Ex-PM é condenado a 12 anos de prisão por matar jovem negro dentro de escola em SP

Tribunal do Júri entendeu que Francisco Silva praticou homicídio qualificado contra Matheus Freitas; crime aconteceu em 2016, quando estudante foi baleado após entrar em quadra de escola estadual na periferia da zona sul da capital paulista

Matheus Freitas foi assassinado por um PM com um tiro no peito, no Grajaú, na zona sul da capital, em 2016 | Foto: reprodução/Facebook

Dona Eliude Santos, 55, fechou as duas mãos em sinal de reza, encostou-as na testa e lágrimas começaram a escorrer do seu rosto. “Hoje eu senti que a justiça foi feita, fiquei seis anos só pedindo a Deus para que esse dia chegasse porque eu tinha muito medo”, declarou, aliviada, quando o juiz Paulo Fernando Deroma de Mello leu a sentença que condenou o ex-PM Francisco de Assis Pinheiro Silva, 43, a 12 anos de prisão em regime fechado pela morte do estudante universitário Matheus Santos de Freitas, 24, que foi baleado dentro de uma escola estadual da região do Grajaú, periferia da zona sul paulistana. O crime aconteceu em outubro de 2016. 

O julgamento desta segunda-feira (30/5) durou cerca de 14 horas e o acusado poderá recorrer da decisão em liberdade. O Conselho de Sentença (grupo de sete jurados que forma o Tribunal do Júri) entendeu, por maioria de votos, que Francisco praticou homicídio qualificado com recurso que dificultou a defesa da vítima e rejeitou todas as teses que os advogados que o representaram sustentaram. A pena foi fixada pelo magistrado, que também determinou a perda da função pública de Francisco, ou seja, sua expulsão da PM, o que já havia acontecido em âmbito administrativo em 2018.

Para a advogada Paula Nunes, que atuou como assistente de acusação, o resultado, “apesar de raro”, significa uma “forma de dizer que a nossa sociedade não aceita mais o assassinato dos nosso jovens negros e periféricos, que morrem todos os dias vítimas da violência policial”. “Eu tenho certeza de que se Dona Eliude pudesse escolher entre a luta por justiça ou a vida de seu filho, ela preferiria Matheus vivo, mas ontem, depois de quase 6 anos de luta por justiça, essa família conseguiu uma resposta”, declarou.

Na época do crime, em 1º de outubro de 2016, era um sábado, véspera de eleições municipais. Os três amigos de Matheus relataram que estavam em um evento da associação de moradores do bairro naquela noite e iam esperar ver um outro amigo fazer uma batalha de rap. Em determinado momento, em uma das apresentações, foi feita uma pregação e, por estarem com bebida alcoólica, não se sentiram confortáveis em permanecer no local para aguardar. Ao passarem pela praça próxima dali, disseram que ouviram um barulho de bola de basquete vindo de dentro da Escola Estadual Presidente Tancredo de Almeida Neves e decidiram pular o muro para jogar com um rapaz que estava lá. Depois, esse jovem decidiu ir embora e o grupo foi para uma outra área da escola beber vinho e conversar.

“Eu estava mostrando uma tatuagem no meu celular quando a gente ouviu um barulho e um vulto de alguém falando ‘vocês não deveriam estar aí'”, lembrou Lyndonjohson Sales de Almeida Dias, 26. “Quando eu me virei, levantei com o celular na mão, a gente só viu um clarão, que era um disparo, e saiu correndo”. Ele, Kéviny Ceglio Oliveira, 23, e Bruno da Silva Araújo, 25, disseram que conseguiram pular as duas grades de uma outra saída da escola, mas não tinham percebido que Matheus ficou para trás. Depois, notando que o estudante não tinha aparecido, olharam pela fresta do portão e viram o estudante caído, sem ter passado pela primeira grade, e que havia um policial ao seu lado pedindo “calma” e com um celular na mão como se estivesse fazendo uma ligação. Depois, pediram que o amigo que faria a apresentação de rap, Eduardo Cardoso de Assis, 34, fosse ao local verificar. “Como a gente tinha pulado o muro, a gente ficou com medo de aparecer ali de novo”, explicou Kéviny.

Segundo Eduardo, o policial disse que Matheus se feriu na lança da grade e que estava aguardando a chegada da ambulância. Os quatro rapazes foram atrás de familiares do estudante. Eles relataram que o resgate demorou aproximadamente duas horas, o que também foi corroborado pelos PMs que apareceram depois, já que o Corpo de Bombeiros errou o número da Avenida Paulo Guilguer Reimberg, onde a escola está situada, passando direto pelo local. “Quando eu cheguei lá, por volta da meia-noite, meu filho estava sendo levado pelo Samu”, lembrou Eliude. “Eu perguntei para o policial se ele tinha atirado, ele disse que não, que estava machucado por causa da lança da grade”. Porém, a mãe só soube no hospital que o filho havia sido atingido por uma bala de arma de fogo. “O médico veio e me perguntou o que tinha acontecido, eu falei que ele se machucou na grade e ele disse ‘não, ele tá com uma bala no corpo, vai em uma delegacia'”.

O caso foi comunicado e registrado no 101º DP (Jardim Imbuias) 13 horas depois do ocorrido, como lesão corporal decorrente de intervenção policial. Nele, Francisco relatou que havia sido escalado para fazer a segurança das urnas eleitorais na escola e que, por volta das 22h, saiu para o estacionamento do local para pegar um carregador de celular no carro quanto ouviu “pisadas”. Quando voltou para a sala das urnas, viu “quatro indivíduos vindo em sua direção”.

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Como as luzes estavam apagadas e só percebeu os vultos, disse que gritou “parado, polícia!”, viu que um dos quatro “sacou um objeto brilhante da cintura e veio em sua direção” e atirou, momento em que eles correram. Os três amigos da vítima, porém, disseram que em nenhum momento Francisco se identificou como policial.

Nesse momento, o soldado disse que se protegeu e depois de 15 minutos passou a rondar o pátio quando viu Matheus perto das grades da secretaria e perguntou o que ele estava fazendo ali, mas o jovem não teria lhe respondido. Pensando “tratar-se de uma segunda invasão”, Francisco usou o telefone da secretaria para acionar o apoio da PM cuja chegada o fez abrir todas as alas da escola até encontrarem Matheus, que lhe teria dito ter se machucado na lança da grade e acionaram o resgate. Matheus morreu dois dias depois.

“Eu fiquei dois anos sem conseguir dormir, agora eu conto com a ajuda da minha parceira, mas na época eu deixei a escola porque não conseguia mais entrar”, disse Lyndonjohson. “A gente está aqui por justiça, para limpar o nome dele, porque tinha vizinhança que chamava a gente de ladrão de urna e o Matheus era o cara mais inteligente, trabalhador, que eu conheci”, prosseguiu em lágrimas. Ele e os demais amigos ficaram muito abalados durante os depoimentos.

Todos os três policiais que depuseram como testemunhas de defesa confirmaram que Francisco não comunicou que fez disparo de arma de fogo no momento que chegaram, apesar de ser obrigatório no procedimento operacional padrão da corporação, o POP. “Só depois quando a gente recebeu pela rede rádio, quando tem alguém ferido a bala cai na rede da PM, para uma viatura ir fazer contato, porque tem que ser feito formalidade nesse caso, que a gente associou o menino com o que tinha acontecido”, declarou o soldado Roger de Lima, que foi ao local com o sargento Wener John Oliveira do Carmo, que fazia a supervisão dos policiais que faziam a segurança das urnas nas escolas da região.

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Esse, inclusive, foi um dos motivos da demissão do policial no procedimento administrativo disciplinar em 2018. “Assim, ao final do Processo Regular, não restaram dúvidas de que o acusado fez opção pelo uso de sua arma de fogo durante cumprimento de sua escala de serviço na Operação Eleição 2016, atingindo um indivíduo que estaria sob luminosidade precária, condição que não permitia correta identificação das pessoas que lá se encontravam ou a correta percepção dos objetos que estas tinham em seu poder, demonstrando desnecessidade do disparo ante à possibilidade do acusado ter buscado abrigo, com acionamento de apoio policial, ao invés de ter disparado contra pessoa que não se mostrava claramente perigosa em sua plenitude”, argumentou o então comandante-geral da PM coronel Marcelo Vieira Salles. “Não obstante, o acusado se quedou silente sobre o disparo efetuado e nada relatou quando do comparecimento do apoio policial militar à ocorrência”, prosseguiu.

Tanto a defesa, representada pelos advogados Paulo Lopes de Ornellas e Karem Ornellas Riccetti, quanto o Ministério Público Estadual, na figura do promotor Thomas Mohyico Yabiku, exploraram essa questão. Francisco justificou no interrogatório que não comunicou no momento porque “queria priorizar o atendimento médico” de Matheus e também porque não teria dado tempo por estar “abalado” com a situação, já que não teria relacionado o tiro com o ferimento da vítima, e que pediu ajuda a um dos policiais para fazer o talão de ocorrência interno da PM que foi registrado como “autolesão”. Só no julgamento ele mencionou, ainda, ter medo de represália porque teria prendido um homem suspeito de assassinar um policial naquela região em janeiro de 2016 e que o bairro era perigoso.

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Para o promotor, se o ex-PM tivesse dito desde o início que havia feito um disparo e que depois encontrou Matheus ferido dentro da escola, o atendimento teria sido diferente, e que os policiais têm procedimentos e treinamento a serem seguidos justamente para lidar com situações de perigo. “É impossível que o Matheus tivesse se ferido pulando a grade da escola porque não havia nenhum tipo de lança nessa primeira grade”, declarou Yabiku, mostrando uma foto da perícia do local. “Me desculpe, mas o resgate demorou duas horas, o Francisco não estava preocupado com o atendimento médico, mas contava que o disparo não fosse notado”.

Já Paulo Ornellas argumentou que a análise do caso deveria separar a punição do procedimento disciplinar do homicídio e que “só atrasou a ocorrência”. “Ele errou. Deveria ter comunicado o disparo imediatamente e perdeu a farda por isso. É uma transgressão disciplinar, não é um crime. Isso ele já pagou, perdeu o emprego, com toda a desonra da instituição”, disse. “Ser demitido da corporação é pior do que [a situação do] egresso do sistema prisional, ou a mesma coisa. Ele não consegue emprego: vai tentar entrar no serviço público, não consegue”.

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“O que estamos julgando aqui é o dolo, de que o policial militar saiu da sua casa, do seu lar, deixou sua família pensando ‘hoje eu vou sair com vontade matar”, complementou Karem Riccetti. Ela ainda criticou os depoimentos dos amigos de Matheus que relataram que a abordagem policial na periferia é diferente de bairros ricos. “Duvido que qualquer policial seja assim, de que tratam de forma diferente quem está na periferia. Agora, se coloquem no lugar do policial sozinho, num lugar perigoso. Não foi colhido prova de que ele [Matheus] morreu porque ele era negro, não tinha luz [no local para identificar as pessoas]”.

O júri, porém, acolheu as argumentações do Ministério Público Estadual para condenar Francisco. À Ponte, a defesa dele disse, por meio de nota, que “o julgamento aviltou a prova dos autos” e vai recorrer da decisão.

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