Família afirma que motoboy negro preso há seis meses na Grande SP é inocente

    Thiago Henrik foi acusado de três roubos após fugir de abordagem policial por não ter carteira de habilitação; reconhecimento foi irregular, aponta advogada

    Thiago Henrik está preso desde agosto do ano passado | Foto: arquivo pessoal

    O motoboy Thiago Henrik Rangel Leite, 19 anos, está preso desde o dia 1º de agosto de 2019, suspeito de cometer três roubos a mão armada em São Bernardo do Campo, cidade na Grande São Paulo. Ele foi detido próximo de casa, na Vila Moraes, zona sul da capital paulista. A família afirma que ele foi confundido com outra pessoa durante perseguição policial.

    De acordo com a mãe do rapaz, a dona de casa Melissa Rangel Leite, 41 anos, Thiago seguia uma rotina que não bate com os horários dos crimes. “Ele ficou o dia todo jogando videogame na casa do amigo que fica na rua de baixo, depois foi buscar o filhinho da Samara [namorada] na creche umas 18h50, deixou na casa dela e veio pra casa tomar banho”, lembra. “Ele tomou banho, tirou foto em frente ao espelho, mandou pra Samara, conversou com ela pelo Whatsapp bastante tempo. Daí foi por gasolina na moto para deixar pronta para quando chamarem. Mas acho que ele nem chegou a por a gasolina no posto, porque no caminho a polícia já começou a perseguição”, conta.

    No boletim de ocorrência, os policiais militares Rodolpho Piton Coelho e Vanessa Sousa de Queiroz, do 6º Batalhão de São Bernardo do Campo (Grande SP), disseram que foram avisados por rádio sobre vários roubos no bairro Anchieta. Uma outra viatura que estaria atendendo uma das vítimas informou que o celular roubado possuía sistema de localização.

    Os PMs afirmaram que, ao seguir o GPS do aparelho, chegaram à rua Honório Serpa, na zona sul de São Paulo, e viram Thiago, que teria fugido assim que percebeu a presença da dupla. A perseguição teria terminado na travessa Carlos Antônio Marini, onde os policiais afirmam que o jovem teria abandonado a moto e sido detido ao fugir a pé. Durante revista, teriam encontrado o aparelho no bolso da calça de Thiago.

    No documento, os PMs alegam que retornaram à rua Honório Serpa porque o rapaz teria dito que teria escondido os outros três aparelhos de celulares roubados, além de quatro alianças, em duas árvores. Thiago, no entanto, nega que tenha confessado os crimes e que só fugiu da abordagem por não ter carteira de habilitação. Ele teve medo de perder a moto, de cor prata, para trabalhar.

    Os assaltos teriam acontecido sequencialmente às 19h, na rua Warner; às 19h30, na rua do Túnel; e às 19h35, na rua Copacabana, todas em São Bernardo do Campo. No 26º DP (Sacomã), das seis vítimas, quatro reconheceram Thiago num procedimento que não seguiu os parâmetros estabelecidos no CPP (Código de Processo Penal). O casal que não reconheceu o motoboy foi o único a descrever, em outro boletim de ocorrência feito antes da abordagem policial, as características do assaltante: homem de cor parda, 1,65 m de altura, olhos castanhos escuros, cabelo ondulado curto, bigode fino, calça jeans e moletom. As demais vítimas apenas apontam que um indivíduo armado numa moto as abordaram.

    Em documento, a delegada Simone Hee Suh informa que Thiago foi reconhecido ao lado de outras pessoas, embora não tenham sido detalhadas as características do suspeito de praticar os roubos, como prevê o CPP. A Ponte tentou contato com todas as vítimas e apenas uma, que apontou ter reconhecido Thiago, aceitou falar com a reportagem. A pessoa disse que ele estava sozinho na sala e que o assaltante estava numa moto preta.

    Apenas Thiago foi mostrado para as vítimas, situação que está fora do que determina a lei, na qual um suspeito deve ser colocado ao lado de outras quatro pessoas de características físicas similares para ser então reconhecido. Nenhuma arma foi apresentada pelos policiais como tendo sida usada pelo rapaz nos crimes.

    Uma testemunha da abordagem ouvida pela Ponte conta que os PMs agrediram Thiago. “O policial estava colocando um revólver nele, falando ‘esse revólver é seu’ e ele dizendo que não. Eles bateram e chutaram. Fomos chamar a mãe do Thiago”, afirma a auxiliar de cozinha Andreia Gerônimo Santos, 42 anos. Ela estava em um bar e observava os filhos brincarem na hora em que os policiais pararam Thiago.

    No laudo do IML (Instituto Médico Legal), foi detectado que o motoboy tinha “escoriação em região cervical” e, ao ser questionado sobre as lesões, Thiago disse que tentaram enforcá-lo.

    A mãe de Thiago, Melissa Rangel Leite, conta que estava em casa quando soube da prisão de Thiago. Ela tinha acabado de ouvir um carro passar rápido, em seguida uma moto. “Subiu uma moto preta, o cara tava de roupa preta, capacete preto, tudo preto. E a polícia atrás subindo. Daqui a pouco, sobe uma mulher gritando ‘moça, sobe lá no beco que a polícia tá matando o Thiago’. Aí o meu marido tinha acabado de chegar do serviço, ele tava de moto e foi na frente. Eu fui atrás, a pé”, relembra Melissa.

    Quando o pai chegou, os policiais também teriam apontado uma arma para ele, segundo a mãe. “Não deixaram eu chegar perto. Eu cheguei, o Thiago tava todo machucado, aqui assim [esfrega o pescoço]. A mulher disse que viu o policial enforcando ele. Ficamos ali um tempão, eu perguntando o que estava acontecendo, eles não respondiam”, afirma.

    No dia 16 de setembro de 2019, a mãe denunciou na Ouvidoria da Polícia de São Paulo que um dos policiais afirmou que a moto de Thiago, de cor prata, não era a usada no crime, que seria preta. Em resposta, outro PM teria dito que daria prosseguimento à ocorrência. “Agora vai ser esse”, em referência a Thiago. Em seguida, teriam dado duas opções para o jovem: “Você escolhe se vai segurar o B.O. [a acusação de roubo] ou a arma”, ainda de acordo com a versão da dona de casa. Na delegacia, um dos policiais teria apagado o histórico de localização do celular de Thiago.

    A delegada Simone Hee Suh determinou a prisão em flagrante de Thiago com base no depoimento dos policiais e no reconhecimento das vítimas. Em audiência de custódia no dia 2 de agosto, o juiz Pedro Luiz Fernandes Nery Rafael converteu a prisão em flagrante em prisão preventiva. A advogada do jovem, Ana Michaela Simons Jacomini, questiona a decisão sob o argumento de que ele é réu primário, trabalha, tem residência fixa e poderia responder em liberdade.

    Segundo a defesa, a inocência dele é comprovada pela foto enviada quando buscou o enteado no CEU (Centro Educacional Unificado), no Parque Bristol, por volta das 19h. A advogada chegou a solicitar imagens de câmeras de segurança do CEU, o TJ acatou o pedido, porém, a Secretaria Municipal de Educação informou que as imagens controladas por uma empresa terceirizada não estavam mais disponíveis, já que ficaram armazenadas no equipamento por um período de 30 dias.

    Outro ponto destacado pela defensora é que Thiago usava camiseta amarela, capacete rosa e moletom cinza, e o suspeito estava de preto. Além disso, Thiago só se tornou suspeito, segundo a versão da defesa, depois de passar pelo assaltante em fuga.

    A versão de Thiago não convenceu o Ministério Público de São Paulo, que optou por denunciá-lo por dois do três roubos no último dia 20 de janeiro. De acordo com a promotora Roseli Naldi Souza, da 2ª Vara Criminal de São Bernardo do Campo, Thiago roubou as quatro mulheres. Apenas o crime contra o casal é que não ficou comprovado, na visão da promotoria.

    Segundo Roseli, os relatos firmes das vítimas e o reconhecimento “sem quaisquer dúvidas” sustentam a prática do crime, bem como o depoimento dado pelos PMs. “Ressalto que a palavra dos policiais há que ser
    acolhida, notadamente porque não haveria razão para policiais acusarem o apelante (Thiago) injustamente”, sustenta a promotora com base na “fé pública” conferida aos PMs. Com base no conceito de fé pública, 75% dos casos de pessoas condenadas por tráfico de drogas têm como base de prova apenas a versão dos policiais.

    Se por um lado Roseli Naldi Souza deu valor à fala dos PMs, o mesmo não pode ser dito quanto ao depoimento de Thiago, classificado pela promotora como “pouco crível”. Ainda definiu que a defesa não obteve êxito ao apresentar foto de outro possível autor dos crimes, que não foi reconhecido. “Ao contrário, as vítimas reforçaram a identificação do acusado e insistiram que os olhos do acusado, como do autor que as vitimaram, eram idênticos, marcantes e bem distintos daquele da fotografia”, sustenta.

    Thiago segue preso no CDP (Centro de Detenção Provisória) 2 de Guarulhos, cidade na Grande São Paulo.

    Reconhecimento questionável

    Para a advogada criminalista Maíra Pinheiro, o há um erro no reconhecimento adotado neste caso, classificado por ela como “show up”, quando a pessoa é colocada sozinha em frente à vítima. “É um tipo que dá margem para muito erro, ainda mais quando o administrador do reconhecimento, que está com a testemunha, informa que aquele é o provável suspeito”, afirma, sobre os policiais.

    Maíra explica que não há dúvida quanto ao crime cometido neste caso, pois as vítimas foram, de fato, roubadas. O que não está comprovado, segundo ela, é a autoria de Thiago. “Ao valorar as provas da inocência e da culpabilidade, a balança tem que pender para a inocência pelo tipo de prova produzida e consistência da dúvida, no mínimo, que se coloca”, explica, dizendo que a inocência foi “razoavelmente provada”.

    A criminalista ainda vê erro na Justiça em deixá-lo preso até a comprovação de que ele seja condenado pelo crime. Ela lista o fato de ser réu primário sem antecedentes, um álibi que provaria sua inocência e a foto com a criança. “O réu deveria estar em liberdade provisória”, sustenta.

    O advogado André Lozano, integrante do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), traz a questão racial como um ponto importante. Segundo ele, o reconhecimento feito entre pessoas de raças diferentes pode acarretar em falhas. “A pessoa de uma raça diferente tende a ter dificuldades de reconhecer diferenças em pessoas de outra raça. Por isso que se fala que japonês é tudo igual, por exemplo”, exemplifica.

    Para ele, uma questão importante é que as vítimas falam que Thiago Henrik estava com outra roupa na hora do crime. “Deu tempo de trocar de roupa?”, questiona. “A palavra das vítimas serve como prova, ainda que com valor um pouco menor”, prossegue.

    A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, administrada pelo general João Camilo Pires de Campos no atual governo de João Doria (PSDB), sobre a prisão de Thiago Henrik. Em nota, a pasta confirma o motivo da prisão e a data da prisão.

    “Seis vítimas compareceram à delegacia e quatro o reconheceram pessoalmente, além dos pertences de todas elas terem sido encontrados com o autor”, apontou a secretaria.

    A reportagem solicitou um posicionamento do MP sobre as acusações feitas ao jovem, mas a assessoria de imprensa do órgão não respondeu.

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