Espiral de machismo e violência da Atlética da FMUSP

    Na terceira parte da série sobre abusos em uma das faculdades mais importantes do país, reportagem da Ponte mostra que a associação esportiva da Medicina da USP adota como política sistemática o assédio moral e punições físicas como forma de preservar a hierarquia e alcançar um alto nível competitivo
    Entrada da sede da Atlética da Medicina da USP. Foto: Divulgação/USP Imagens

    Nas festas. Treinos. Ônibus. Arquibancadas. Som de bateria.

    “Longe pra caralho, lá no fim do mundo, tô chegando em Ribeirão! Tem mulher de monte, puta nem se fala, a cidade é um tesão! ABC, Paulista, Santa, Unicamp, vai pra puta que pariu! Nós ganhamos a Intermed todo ano e o resto se fodeu!”

    Ou então:

    “Eu tava no banheiro comendo a empregada, o índio abriu a porta e eu comi a bunda errada”.

    Ou ainda:

    “Tentei São Paulo, não consegui. Desci a serra, estou aqui. Não sei pegar no bisturi, eu vou ser médico é de siri. Eu estudo na Med Guarujá, Med Guarujá, Med Guarujá!”.

    O objetivo dos cantos é atacar e ridicularizar outras faculdades de Medicina concorrentes na disputa esportiva e acadêmica. O “índio” da segunda música, por exemplo, é uma referência a alunos da Escola Paulista de Medicina, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). De quebra, mulheres, negras e pobres são tratadas como objeto e postas em posição de inferioridade. Essa é a regra em muitos dos cantos da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz (AAAOC), a Atlética da Medicina da USP. Tal realidade é uma constante em competições que envolvem várias faculdades e universidades espalhadas pelo país. Mas no caso da associação esportiva da FMUSP, a desqualificação do adversário passa necessariamente por sua inferiorização.

    O sentimento de superioridade dos que são aprovados na Medicina da USP, a universidade mais reconhecida do país, é constantemente nutrido na Atlética a partir do momento em que o calouro se integra à instituição. “Em geral são cantos escrotizando outras faculdades. Todo mundo é burro, está em um patamar inferior e a gente é melhor. A gente está aqui e eles nos odeiam, querem nos destruir, porque somos muito mais inteligentes que eles”, diz um ex-integrante da Atlética. Sob a condição do anonimato, a reportagem ouviu ele e mais dois alunos que foram atletas da associação esportiva.

    A lista de abusos relatados é semelhante ao de instituições como o Show Medicina, cujos segredos a Ponte revelou na última sexta-feira, 14/11. Machismo, misoginia, homofobia, racismo e classismo são naturalizados. As relações entre os integrantes é também altamente hierarquizada, e o status quo é preservado por meio de duros rituais de humilhações e castigos físicos. O mais “clássico” destes é o “pascu”, ou “pasta”.

    A recorrência a prostitutas é frequente, especialmente antes das competições, como forma de “tirar a zica”. E a pressão é gigante por pontualidade e frequência nos treinamentos e alto desempenho nos campeonatos. A Medicina da USP não admite perdê-los. Para completar, é a Atlética a organizadora da maioria das festas onde casos de abusos sexuais de alunas ocorrem, inclusive estupros – denúncias também reveladas pela Ponte, na última terça-feira, 11/11.

    O recrutamento

    A Atlética não perde tempo. O recrutamento dos calouros tem início logo no primeiro dia do novo ano letivo. A principal tática de sedução é deixar claro que é a instituição mais cool da faculdade. “Sempre que há algum evento da semana de recepção, alguma palestra, por exemplo, eles falam: ‘isso aqui é muito chato, vem beber com a gente’”, explica um de seus ex-integrantes. A “pressa” se deve à Calomed, competição anual que reúne os alunos recém-aprovados nos cursos de Medicina do estado de São Paulo. “Então as pessoas chegam à faculdade e já começam a treinar. Entram nos times e passam a participar da Atlética ativamente.”

    Antes de uma competição ou jogo importante, os atletas de determinada modalidade realizam uma “excursão” a um prostíbulo com o objetivo de “tirar a zica”, expressão que significa, segundo os relatos, fazer sexo com uma prostituta negra.

    Já na primeira confraternização com os veteranos e a diretoria, os cantos entoados durante as competições são ensinados aos novos integrantes. Através dessas músicas, além do machismo extremo contido em muitas delas, são forjados os sentimentos de ufanismo em relação à FMUSP e de ódio contra as demais faculdades. A reportagem da Ponte teve acesso a um exemplar do jornal “Carramão”, editado pela Atlética, contendo as letras de alguns desses cantos.

    Muitas deixam explícito o sentimento de superioridade da Pinheiros ou da porcada, como são conhecidos, respectivamente, a FMUSP e seus alunos. Por exemplo:

    Pinheiros tuberculosa
    cheia de bichas mil
    Pinheiros tuberculosa
    melhor escola do Brasil

    Esta é a escola
    que todos desejam
    mas poucos podem alcançar.
    Você que tentou
    e não conseguiu
    vai pra puta que o pariu!

    Outras, além disso, não têm pudores ao se mostrarem machistas ou homofóbicas:

    A porcada tá feliz, tá feliz!
    A porcada quer gozar, quer gozar!
    Quer enfiar na bucetinha
    Dessa porra de escolinha
    Que não para de chupar!
    Mais um! Mais um!
    A pica entra, o índio grita:
    Aaaaaaaaaaaai!
    Só tem cuzão nessa bosta de Paulista
    Eu vou fuder, fuder você!
    Na Intermed o porco bota pra fuder!

    A objetificação da mulher fica explícita em um dos rituais mais chocantes relatados pelos ex-integrantes da Atlética ouvidos pela reportagem: antes de uma competição ou jogo importante, os atletas de determinada modalidade realizam uma “excursão” a um prostíbulo com o objetivo de “tirar a zica”, expressão que significa, segundo os relatos, fazer sexo com uma prostituta negra.

    Houve momentos, contam, em que as prostitutas foram levadas para dentro da Atlética, onde teriam transado com alguns alunos na frente de todos. “Um dos meninos transou, gozou e comemorou. Com a galera aplaudindo. É um ritual de iniciação. Você faz isso para ser aceito”, explica um dos alunos.

    Treino pesado e castigos físicos

    A pressão para que os calouros façam jus aos cantos ufanistas é grande. É inaceitável não vencer a Calomed. Os novatos sentem o peso de ter de manter a faculdade no topo já nos primeiros treinos. Eles não podem chegar atrasados, sair mais cedo e tampouco faltar. Quem infringe as normas é perseguido e recebe punições, muitas vezes físicas. A pontualidade nos treinos é cumprida em detrimento das aulas do curso. “Como não toleravam atraso, eu tinha de sair mais cedo da aula, perdia uma prova que valia presença e depois tinha de correr atrás. Era muito estressante”, conta um dos ex-atletas. Segundo ele, quanto mais o integrante da Atlética anula a si próprio mais é valorizado. “As pessoas contabilizam os sacrifícios que fizeram: quantas DPs pegaram, quantas aulas perderam, quantas vezes bateram o carro por causa do cansaço. Isso era contado como uma vantagem.”

    Um dos primeiros contatos mais agudos dos calouros com práticas de assédio moral e violência física ocorre em fevereiro, no famoso “Churrasco da invasão”. Os novatos são levados a uma chácara no interior de São Paulo, onde são recepcionados com carne e álcool à vontade. De noite, representantes da Atlética, vestidos com trajes hospitalares, “invadem” o local aos gritos, surpreendendo os calouros, que são submetidos a trotes violentos. “É assustador, porque não se sabe que eles irão aparecer”, relata um dos estudantes. Como é prática comum na FMUSP, a ordem é silenciar sobre o que ocorre no encontro. “Se alguém publica no Facebook o que rola no churrasco da invasão, está fodido”, explica.

    “Todos os homens que querem ser diretores da Atlética precisam levar um pascu”

    Poucos trotes ou castigos se comparam, em termos de humilhação moral e física, a um ritual de passagem ou de punição chamado “pascu”, ou “pasta”, a prática de passar pasta de dente nas nádegas e/ou ânus de um aluno. No caso do vídeo obtido pela Ponte, em vez da pasta foi usado um pedaço de pizza. “Todos os homens que querem ser diretores da Atlética precisam levar um pascu”, conta um dos alunos ouvidos pela reportagem.

    O ritual é realizado com requintes. Simula-se uma visita médica num hospital a um paciente e receita-se a aplicação de flúor. O “paciente” é posicionado de bruços sobre uma maca. Caso resista, usa-se a força. Suas nádegas são cobertas de tapas, que fazem as vezes da anestesia. Então, a pasta de dentes é “aplicada”. Um dos ex-integrantes da Atlética que falou à Ponte conta que já levou três “pastas” quando treinava numa modalidade esportiva na instituição. De acordo com os alunos, em geral as modalidades masculinas mais envolvidas com a diretoria da Atlética, como futsal, handebol, basebol, futebol de campo e natação, são as que mais aplicam trotes violentos.

    A reportagem procurou a Atlética e a diretoria da FMUSP, mas até a publicação desta reportagem não havia obtido retorno.

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    Pedro
    Pedro
    9 anos atrás

    Eu comentei sobre a peculiaridade da AAAOC no contexto de todo esse escândalo na primeira reportagem da série. Recomendo a Ponte entrevistar professores de Educação Fisica que atuaram como técnicos das equipes, como avaliam o nivel esportivo e a gestão do clube.

    O clube em si serve de “zona franca” onde tudo é permitido dentro das festas. Vizinhos e pacientes sofrem com noites ensurdecedoras quando festas noturnas sao realizadas. O clube em si é lamentável: vidros quebrados, quadras defeituosas, campo de futebol “grama-society-cascalho-bituca” fica aquém da nossa defunta várzea. Nao é compatível com a renda média das familias dos gerentes do espaço. Vencer as fraquíssimas competições universitarias nao é mérito algum: nao se tratam de competições sequer de média performance: o nivel esportivo em si é sub-amador. Uma equipe juvenil (16 anos) de qualquer modalidade nos clubes brasileiros facilmente venceria essas competições, no futebol sendo o confronto impensável: seriam sistemáticas goleadas e as equipes estudantis nao ficariam de pé no segundo tempo.

    Da forma como é administrada, a atlética falha naquela que deveria ser sua missão mais importante: promoçao do esporte na universidade. Por focarem nas péssimas competiçoes, apenas quem se dispõe a atuar nas equipes é bem-vindo: o estudante que gostaria de integrar o esporte de forma saudável no seu cotidiano nao é bem-vindo. Dessa forma, o espaço perde o sentido de servir o corpo estudantil ou a comunidade local: serve apenas aos seus membro, com suas regras e comportamentos questionáveis como descrito na reportagem. Portanto, falham em seu objetivo principal de desenvolver equipes competitivas, e falham na promoção do esporte dentro da sua comunidade. Porque entao entregar o clube aos alunos?

    Alguns estudantes da FMUSP sofrem de um complexo de superioridade doentio e auto-corrosivo, sendo a AAAOC o expoente dessa mentalidade. Corroem sua propria comunidade criando ostracismo, e comportamentos violentos, completamente antagônicos ao viver esportivo, resultando em uma morte futil em 1999 dentro de uma piscina semi-olimpica (que nao é um brinquedo), e nos casos de estupro que testemunhamos agora.

    A Ponte poderia aprofundar essa série de reportagens e descobrir, por exemplo, porque e como o clube (o espaço fisico) é gerido pelos estudantes. Porque todas as outras atléticas da USP possuem um escritorio e utilizam o CEPE, e esta atlética tem seu proprio clube? Imaginem se o CEPE fosse gerido, digamos, pelos alunos da Poli? Este clube precisa servir aos cursos de saúde no entorno hospitalar (Medicina, Enfermagem, Nutriçao, etc) e nao ser propriedade dos membros da AAAOC. Se a Ponte se deu ao trabalho de fazer essas reportagens, sugiro que faça uma explicando realmente a gestao deste espaço: a quem pertence, como é gerido e porque esta nas maos de uma minoria de estudantes que causa tantos danos a sua propria comunidade?

    Fernanda
    Fernanda
    9 anos atrás

    O que poucos sabem é que muitas atléticas tem recursos públicos e quase nunca prestam contas

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