Pesquisa mapeou violência de gênero no ano de 2024 em nove estados do país e identificou agentes do estado entre os agressores. Especialista diz que dado é sinal de alerta sobre a atual política de segurança e a formação desses policiais

A delegada Juliana Domingues, que atuou na Delegacia Especial de Atendimento à Mulher no Rio de Janeiro, contou ter sido vítima por dois anos de estupros e agressões com cinto. O responsável pela violência era o marido dela, o tenente-coronel Carlos Eduardo Almeida Alves Oliveira da Costa.
O caso, revelado no ano passado é um dos 13 ocorridos no estado fluminense em que policiais foram os responsáveis por agressões contra mulheres. Ele é parte do relatório Elas Vivem: Um caminho de luta, divulgado nesta quinta-feira (13/3), que reuniu dados sobre a violência contra mulheres nos estados do Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo.
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Ao todo, o estudo da Rede de Observatórios de Segurança identificou 60 casos de violência contra mulheres cometidos por policiais. Em todos os estados pesquisados foram registrados casos semelhantes. A pesquisadora Bruna Sotero, uma das responsáveis pelo estudo, explica que em nem todos eles a violência ocorreu por parte de agentes que tinham relação afetiva com as vítimas. “Há casos também em que mulheres são vítimas em decorrência da ação policial”, afirma ela.
“Quando tentamos falar da experiência da mulher [com a violência], nós percebemos que a presença desse caráter bélico do Estado está em todas as esferas da sociedade. Nós ligamos o sinal de alerta para entender que política de segurança é essa que tem sido adotada. Qual é a orientação dos agentes? Como está a saúde deles? Não é normal em um estudo sobre violência contra a mulher ter dados envolvendo forças públicas”, avalia a pesquisadora.
A Ponte já revelou casos em que mulheres foram vítimas de agressão por policiais. Em novembro do ano passado, durante o velório do filho caçula, a auxiliar de cozinha Nilceia Alves Rodrigues, de 43 anos, foi agredida por policiais militares. À reportagem, ela afirmou ter levado um mata-leão de um dos policiais.
Em todo o estudo foram contabilizados dados sobre agressão verbal, cárcere privado, dano ao patrimônio, feminicídio, homicídio, sequestro, supressão de documentos, tentativa de feminicídio/agressão física, tentativa de feminicídio, tortura, transfeminicídio e violência sexual/estupro. Contudo, não há a descrição de que tipo de violência foi praticada especificamente nos casos em que o agressor é um policial.
Leia o estudo Elas Vivem: Um caminho de luta na íntegra
O Ceará é o estado em que a autoria das forças de segurança representa o maior percentual entre os casos. Foram no registrados no estado 231 casos de violência e, em 3,32% dos casos, policiais foram os autores.
Um dos casos que ganhou repercussão ocorreu em fevereiro, em São Benedito, no interior cearense. Uma mulher teve o nariz e um dos braços quebrados pelo companheiro, que é policial militar. O agente foi preso em flagrante quando tentou entrar no hospital onde a vítima estava internada.
13 mulheres são vítimas a cada 24 horas
Nos nove estados pesquisados pela Rede de Observatórios de Segurança foram registradas 4.181 vítimas em todo o ano de 2024 — o que significa dizer que, a cada dia, 13 mulheres foram vítimas de violência. A preocupação dos pesquisadores também se dá pelo aumento registrado no ano passado em relação a 2023: de 12,4%.
A tentativa de feminicídio foi o tipo de violência mais registrado — foram 1.249 casos nos nove estados. O ranking é completado por violência sexual/estupros (602), homicídios (602) e feminicídios (508).
O estudo também destaca quem era o agressor. No caso dos feminicídios, cônjuges, ex-cônjuges, namorados e ex-namorados totalizam 70% dos autores. A pesquisadora Bruna ressalta que essa é uma característica muito comum desse tipo de crime, que acaba refletindo uma dinâmica social machista. “Nós temos a predominância de um pensamento machista na nossa sociedade e isso reverbera nos números de violência contra a mulher”, diz.
A pesquisadora explica que muitas das vítimas são submetidas a um ciclo de violência que antecede a morte. O feminicídio não costuma se dar num rompante de raiva, mas sim ser o ápice de um processo que parte muitas vezes de agressões verbais e evolui para chutes, tapas, socos, tiros e a morte.
“Nós vemos toda uma estrutura, um mecanismo da sociedade deixando que a mulher fique vulnerável em ambientes que ela deveria estar segura, como é o lar e as suas relações pessoais”, diz.
São Paulo lidera violência
O estado de São Paulo é o único dos nove avaliados a registrar mais de mil casos de violência contra mulheres. No ano passado foram 1.363 — um aumento de 8,9% em relação a 2023.
Também houve aumento em todos os tipos de violência mapeados pela Rede de Observatórios. O maior deles foi o de tentativas de feminicídio, que cresceu 36%.
As principais vítimas de feminicídio em São Paulo são mulheres jovens (de 20 a 29 anos), mortas por seus companheiros ou ex-companheiros, com instrumentos como faca. A cor da pele das vítimas, na maioria dos casos, não foi identificada.
Crianças e adolescentes vítimas de estupros
No Amazonas, um outro dado alarmante: 84% das vítimas de estupro tinham entre 0 e 17 anos. No estado do Norte, foram registrados 229 casos de violência sexual no ano passado.
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São crianças como a de uma menina de 11 anos levada de uma comunidade rural para Japurá, no interior do Amazonas. A criança foi morar com um homem de 46 anos no município após a família acreditar que ela teria melhores condições de estudo. A vítima denunciou que passou a ser estuprada e alvo de ameaças. O caso foi reportado em dezembro do ano passado.