Execução do ator Pixote pela PM completa 28 anos

    Fernando Ramos da Silva foi morto aos 19 anos, após ser atingido por oito disparos de calibre 38 efetuados por um sargento e dois soldados da Polícia Militar de São Paulo
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    Foto: Ayrton de Magalhães

    O envolvimento de policiais militares em chacinas, execuções e extermínio em massa, não é um fato novo no Estado de São Paulo. Principalmente quando se trata de bairros da periferia. Há exatos 28 anos, o cinema brasileiro perdia Fernando Ramos da Silva, de 19 anos. O personagem Pixote do filme “Pixote, a lei do mais fraco”, do diretor Hector Babenco. Os assassinos: um sargento e dois soldados da Polícia Militar.

    Para a viúva de Fernando, Cida Vinâncio, com quem teve uma filha, os policiais que o mataram o tratavam como um bandido. “Quando o mataram, eles pensaram que estavam tirando de circulação um bandido perigoso”. Ela ainda diz que nada mudou e que “continuam todos os dias a matar outros pixotes menos famosos”.

    Presente ao enterro do jovem e responsável pela missa, o padre Julio Lancellotti, à época na pastoral do menor (hoje representante da pastoral do povo de rua), disse à reportagem da Ponte Jornalismo que se lembra bem do caso. “Lembro do filme, lembro do Fernando, lembro do menino que cresceu e a fama iludiu. Lembro ainda de seu corpo massacrado e de seu sepultamento.” Para o padre, Fernando foi executado assim como muitos periféricos. E ficou marcado porque se tornou um símbolo de denúncia.

    Interprete de Lilica no filme de 1981, o ator Jorge Julião diz que Fernando era um menino sonhador. À reportagem da Ponte, citou um verso da música “Força Estranha”, de Caetano Veloso, que faz parte da trilha sonora do filme e que toca no momento em que Lilica e Pixote se abraçam na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro. “Eu vi um menino correndo, eu vi o tempo… Corremos, brincamos e Fernando acreditou no sonho de uma vida melhor. Saudades de um tempo passado. Fiz parte deste sonho. Também sonhei. Ainda sonho”, afirmou.

    Com tantas mortes de jovens sonhadores como Pixote causadas por disparos de pistolas .40, que vieram a aposentar o calibre 38, o padre Lancellotti enfatiza que “a maioria dos executados são pobres, negros e da periferia, moradores de rua e indígenas”.

    Além de Fernando, sua mãe dona Josefa Ramos da Silva, perdeu em Diadema mais dois filhos vítimas da violência. Quatro meses antes de Fernando, em abril de 1987, Paulo Ramos da Silva, o Paulinho, foi morto a tiros na cidade. O crime nunca foi esclarecido. Filho mais velho de dona Josefa, Valdemar Ramos da Silva, o Dema, foi encontrado morto, aos 27 anos, dentro do porta-malas de seu Passat, em 4 de abril de 1990.

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    Foto: Ayrton de Magalhães

    A então violenta Diadema, uma das cidades mais carentes do Estado de São Paulo, que no ano de 1999 chegou a ter a taxa de 102 mortos por 100 mil habitantes (a Organização Mundial de Saúde tem como índice aceitável 10 mortos por 100 habitantes), tem conseguido dar um pouco mais de tranquilidade a seus habitantes. Em 2014, a taxa chegou a 13 mortos por 100 mil habitantes.

    O crime

    Diadema, 25 de agosto de 1987. Era meio da tarde quando os policiais militares da viatura 06374 do Tático Móvel (hoje equivalente à Força Tática), do 6° Batalhão de São Bernardo do Campo – cidade vizinha a Diadema, recebem um chamado de roubo em andamento a uma empresa no bairro de Piraporinha. A viatura lotada com seis homens, após no início do turno a viatura 06373 ter colidido contra outro carro no centro de Diadema, caça os suspeitos de cometerem tal delito.

    Após percorrer cerca de 4 quilômetros pelas ruas de Diadema, os PMs a bordo da veraneio avistam dois jovens num barranco à beira do quilômetro 16 da Rodovia dos Imigrantes. Lá estavam Fernando Ramos da Silva, 19 anos, e Marcelo Bicalho, com então 16 anos. Ao avistar os PMs, os dois correm para dentro da favela da Vila Ester, no Jardim Canhema, onde moram.

    Bicalho estava foragido da Febem (Fundação para o Bem Estar do Menor – hoje, Fundação Casa), já Ramos da Silva, era conhecido dos policiais da região, além de ter sido protagonista do filme lançado em 1981 e premiado  internacionalmente, sendo par de atrizes e atores consagrados como Marília Pera, Jardel Filho e Tony Tornado, ele havia participado no mesmo ano da novela “O amor é nosso”, da TV Globo, e já havia ficado preso por duas vezes: uma por furto de uma TV quebrada, levada da casa de um comerciante, e outra por portar um revólver. Ambas as vezes não ficou sequer uma semana na cadeia.

    Antes de alcançar o final do barranco, Bicalho é detido pelos três PMs da viatura 06374. Os outros três PMs que haviam batido com a viatura 06373 seguem no encalço de Ramos da Silva, que constantemente reclamava para a família, os vizinhos e para imprensa da constante perseguição da polícia. Ao chegar à rua 22 de Agosto, a primeira após o barranco e já próximo a sua residência, ele busca abrigo na casa número 6, uma espécie de moradia coletiva. Amigo do esposo da vizinha, ganha um cigarro; logo atrás estão de arma em punho o sargento Francisco Silva Junior, 23 anos, e os soldados Wanderley Alessi, 25, e Walter Moreira Cipolli, 23.

    A última cena de Ramos da Silva, já que a vida imite a arte, é se esconder embaixo de um estrado, que com um fino colchão por cima servia de cama para uma idosa. O esconderijo logo foi descoberto. Testemunhas disseram à época que um dos PMs dissera “achei você, agora você não escapa, Pixote”, em clara demonstração de que sabiam quem era seu perseguido. Acuado, as últimas palavras do ator teriam sido: “não me matem, por favor não me matem, eu tenho uma filha para criar”. A filha Jacqueline Ramos da Silva, havia nascido em 1985 fruto de seu casamento com Cida Venâncio.

    Os vizinhos contam que Fernando não teve tempo nem de terminar a frase, sendo baleado oito vezes. Os tiros acertaram o coração, tórax e o braço, em evidente defesa. Empurrado para fora da casa, os PMs alegam legítima defesa, e, após clamor dos vizinhos, socorrem o jovem até o Pronto Socorro de Diadema, que o recebeu morto. No 3° DP da cidade, os PMs apresentam como sendo de Ramos da Silva um revólver Smith & Wesson, calibre 32, com 4 disparos deflagrados.

    Segundo testemunhas era impossível o rapaz estar armado. Enquanto corria, sua camiseta larga branca era erguida ao corpo e em sua cintura nenhum volume ou arma. O rapaz também vestia uma calça jeans e um tênis. A fisionomia magra do jovem contrastava com a barba rala que ostentava para deixar uma aparência de mais velho.

    Após repercussão na mídia internacional, com um obituário de 38 linhas no jornal  americano The New York Times, os PMs confessaram a farsa e disseram que mataram Pixote. Também disseram que “fizeram a arma”, ou seja, dispararam um revólver frio a esmo enquanto levavam, já morto, o jovem ao hospital. Somente naquele ano, entre janeiro e agosto, 190 pessoas haviam sido mortas em supostos confrontos com a polícia no município, que ostentava uma das maiores taxas de mortes do Brasil.

    Fernando Ramos da Silva foi enterrado em 27 de agosto, com a presença de mil pessoas no cemitério municipal de Diadema, que preserva até hoje uma foto do rapaz em sua lápide. Há no Centro de Diadema um CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial Alcool e Drogas), mantido pela prefeitura com o nome do ator.

    Os PMs tiveram condenações entre seis e quatro anos, por fraude processual e por dificultar a investigação, depois reduzidas para dois anos, mas não ficaram um dia preso. Foram apenas demitidos da corporação (não foram expulsos, porém não conseguiram ser readmitidos mesmo pedindo na Justiça). A reportagem procurou os acusados, mas não conseguiu localizá-los.

    Em 3 de setembro de 1987, o jornal Folha  de S. Paulo publicou a nota de demissão dos policiais militares. Nela, o Comando da Polícia Militar informou que a demissão foi “por terem dificultado a correta elucidação dos fatos, através da alteração de dados referentes à ocorrência, bem como da o missão nas medidas necessárias no sentido de preservar a ocorrência”. Assinada pelo então chefe dos assuntos civis, o tenente coronel Julio Bono Neto, a nota continua com a mesma explicação dada hoje quando há participação efetiva de PMs em crimes. “(o comportamento) contraria normas existentes na corporação e revela nita incompatibilidade com a função policial militar”.

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    Foto: Ayrton de Magalhães

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