisa estar perto. No início foi muito difícil. Mas as pessoas aprendem. Se eles estavam cultivando vegetais, pararam. Se estiver muito quente e você não estiver por perto, quando voltar tudo vai estar queimado”.

    Em artigo publicado em novembro de 2003 pelo jornal israelense Haaretz, Avraham Shalom, chefe de inteligência que trabalhou na captura do nazista Adolf Eichmann, fez várias críticas à construção do muro. Uma delas descreve o que acontece com frequência nos portões agrícolas: “Para não colocar em perigo os guardas nas passagens, inspeções completas — que significam lentidão — serão necessárias. Haverá tumultos e irrupções em todas as aberturas, todos os dias (…) De fato, nessa situação de tantas aberturas e passagens na cerca de separação, e milhares de pessoas atravessando-a todos os dias, porque então a cerca é necessária em primeiro lugar?”.

    Portão agrícola em Jayyus é aberto apenas durante a colheita das oliveiras | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    De fato, muitos portões agrícolas são locais de tensão resultante da lentidão na checagem de trabalhadores, atrasos em sua abertura e conduta de soldados — alguns são agressivos e por vezes recusam a entrada de palestinos sem maiores justificativas. Por exemplo, em uma manhã de outubro de 2016, um homem teve entrada recusada no portão agrícola Qaffin, na área de Tulkarm. Segundo ele, o soldado lhe disse que “estava muito bem-vestido, sem aparentar ser trabalhador agrícola” — por vezes os militares impedem a travessia sob a justificativa de que os trabalhadores querem entrar em Israel de forma ilegal.

    Bombas de gás

    Diariamente, cerca de 200 pessoas atravessam o portão Qaffin e com frequência há desentendimentos entre os próprios trabalhadores sobre a ordem da fila de espera. Quando o tumulto se agrava, os soldados fecham o portão e se preparam para jogar bombas de gás lacrimogêneo. Durante os três meses em que a reportagem da Ponte visitou Qaffin semanalmente, no ano passado, a presença de representantes do município palestino foi necessária diversas vezes para conversar com o comandante israelense e organizar a situação. Além disso, em portões agrícolas como Far’un ou Attil, os soldados não permanecem durante todo o horário de abertura. Ao chegarem, deixam as pessoas que estavam esperando entrarem, fecham o portão e vão embora. Também são pouco tolerantes com atrasos dos palestinos, mas com frequência os portões são abertos depois da hora esperada.

    Barreira de separação em Jayyus, em trecho formado por cerca | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    O sistema de controle estabelecido com a barreira desvia a atenção para questões como respeito a horários de abertura de portões, comportamento de soldados e documentação. Entretanto, a própria existência de todos esses mecanismos deve ser questionada, como diz Hasan, o fazendeiro de Habla. “Eu não me importo como os soldados tratam os trabalhadores, se mal ou bem. Se eu reclamar disso, significa que o portão é legal. Não é legal. Esse portão não deveria estar aqui.”

    Em 2004, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão judiciário das Nações Unidas, emitiu parecer sobre a barreira, considerando que a “construção do muro e seu regime associado são contrários à lei internacional”. O documento cita as convenções relevantes, destacando que o muro impede a liberdade de movimento, o direito a trabalho, acesso a saúde, educação e adequado padrão de vida. Por 14 votos a 1, a Corte afirmou que a lei internacional torna Israel obrigado a parar os trabalhos de construção do muro, inclusive em Jerusalém Oriental; deve desmontar a estrutura já criada e anular os atos legislativos e regulatórios do sistema que constitui as séries de restrições causadas pela barreira. Desde o parecer, Israel construiu mais 200 quilômetros do muro.

    Abertura do portão agrícola Habla | Foto: Dani Ferreira/Ponte Jornalismo

    Por onde a barreira passa, o cenário é composto por portões, cercas, arames farpados, sistema eletrônico e estradas – utilizadas apenas pelos soldados e em certas áreas pela segurança de assentamentos. É difícil imaginar como tudo era antes da construção do muro e como poderia ser com a retirada de todo o aparato. O fazendeiro Jamal se recorda de como a vida, mesmo sob ocupação militar, era mais “normal”. “As pessoas iam a todo lugar o tempo todo. Elas não pensavam muito no que havia do outro lado. Agora todo mundo pensa. Eles precisam vir às 5h para mostrar sua identidade, para saber quem chegou primeiro. É horrível para todo mundo. Quem é o vencedor?”, pergunta.

    Outro lado

    A Ponte entrou em contato com a embaixada de Israel no Brasil. O vice-cônsul geral em São Paulo, Fares Saeb, deu algumas respostas, publicadas na primeira parte do Especial Palestina, mas não respondeu às duas perguntas feitas pela reportagem sobre os controles implantados nos portões agrícolas:

    Os checkpoints, como o Qalandiya, próximo a Jerusalém, o 300, em Belém, e Qalqiliya North, no norte da Cisjordânia, por onde palestinas e palestinos atravessam todos os dias para trabalharem em Israel, são superlotados e têm péssimas condições de ventilação, submetendo pessoas a uma situação degradante e insegura. Como o governo de Israel se posiciona em relação a isso?

    A barreira de separação construída entre o território israelense e a Cisjordânia não segue a Linha Verde de 1949. Segundo a ONU, ao ser finalizada, a barreira terá 712km de extensão, enquanto que a fronteira estabelecida pela Linha Verde tem 323km. Ou seja, a barreira terá uma extensão mais de duas vezes maior do que a fronteira até então estabelecida. Além disso, 9,4% das terras palestinas na Cisjordânia serão cercadas por esse muro e estarão do outro lado. Tais fatores são causa de tensão entre israelenses e palestinos. O que o governo de Israel tem a dizer sobre os resultados dessas iniciativas na Cisjordânia?

    (*) A repórter Dani Ferreira viajou à Palestina como participante do Paepi (Programa de Acompanhamento Ecumênico na Palestina e em Israel)

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