Estátuas, motéis e restaurantes: como os brancos se orgulham do passado escravista

    “O racismo brasileiro não tenta destruir um negro, ele quer destruir a negritude”, diz escritor Ale Santos

    “Monumento às Bandeiras”, de Victor Brecheret, em SP | Foto: Governo do Estado de SP

    Uma estátua de um traficante de escravos foi derrubada durante uma manifestação antirracista em Bristol, no Reino Unido, no último domingo (7/6). O monumento de Edward Colston, traficante de escravos e membro do Parlamento britânico que viveu no século 17, foi jogado em um rio.

    A manifestação faz parte dos levantes do Black Lives Matter contra o racismo que aconteceram em todo o mundo, principalmente nos EUA, depois da morte de George Floyd, um homem negro assassinado por um policial branco de Minneapolis, em Minnesota, nos EUA.

    Com a derrubada da estátua, uma discussão nas redes sociais trouxe à tona a existência de diversos monumentos em solo brasileiro. Na cidade de São Paulo, estátuas de muitos bandeirantes (homens brancos que atuaram na captura de pessoas negras escravizadas, destruição de quilombos e aprisionamento de indígenas).

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    Na avenida Santo Amaro, zona sul da cidade, há uma estátua de Borba Gato, responsável por caçar, matar e escravizar negros e indígenas. Também na zona sul, em frente à Assembleia Legislativa de São Paulo, temos o Monumento às Bandeiras, obra em homenagem aos bandeirantes, que tem como marca a violência no processo de exploração do interior de São Paulo, com o assassinato em massa de indígenas ou escravização para catequização.

    Em frente ao Parque Trianon, na avenida Paulista, há uma estátua de Anhanguera, responsável por matar, estuprar e escravizar indígenas. Além dos monumentos, há ruas, avenidas e rodovias que homenageiam essas figuras e esse período da história: Bandeirantes (avenida e estrada), Raposo Tavares, Fernão Dias, Cardoso de Almeida e Anhanguera, entre outras.

    Estátua de Borba Gato em SP homenageia as cruzadas genocidas | Foto: reprodução

    Além de tantos monumentos e avenidas em homenagem ao passado escravocrata, restaurantes e até motéis também trazem símbolos racistas em seus nomes. Restaurante Senzala, em SP, Motel Senzala, em Recife (PE) e em Porto Alegre (RS), Cafeteria à Sinhazinha, em Fortaleza (CE).

    Em abril de 2017, o restaurante Senzala, criticado pelo nome, visual e cardápio em referência à época da escravidão, foi depredado por um grupo de manifestantes.

    O Motel Senzala de Recife é decorado com vários instrumentos de tortura usados no período da escravidão. O de Porto Alegre tem uma suíte intitulada de Zumbi (referência ao Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes negros do Brasil que lutou pela libertação da escravidão), além de grilhões, jaulas e correntes.

    Em Vassouras, interior do Rio de Janeiro, o Hotel Fazenda Santa Eufrásia realizava encenações romantizando o período da escravidão. Em Campinas, interior de São Paulo, última cidade a abolir a escravidão em solo brasileiro, há um Hotel Fazenda, que no período escravocrata foi casa de donos de escravos, contém, logo na entrada, uma placa com uma frase, atribuída a uma mulher escravizada, positiva sobre o seu “sinhô”.

    Cafeteria em Fortaleza | Foto: reprodução/Twitter

    À Ponte, o escritor Ale Santos, autor do livro “Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro”, explica que “o racismo brasileiro não tenta destruir um negro, ele quer destruir a negritude”.

    “Ele [racismo] faz, através do mito da democracia racial, os negros acreditarem que somos todos iguais, que tá tudo resolvido, que não tem tensão racial no país. Essa crença apaga a consciência de que você entrar em um lugar chamado ‘Senzala’ para tomar um café é a mesma coisa que um judeu entrar em um lugar chamado Auschwitz [campo de concentração da Alemanha Nazista] para dormir um pouquinho”.

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    Para o escritor, mexer nas estátuas é mexer no alicerce sobre o qual a sociedade foi construída. “Essas estátuas representam muito o conservadorismo dessas regiões. Se você tira ela desses lugares, isso mexe com o imaginário das pessoas. Então é importante buscar lugares para ressignificá-las, não como heróis, mas realmente como os crápulas que foram, para as pessoas entenderem o papel delas na dor de pessoas negras e indígenas”, aponta.

    A história brasileira, afirma Ale Santos, apaga as lutas e nega que a escravidão aconteceu. “É como se a escravidão fosse aquela coisa antiga, como se ela não tivesse criado nenhum vestígio de dor, como se ela não tivesse tido reflexo na construção da nossa sociedade”, critica.

    Ale pondera que nós, brasileiros, conhecemos muito pouco sobre os elementos supremacistas, porque a intelectualidade brasileira da época resolveu esconder. “Aliado a isso temos a ditadura, que foi um momento de muito silêncio. Depois da década de 1980 é que começamos a resgatar esses pensamentos. A redemocratização do país foi quando a gente começou a construir instituições que têm vida e poder jurídico para lutar contra essas coisas”, explica.

    Em artigo publicado na Ponte, a historiadora Larissa Ibúmi Moreira, que estuda a História Social da Diáspora Centro-africana e é autora do livro “Vozes transcendentes: Os novos gêneros na música brasileira“, afirma que o valor de um patrimônio é dado pelas relações sociais e simbólicas que giram em torno dele. “Existe aquilo que uma sociedade entende que deve preservar, que tem um motivo para preservar, e isso consiste em escolhas”.

    Ela explica a diferença entre monumentos históricos e estátuas. “Existem monumentos que são construções realizadas no passado com algum outro propósito, por exemplo, a Grande Muralha da China, mas que só posteriormente foram reconhecidas por seu valor histórico. E existem os monumentos construídos com a intenção de exaltar um acontecimento ou alguém, que é o caso, por exemplo, das estátuas”, explica.

    Para ela, as estátuas, enquanto monumento, são uma ferramenta de preservação de valores e de identidade de determinada sociedade. “A estátua de Borba Gato, por exemplo, é uma homenagem ao ‘corajoso’ bandeirante que desbravou o interior da colônia e foi um dos responsáveis pela extensão territorial do Brasil. Ele é o mesmo que escravizou e promoveu um genocídio de indígenas em suas excursões”, aponta.

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    “A questão é: qual grupo se favorece e se sente afetivamente ligado a essa memória, e qual grupo enxerga e sente na pele, através dela, os séculos de exploração e genocídio que seu próprio povo sofreu”, aponta a historiadora.

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