Jackson Caetano foi baleado em 2021 e polícia alega que ele empunhava arma; após família conseguir câmera de segurança e contratar perícia particular, caso foi desarquivado e reconstituição aconteceu nesta quarta-feira (17)
O Tribunal de Justiça de São Paulo mandou reabrir as investigações da morte de Jackson Luiz de Araujo Caetano, 32, baleado por um policial militar em 18 de maio de 2021, dentro de uma casa abandonada, de obra incompleta, na favela do Mauro, na região da Saúde, na zona sul da capital paulista. A reconstituição da dinâmica do caso pelas versões dos policiais envolvidos, feita pela Polícia Civil, aconteceu na manhã desta quarta-feira (17/8).
O juiz Roberto Zanichelli Cintra, da 1ª Vara do Júri, considerou que a apuração deveria ser aprofundada após a esposa da vítima, a comerciante Jupyara Conte Hadlich Caetano, 42, contratar peritos particulares, conseguir uma terceira testemunha que teria ouvido a discussão dos PMs após o disparo e obter imagens da câmera de segurança de um prédio residencial próximo à entrada da favela.
O caso tinha sido arquivado a pedido do promotor Felipe Eduardo Levit Zilberman, em novembro do ano passado, que argumentou na época que não existiam elementos que afastassem a alegação de legítima defesa. Com as novas provas, ele também voltou atrás e pediu a reconstituição do crime, além de outras diligências, que foi acatada pelo magistrado em março deste ano. O inquérito foi colocado sob sigilo.
De acordo com o tenente Samuel Silveira de Toledo e os soldados Douglas Soares e Bruno Gonçalves de Souza, do 3º Batalhão Metropolitano da PM (BPM/M), naquele dia estavam em patrulhamento e, por volta das 22h, viram dois indivíduos que “carregavam um volume nas mãos, aparentando serem (sic) armas de fogo”, na Rua Mauro, na altura que dá acesso à comunidade, e que a dupla saiu correndo quando viu a viatura. Samuel e Douglas foram atrás e entraram na favela e Bruno, como era o motorista, permaneceu no veículo.
A dupla de policiais afirmou que teve um momento em que perdeu os dois de vista e, depois, escutaram um barulho parecido com tiro e prosseguiram até se aproximar de um imóvel abandonado e entrou no local, subindo as escadas.
Samuel diz no seu depoimento que teria visto Jackson, ordenado que ele levantasse as mãos, mas ele não obedeceu. Depois, disse que o viu empunhando “uma pistola cromada” e mandou que ele largasse a arma, não tendo obedecido novamente. Segundo ele, “a vista de uma iminente agressão a tiros que poderia sofrer e visando preservar sua integridade física”, deu um único disparo que acertou Jackson.
Já Douglas, que estava atrás de Samuel enquanto os dois entravam na construção, não mencionou em depoimento as ordens que teriam sido dadas pelo tenente e diz que assim que tiveram acesso ao pavimento de cima da casa, o colega “logo avistou um indivíduo com arma em punho e lhe apontando, motivo pelo qual, a vista de uma iminente agressão a tiros e visando preservar sua integridade física, o Tenente Samuel efetuou um único disparo que atingiu aquele indivíduo que logo caiu ao solo”.
Esses depoimentos foram formalmente colhidos na Polícia Civil cinco meses após o crime, já que desde 2019 a Lei do Pacote Anticrime estipulou que policiais envolvidos em crimes devem ser ouvidos apenas na presença de um advogado após serem intimados.
No boletim de ocorrência, contudo, a versão dada por um quarto PM que não participou da ocorrência e relatou o que ouviu dos três, os dois suspeitos “ao perceberem a presença da viatura, ambos sacaram armas de fogo e efetuaram disparos contra a guarnição e correram para o interior da comunidade”, o que diverge do depoimento formal dos policiais envolvidos ao Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil.
Jupyara contou à reportagem, um mês após a morte de Jackson, que havia saído com o marido para uma loja e que ele pediu para deixá-lo na favela, já que cresceu na comunidade, costumava frequentá-la e tinha amigos por lá. Quando retornou para buscá-lo, por volta das 18h20, Jackson teria lhe dito que ia ficar mais um pouco pois iria visitar uma afilhada.
Um morador da favela, que pediu para preservar sua identidade, disse à Ponte na época que aconteceu uma incursão envolvendo três policiais militares no local no final daquela tarde, em que todos os moradores entraram para a casa e traficantes fugiram. “Foi uma coisa rápida, pouco tempo depois foram embora, mas dois policiais ficaram pela comunidade”, afirmou. “Jackson foi na casa da afilhada dele, que ele ajuda a moça [mãe] às vezes com um leite”, prosseguiu.
A esposa de Jackson disse que soube dessa moça, que ela também conhece mas que não quer ser identificada, e que o marido passou por lá e depois que saiu, por volta de 20h, não soube mais o que aconteceu. Foi quando os amigos do jovem começaram a procurá-lo. “Deu uns 30 minutos, ouviram um tiro”, disse o morador. “Uma das pessoas que mora perto do local gritou para os moradores se protegerem e o que a gente sabe é que depois os policiais pediram reforço”, declarou.
Jupyara só conseguiu confirmar que a pessoa baleada era seu companheiro no dia seguinte após ter ido ao local e à delegacia, não ter informações, e só conseguir enterrá-lo após localizar a unidade correta do Instituto Médico Legal (IML).
De acordo com o boletim de ocorrência, a única cápsula deflagrada apreendida corresponde à arma de calibre .40, de uso exclusivo da PM. No local, foi apreendida uma pistola calibre 380 com numeração raspada com 12 balas intactas.
As novas provas
Entre as novas provas estão as imagens de uma câmera de segurança de um prédio residencial na Rua Mauro, próximo à única entrada que dá acesso à favela. O registro foi obtido pelo programa Fala Brasil, da Record TV, e não mostra pessoas correndo para dentro da comunidade. Apenas uma viatura que entra, depois sai para um carro passar. Em seguida, a viatura retorna, cruza com outra, entra. Tudo isso entre 20h e 20h30 do dia 18 de maio de 2021. Às 21h59 aparece uma viatura e às 22h02 chegam outras ao local. Essas imagens não haviam sido coletadas pela Polícia Civil.
A comerciante também contratou perícia particular para avaliar a dinâmica da versão relatada pelos policiais e os laudos feitos no local para que a Polícia Científica responda quesitos que não foram esclarecidos. Em nenhum documento que a reportagem acessou há a informação sobre a altura do tenente Samuel. Esse seria um ponto importante porque Jackson tinha 1,80 m de altura e seria mais alto que o policial.
O tiro que o PM deu atingiu o olho esquerdo da vítima, com direção de cima para baixo, da esquerda para a direita, tendo ficado o projétil alojado no lado direito da nuca, quase ao lado da orelha. “Como o tiro seria de cima para baixo se o Jackson era maior que o policial?”, questiona Jupyara.
A própria PM fez uma recognicação visuográfica assinada por dois policiais militares, sem peritos e sem levar em consideração altura de vítima e atirador, apontando que Jackson poderia estar de frente empunhando a arma ou que o pescoço dele deu “um leve giro no sentido horário”.
Os peritos particulares Ricardo Ferreira de Resende e Christiane Duarte também disseram no relatório que, pelas manchas de sangue na parede do imóvel, há dúvidas sobre a posição que o corpo de Jackson se encontrava e concluem no parecer técnico que ele foi morto sem oportunidade de defesa. Cleiton Sá, um dos peritos e que estava presente na reconstituição desta quarta-feira (17), disse que “há pontos que a polícia precisa esclarecer”.
Intimidações
No dia 25 de maio, Jupyara levou à Corregedoria da PM duas testemunhas que residem próximo ao imóvel para informarem o que haviam escutado. Uma delas confirmou que Jackson esteve em sua casa às 21h30 e que ouviu um tiro 20 minutos depois que ele deixou sua residência. A outra relatou que ouviu os policiais discutindo o seguinte diálogo: “Samuel por quê você fez isso? Foi um tiro abaixo do olho” e “O discurso vai ter que ser esse, apresentar a 380 e tem que falar que foi troca [de tiro]”.
Quase uma semana depois, em 1º de junho, moradores denunciaram que policiais do 3º BPM, mesma unidade de Samuel e Douglas, foram à comunidade de forma intimidatória. “Foram nas casas das testemunhas com fuzil na mão, levaram uma foto da Jupyara, gravaram todo mundo, questionando sobre o depoimento”, disse na época à Ponte um morador.
Uma moradora conseguiu gravar, de forma disfarçada, as identificações das viaturas no dia. Segundo Jupyara e esse morador, as testemunhas agora estão com medo de sair de casa e sofrerem alguma retaliação. A Ponte decidiu usar frames do vídeo para não identificar os moradores que aparecem em algumas partes da gravação.
Jupyara também apontou ter recebido ligações de policiais do mesmo batalhão nos dias 4 e 7 de junho solicitando que ela comparecesse ao local para prestar depoimento e relatou o caso à Ouvidoria das Polícias. “Não entendo por que querem me ouvir no batalhão se quando eu fui na Corregedoria não me ouviram porque eu não vi os fatos. Eu fico com medo porque não recebi nenhuma intimação, nem nada”, denunciou.
O advogado e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) Leandro Freire, que acompanha o caso, relatou na ocasião que via com preocupação policiais do mesmo batalhão dos PMs envolvidos realizarem algum tipo de investigação e irem à comunidade atrás das testemunhas.
“O ideal é que a apuração seja realizada pela Corregedoria da PM. Por isso sempre recomendamos que as vítimas e policiais procurem os órgãos de correição e acompanhamento, especialmente a Ouvidoria das Polícias, para serem ouvidas ou fazer denúncias”, declarou à Ponte.
Essas denúncias constam em reportagem da Ponte de 11 de junho de 2021 e a matéria foi anexada ao inquérito policial militar (IPM). Em documento datado de três dias depois, o sargento Lucas Maziero disse que Jupyara e Leandro Freire “estão utilizando a imprensa, como meio ardiloso, para descreditar a investigação conduzida por esta OPM [batalhão que está conduzindo a apuração militar], bem como se promover por meios escusos”.
Isso porque a esposa teve receio de falar no 3º BPM e, como se expôs em reportagem, o sargento entendeu que Jupyara não estaria com tanto medo assim e que sua versão também geraria desconfiança porque ela e Jackson são egressos do sistema prisional, que na favela ocorre tráfico de drogas e um policial já trocou tiros no local.
Com relação à ida de policiais na comunidade conforme os frames dos vídeos, escreveu que eles foram ao local para fazer a recognição visuográfica e ouvir moradores para colher elementos para o IPM.
Durante a reconstituição nesta quarta-feira (17), a Ponte percebeu e registrou o soldado Douglas e o tenente Samuel apontando celulares em direção à reportagem e a demais presentes como se estivessem fotografando e filmando. A Ponte tentou pedir entrevista aos policiais, que se negaram a falar, e, questionados sobre registrarem a jornalista, Douglas respondeu que estava em uma chamada de vídeo com a esposa e não tinha interesse em filmar, apesar de em nenhum momento parecer falar ou gesticular em frente à câmera do aparelho.
Jupyara também relatou que o soldado a fotografou. “Eu me senti intimidada porque eu sou esposa da vítima, quem está correndo atrás de tudo sou eu, e não sei qual a utilidade de ter uma foto minha”, declarou. Ela reclamou com policiais civis e alguns a recomendaram a procurar a corregedoria da PM.
“Eu não sou contra a polícia, mas existe uma minoria que faz isso. A Constituição diz que a pessoa tem que ser processada e julgada e não que o policial tem que acusar, julgar e executar”, afirma a comerciante. “O que eu quero é justiça, é a verdade, e que eles sejam responsabilizados”.
O que diz a polícia
A Ponte procurou a assessoria da Secretaria da Segurança Pública e solicitou entrevista com os policiais envolvidos e questionou a respeito da investigação e sobre os PMs fotografarem a reportagem e pessoas no local durante a reconstituição e aguarda resposta.