Expedidor de mercadorias é condenado em SP apenas por reconhecimento irregular

Denilson Lucas, 24 anos, foi condenado a 8 anos de prisão por roubo; câmeras corporais mostraram conversa em que PM parece induzir as vítimas: “se falar ‘ah, eu não conheço ele, ele sai pela porta da frente e vocês vão ter um ‘lobo’ na rua”

Denilson Lucas Ferreira da Silva
Denilson Lucas Ferreira da Silva foi preso em junho do ano passado | Foto: Arquivo pessoal

O sustento da família vinha do trabalho de Denilson Lucas Ferreira da Silva, 24 anos. Com o salário que recebia como expedidor de mercadorias, ele pagava as contas da casa em que vivia com a esposa Vittoria Aparecida Santos Carvalho, 24, e com as duas filhas de três anos e 11 meses. O jovem também estava ajudando a mãe, que tinha aberto há poucos meses uma lanchonete. O estabelecimento fechou depois que Denilson foi preso e condenado por roubo. A sentença é baseada apenas em reconhecimento pessoal, que, neste caso, tem indícios de que teria sido feito à margem do que diz o Código de Processo Penal (CPP).

“Nós como família ficamos revoltados, essa é a palavra. Meu esposo trabalhava, ele não precisava fazer isso. Ele não fez nada disso”, conta Vittoria.

No dia 1º de junho do ano passado, a esposa conta que Denilson passou a manhã em família. O casal dividiu-se nas tarefas domésticas e nos cuidados com as filhas. Essa era a rotina matinal do jovem que trabalhava no período noturno. 

Por volta das 14h, ele foi até o portão do imóvel entregar as chaves ao cunhado. Enquanto conversavam, dois homens chegaram e convidaram o expedidor para fumar maconha. Ele conhecia a dupla e os acompanhou até a rua, poucos metros distante de onde vivia. 

Vittoria lembra que, ao perceber que o marido estava saindo, gritou para que ele comprasse leite. Pouco depois, o som das brincadeiras feitas pelas filhas foi interrompido pelo estrondo alto de sirenes. 

“Eu estava em casa com as minhas duas bebês, esperando ele voltar com o leite, quando ouvi bastante barulho de viatura. Em nenhum momento me passou pela cabeça que seria algo com meu esposo”, diz. 

Denilson foi preso perto de casa, segundo o relato dele em juízo, enquanto se deslocava para o mercado. Ele foi abordado por policiais que minutos antes tinham recebido do Centro de Operações da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Copom) um chamado sobre um roubo ocorrido na Rua Antônio Palmieri, na Vila Medeiros, zona Norte de São Paulo. A dupla passou a andar pela região procurando por possíveis suspeitos.

O roubo aconteceu quando um Fiat Palio bateu na traseira de outro veículo. A motorista do carro atingido e as duas passageiras desceram, momento em que foi anunciado o assalto por dois suspeitos. Elas tiveram pertences como bolsas, cartões e relógios levados.

Em depoimento, os policiais Genilson Soares de Oliveira e Flávio Rezende Carvalho Simões Leal contaram que faziam patrulhamento quando afirmam terem visto Denilson próximo de um carro que batia com a descrição do usado no crime. Os cabos voltaram ao local onde o veículo estava estacionado e abordaram o jovem, que já estava um pouco distante dali. 

No carro, afirmam ter encontrado dois cartões e um relógio, que depois se confirmou ser de uma das vítimas. Denilson negou que tivesse relação com o crime. Ao perceber que seria encaminhado à delegacia, ele tentou correr, conforme mostram as imagens das câmeras corporais dos policiais, às quais a Ponte teve acesso. 

Denilson foi imobilizado e caiu no chão. As imagens não mostram o que aconteceu depois porque a câmera caiu no chão. Mesmo assim, é possível ouvir o jovem negando que tenha feito o assalto. “Estão tentando me forjar”, diz repetidamente.  

A defesa de Denilson teve acesso às imagens das câmeras, que só passaram a integrar o processo após o pedido da defensora. Contudo, não foi o bastante para convencer a juíza Adriana Costa, da 32ª Vara Criminal, que condenou o jovem a oito anos de prisão em regime fechado. Ela também condenou o Denilson por resistência a dois meses de prisão em regime semiaberto e o absolveu do crime de lesão corporal. Os dois últimos eram atrelados a forma como o expedidor reagiu ao ser preso.

A sentença teve como base um inquérito concluído apenas um dia após o crime. Sem pedir diligências, o delegado Milton Elmokdisi Machado de Araújo, do 73º D.P. (Jaçanã), indiciou Denilson com base no reconhecimento feito por uma das três vítimas do roubo.

A apuração policial sequer respondeu de quem era o carro onde os pertences foram encontrados; se havia câmeras que registraram a cena narrada pelos policiais e também não pediu as imagens das câmeras corporais acopladas às fardas dos agentes.

No auto de reconhecimento da única vítima que reconheceu Denilson não são descritas as características do suspeito. Apenas é dito que o jovem foi imediatamente reconhecido. O inquérito também não aborda nada sobre a segunda presente no assalto.

O promotor Vagner Santos Queiroz não fez nenhum questionamento ao relatório policial e ofereceu denúncia no mesmo dia.

As câmeras nas fardas também registraram um diálogo entre eles e as vítimas antes do procedimento. Primeiro, um policial pergunta se a foto de Denilson foi mostrada às vítimas. Não é possível entender a resposta. Na sequência, após explicar o protocolo, ele diz: “É aquele negócio, se falar ‘ah, eu não conheço ele, ele sai pela porta da frente e vocês vão ter um ‘lobo’ na rua aí de novo”. Com base na imagem não é possível dizer qual dos dois PMs teve a conduta (veja vídeo acima).

Vittoria conta que chegou na delegacia antes do marido, mas que as vítimas já estavam no local. Segundo ela, Denilson foi visto por elas antes que o reconhecimento fosse realizado. “Elas viram o meu esposo antes mesmo do reconhecimento. O policial as cumprimentou na hora em que estava entrando com o meu esposo”, conta. 

Na audiência, que ocorreu em novembro, as três vítimas reconheceram Denilson. Uma delas pelas tatuagens e pela cor da blusa que ele estava usando na audiência, porque era semelhante à do dia do crime. Segundo a esposa de Denilson, ele vestia o uniforme padrão da unidade onde estava, composto por blusa branca e moletom cor cáqui.

Imagens das câmeras mostram que primeiro Denilson estava com uma blusa laranja e depois ele ficou sem camisa durante o tempo que ficou em posse dos PMs. 

O CPP, em seu artigo 226, regulamenta como deve ser feito o reconhecimento pessoal. A pessoa que vai fazer o processo deve primeiro descrever o suspeito. O segundo passo é colocar quem se pretende identificar ao lado de outras que com ela tiverem semelhanças.

A pedido da Ponte, a advogada criminalista Débora Roque, que integra a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, analisou o processo. Ela destaca que o reconhecimento pessoal não pode ser a única prova para amparar um processo. “O reconhecimento pessoal, ainda que cumprido as disposições do art. 226 do Código Penal, não deveria servir para amparar condenações, quando for a única prova do processo. Por situações como essas é que podemos acompanhar vários casos de condenações injustas”, diz.

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“A pergunta principal em um Estado Democrático de Direito que devemos sempre fazer é: quais provas são suficientes para comprovar a participação de alguém em um crime? O Estado Democrático de Direito, para ser efetivo, necessita haver um processo penal parcial, e com procedimentos que permitam a certeza de que a pessoa condenada cometeu sim o crime pelo qual foi acusada”, acrescenta. 

Lutando para provar a inocência do marido, Vittoria se prepara para comemorar o aniversário da filha mais nova sem Denilson. A criança completa um ano no próximo dia 28. “É muita injustiça”, desabafa. 

O que dizem as autoridades 

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública (SSP-SP), o Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Tribunal de Justiça do Estado São Paulo (TJ-SP) abordando os questionamentos trazidos ao longo da reportagem, além de solicitar entrevistas com os PMs, o delegado, o promotor e a juíza do caso (todos negados).

Em nota, a SSP disse que as investigações conduzidas na 73° DP (Jaçanã) “foram realizadas sem irregularidades”. “Na ocasião, o indiciado foi conduzido em flagrante pela PM e reconhecido pela vítima como o autor. Após o flagrante, o homem passou por audiência de custódia, onde teve a prisão preventiva decretada pela Justiça. Todos os direitos constitucionais do autor foram respeitados”, escreveu a pasta.

O Ministério Público, em nota, que “se algum reparo existe à sentença, este será efetivado pelo Tribunal”. “A defesa apelou em 01/12/23, houve contrarrazões em 04/12/23 e, em 29/01/24, o relator deferiu prazo para a defesa complementar as suas razões, toda a matéria pertinente está sendo debatida pelas partes, no processo, mediante o contraditório e devido processo legal. se algum reparo existe à sentença, este será efetivado pelo Tribunal”, apontou o órgão.

Já o TJ-SP disse que o magistrados não podem se manifestar fora dos autos, por vedação da Lei Orgânica da Magistratura (Loman).

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