Decisão é baseada em ‘inconsistências’ identificadas nos depoimentos dados pelos militares, que assassinaram músico negro de 51 anos em Guadalupe, na zona norte do RJ
O CML (Comando Militar do Leste) prendeu dez dos 12 militares do Exército envolvidos no fuzilamento de um carro em Guadalupe, zona norte do Rio de Janeiro, neste domingo (7/4). Evaldo Rosa dos Santos, músico negro de 51 anos, morreu na hora, atingido por parte dos mais de 80 tiros disparados em direção ao veículo no qual estava com a família.
Segundo nota enviada à imprensa, o CML constatou inconsistências “entre os fatos inicialmente reportados [pelos militares envolvidos na ação] e outras informações” obtidas posteriormente, o que motivou a prisão em flagrante dos dez homens.
Em um primeiro momento, os militares explicaram suas versões sobre a morte de Evaldo na Delegacia de Polícia Judiciária Militar, ainda durante a noite de domingo. Na manhã desta segunda-feira (8/4), foi determinada a prisão do grupo por descumprir “regras de engajamento”, segundo o Comando, no episódio do assassinato do músico.
Evaldo estava no carro com sua esposa, o filho de 7 anos, a afilhada do casal e o sogro. A Ponte falou com um familiar logo após a execução. “Estava tendo tiroteio em Guadalupe, então eles [militares] acharam que era do carro. Eles atiraram e uma familiar minha, que pegou o filho dela e ele estava no carro, gritou: ‘É carro de família’. Não tinha vidro fumê, foi execução. Eles atiraram, só teve tempo dos outros saírem do carro, menos o marido dela, que estava de motorista. Depois que o tiro acertou, eles continuaram acertando. Tem vídeo mostrando quantos disparos foram, foi execução”, explica.
Vídeos obtidos pela reportagem mostram os momentos posteriores ao fuzilamento com a revolta dos moradores de Guadalupe. “É morador, porra!”, alerta um homem. “O Exército acaba de matar uma família agora”, diz quem registra a ação. A informação inicial é de que um veículo da mesma cor teria sido roubado na região e os militares sabiam do caso. “Pegaram os caras errados, os dois já foram”, segue o homem.
A viúva de Evaldo, Luciana dos Santos Nogueira, em entrevista ao jornal O Globo, afirma que mesmo depois de o companheiro ter sido atingido, os militares seguiram disparando totalizando os 80 tiros. “Eles ficaram de deboche. Por que o quartel fez isso? Eu falei para ele: ‘calma, amor, é o quartel’. Ele só tinha levado um tiro. Vizinhos começaram a socorrer. Mas eles continuaram atirando e vieram com arma em punho. Fui botando a mão na cabeça e gritando: ‘moço socorre meu marido’. Eu perdi meu melhor amigo”, disse.
O filho mais velho de Evaldo, Daniel Rosa, 29 anos, conta que o irmão não para de perguntar pelo pai. “Ele só repete: cadê meu pai? E eu não tenho resposta”, explica também ao jornal O Globo. “Não fazia ideia do que estava acontecendo. Foi só quando cheguei em casa que um amigo falou que tinham matado meu pai. Meu mundo desabou”, continua. “Eles [militares] têm que ser presos. Essa gente não pode ter arma na mão. São despreparados”, critica. “Vou à Alerj (Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro) e onde mais for necessário. O presidente Jair Bolsonaro disse que o Exército veio para proteger a gente e não para tirar vidas. Quero uma resposta dele também”, finaliza o entregador.
Os militares passarão por audiência de custódia na Justiça Militar da União e se enquadrarão na Lei da Câmara n° 44/2016, sancionada pelo então presidente Michel Temer (MDB) em 16 de novembro de 2017 e chamado de “licença para matar”. O texto transfere justamente para a Justiça Militar o julgamento de Casos envolvendo integrantes das Forças Armadas que praticarem crimes enquanto atuam em ações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem).
Antes da lei, aprovada pelo Congresso, o artigo 125 da Constituição determinava que crimes cometidos por militares contra civis fossem julgados em Tribunal de Júri, como acontece com policiais militares e civis que matam em serviço.
Ainda em nota, o CML explicou que o “Exército Brasileiro reitera seu estrito compromisso com a transparência e com os parâmetros legais impostos pelo Estado de Direito ao uso legítimo da força por seus membros, repudiando veementemente excessos ou abusos que venham a ser cometidos quando do exercício das suas atividades”, assegura.
A Human Rights Watch, entidade internacional de direitos humanos, divulgou declaração condenando a ação do Exército no RJ e cobrando investigação “imparcial e rigorosa”. A organização criticou o fato de os militares ficarem sujeitos à uma investigação feita por irmãos de farda, ou seja, por outros militares, contrariando normas internacionais, que apontam que “execuções extrajudiciais e outras graves violações de direitos humanos cometidas por militares das Forças Armadas devem ser investigadas por autoridades civis e julgadas em tribunais civis”.
“O delegado da Polícia Civil Leonardo Salgado disse à imprensa que no carro viajava uma “família normal”, desarmada. Nem Leonardo Salgado nem qualquer outra autoridade do sistema de justiça civil, com jurisdição independente das Forças Armadas, terá competência para investigar ou julgar o caso. A lei 13.491 de 2017, que ampliou a jurisdição da justiça militar, colocou nas mãos das Forças Armadas as investigações de homicídios cometidos por membros das Forças Armadas em operações como a do passado domingo. Além disso, qualquer julgamento seria realizado perante um tribunal que também não é independente, pois é composto por quatro oficiais militares e um juiz civil”, diz o posicionamento. “Este caso mostra, uma vez mais, a necessidade da revogação da lei de 2017”, finaliza.