Estudo destaca necessidade de reformar o sistema de perícia técnico-científica no Brasil e a importância dela em casos de mortos pelo Estado e desaparecidos
No Brasil, os crimes contra a vida, de uma forma geral, têm baixo índice de resolução, em média 6%. Quando falamos nos mortos pela polícia, temos que 96% dos casos são arquivados. Uma investigação que não dá em nada é a receita para a impunidade. Um dos caminhos para solucionar o problema é o fortalecimento e a autonomia do trabalho da perícia técnico científica, elementos vistos como fundamentais para “combater práticas de investigação que reproduzem violências estruturais e históricas, como o racismo, o machismo, a LGBTfobia”.
Essas são algumas das conclusões centrais do relatório “Políticas públicas de Perícia Criminal na garantia dos direitos humanos”, de autoria de Flávia Medeiros, professora na Universidade Federal de Santa Catarina e InEAC – Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos. A pesquisa teve apoio do Núcleo Monitora CNV (Comissão Nacional da Verdade) do Instituto Vladimir Herzog e foi lançada na terça-feira passada (4/8) em uma live.
Dividido em quatro capítulos, o estudo aponta o cenário pericial no Brasil, suas principais lacunas, as iniciativas legislativas que já foram propostas para corrigir alguns rumos, a questão da cadeia de custódia (o registro de toda etapa pela qual uma prova, ou “indício material”, passou desde o local do crime, coleta e análise) e a ausência de autonomia dos órgãos periciais.
Um dos casos recentes de homicídio em que a perícia foi fundamental para elucidar os fatos foi a morte de João Pedro Matos, 14 anos, no Morro do Salgueiro, em São Gonçalo. A polícia assassinou o garoto dentro da casa da família e foi o trabalho pericial que apontou divergências entre a versão oficial e o que de fato aconteceu, abrindo espaço para constatar que houve abuso do Estado naquela ação. Foi também a perícia que conseguiu saber qual o tipo de arma usada para assassinar a vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018, possibilitando mais um elemento para chegar aos executores.
Dos 27 estados, 18 (Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins) têm a perícia técnico-científica autônoma da Polícia Civil, mas vinculada à Secretaria Estadual de Segurança Pública, como Polícia Técnico-Científica. Em outros 9 estados (Acre, Amazonas, Distrito Federal, Espírito Santos, Maranhão ,Minas Gerais, Piauí, Rio de Janeiro e Roraima), a perícia tem seus órgãos funcionando como um departamento ou superintendência dentro da própria Polícia Civil.
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Flávia Medeiros afirma que o relatório deve servir como uma ferramenta para a sociedade nesse debate sobre a perícia técnico-científica. “A importância da autonomia da perícia criminal é uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, pondera.
O estudo traz alguns dados que exemplificam alguns tópicos do diagnóstico do cenário pericial. Um deles diz respeito ao baixo índice de resolução de casos de homicídios em São Paulo, quando, em 2017, segundo o Instituto Sou da Paz, 34% dos homicídios dolosos registrados em São Paulo geraram denúncia e 5% foram julgados.
Já outra questão, que é o contingente de profissionais da perícia, traz o quadro do Mato Grosso do Sul, onde “há um déficit de quase 63% no
número de peritos criminais e 70% de déficit de peritos médicos
legistas, de acordo com levantamento feito em 2018″. Poucos profissionais acabam acarretando um trabalho menos qualificado, “falta de atendimentos e atraso na emissão de laudos”, destaca o estudo.
Flávia destaca a preocupação em fortalecer a investigação na busca pela verdade porque um crime contra a vida tem, além da vítima, os sobreviventes, ou seja, as pessoas próximas, os familiares, que ficaram.
“[É importante debater] de que forma a atuação da perícia tem sido reprodutora de práticas que regulam e legitimam as violências que reproduzem a práticas de violações de direitos humanos. A gente teve essa perspectiva de discutir a dimensão da perícia considerando a estrutura das instituições e como, no momento presente, conseguimos e ainda podemos observar como o racismo e a violência se institucionaliza, em como o Estado lida com esses conflitos, muitos deles que redundam em morte”, explica.
Há no trabalho de Flavia também o destaque para os desaparecimentos forçados, que, para a autora, merecem atenção particular, pois a ausência do corpo se configura na “falta de materialidade do fato, que por sua vez, demanda uma investigação específica sobre o paradeiro da vítima e sua possível descoberta”.
Neste trecho, um dos exemplos dados sobre como o trabalho de perícia adequado pode vir a ser um elemento fundamental para a recuperação da memória e verdade foi o caso do Grupo de TRabalho de Perus, encabeçado pelo CAAF (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense), onde a partir da vala clandestina do cemitério Dom Bosco, foram encontradas 1.049 ossadas enterradas clandestinamente pelo regime militar. Foi esse trabalho que possibilitou devolver a famílias como a de Dimas Antônio Casemiro, vítima da ditadura, puderam, ainda que tardiamente, enterrá-lo.
No final do estudo, Flavia Medeiros deixa algumas recomendações para aprimorar o trabalho da perícia no Brasil. Grande parte delas incide na questão da autonomia do trabalho da perícia. Flávia sugere revisar o termo “Polícia Científica” e retomar a discussão sobre o desenho de uma perícia independente da polícia ou das secretarias de segurança pública; fortalecer convênios de instituto de perícias com universidades públicas; criação de planos de carreira e melhoria nos salários; reavaliar a importância dada ao inquérito policial, muitas vezes usado para construir uma “verdade” enviesada, construindo mecanismos mais eficazes de registro, investigação e indiciamento de suspeitos, em que perícia se reporte aos agentes do Judiciário (promotoria e Justiça); e a criação de centros de perícia autônomos nos mesmos moldes do CAAF.