Família de Pixote espera por indenização há 29 anos

    “Os policiais tiraram de mim a oportunidade de ter um pai para me abraçar, me beijar, conversar”, afirma filha do ator

    Fernando e a filha Jaqueline
    Fernando e a filha Jaqueline

     

    Há exatamente 29 anos, às 17h50 do dia 25 de agosto de 1987, o ator Fernando Ramos da Silva, o Pixote, com então 19 anos, saía de cena tombado por oito tiros disparados à queima-roupa, de três revólveres calibre 38 de propriedade do governo do Estado de São Paulo. O armamento hoje obsoleto, estava sob a responsabilidade de um sargento e dois soldados do Tático Móvel da Polícia Militar. O jovem ficou conhecido do público por interpretar o Pixote, um menino de rua no filme “Pixote, a lei do mais fraco” (1981) do diretor Hector Babenco, falecido em julho deste ano.
    Passadas quase três décadas, a família ainda luta pelo direito de receber uma indenização já autorizada pela Justiça por danos morais. O valor, somado aos atrasados da pensão vitalícia entre 1987 e 2013, se tornaram precatórios, ou seja, valores devidos pelo Estado após condenação definitiva.

    Em resposta ao questionamento da reportagem, a Procuradoria-Geral do Estado informou que, “segundo nossa subprocuradoria geral do Estado da Área do Contencioso Geral, a fase de execução já se encerrou com o acolhimento parcial dos embargos apresentados pela Fazenda do Estado de São Paulo (FESP). Foi expedido ofício requisitório devendo se aguardar o pagamento de acordo com a ordem cronológica”.

    Esposa de Ramos da Silva, Cida Venâncio conta que, após anos de batalha com advogados e idas e vindas ao fórum passou a receber em 2014 dois salários mínimos de pensão vitalícia pagas pelo governo. Porém, a lentidão da Justiça fez com que a filha do casal, Jaqueline Fernanda da Silva, que tinha apenas dois anos quando o pai foi executado, não tivesse mais direito a receber igual valor. Nascida em 1985 e atualmente com 31 anos, ou 29 quando teve início o pagamento, ela extrapola o limite de idade, que é de 25 anos.

    foto abre Pixote
    Fernando com esposa e filha

    Avessa à entrevistas e aparições, Jaqueline falou sobre o delicado tema com a Ponte Jornalismo. “Eu gosto de ouvir pessoas falando bem do meu pai. Eu sempre sinto muita falta dele. Os policiais tiraram de mim a oportunidade de ter um pai para me abraçar, me beijar, conversar. Sinto um vazio no meu coração por isso. Principalmente, no dia dos pais, quando vejo todo mundo indo comemorar com seu pai e, eu a única coisa que posso dar para meu pai é uma flor, acender uma vela e muita oração”, diz.
    Sem a ajuda financeira do marido que, quando executado desenvolvia pequenos trabalhos na região para sustentar a família, Cida desmente o que muitas vezes foi dito na imprensa, de que Babenco os teria abandonado. “Mentira. Hector Babenco foi um pai para a família. Ajudava em tudo. Sempre presente. Nunca deixou faltar nada. Inclusive, pagou todos os estudos da Jaqueline”, diz.
    “Quando eu tinha sete anos sempre sonhava com meu pai e no meu sonho ele brincava muito comigo. Quando eu acordava minha avó falava que eu a noite ficava rindo muito e depois eu chorava e falava não vai pai, fica só mais um pouco comigo”.
    Atualmente, Jaqueline está casada e morando na casa em que Ramos da Silva construiu no Jardim Canhema, em Diadema, na Grande São Paulo, com o cachê que recebeu pela participação no filme de Bebenco, além de uma ponta em “Eles não usam black-tie” (1981), de Leon Hirszman, e na novela o “Amor é nosso” (1981) da TV Globo, em que interpretou o personagem Pingo.

    “Minha avô fez tudo por mim na medida do possível dela. Minha avó foi o pai que eu não tive. Meu pai para mim é meu herói. Sempre vai ser. Sou fã número um dele. Fã de carteirinha”, finaliza.
    Dona Josefa Carvalho da Silva, faleceu há três anos, pouco depois da ação condenatória de indenização sair. Em tempo de saber que a morte de seu filho foi aceita pela Justiça paulista como uma execução, um erro do Estado em ter admitido nas fileiras da Polícia Militar o ex-sargento Francisco da Silva Junior e os ex-soldados Wanderley Alessi e Walter Moreira Cipolli. Dona Josefa, como era conhecida, morreu com mais de 70 anos, e foi enterrada no cemitério municipal de Diadema, o mesmo em que foram sepultados três de seus filhos homens, entre 1987 e 1990, também vítimas da violência urbana.

    O crime

    Diadema, 25 de agosto de 1987. É meio da tarde quando os policiais militares da viatura 06374 do Tático Móvel (hoje equivalente à Força Tática), do 6° Batalhão de São Bernardo do Campo – cidade vizinha a Diadema, recebem um chamado de roubo em andamento a uma empresa no bairro de Piraporinha. A viatura lotada com seis homens, após no início do turno a viatura 06373 ter colidido contra outro carro no centro de Diadema, caça os suspeitos de cometerem tal delito, de acordo com o relato no livro “Rota 66 – A história da polícia que mata” (1992), do jornalista Caco Barcellos.

    Após percorrer cerca de quatro quilômetros pelas ruas de Diadema, os PMs a bordo da veraneio avistam dois jovens num barranco à beira do quilômetro 16 da Rodovia dos Imigrantes. Lá estavam Fernando Ramos da Silva, 19 anos, e Marcelo Bicalho, com então 16 anos. Ao avistar os PMs, os dois correm para dentro da favela da Vila Ester, no Jardim Canhema, onde moram.

    Fernando e mãe, Dona Josefa
    Fernando e mãe, Dona Josefa

    Bicalho estava foragido da Febem (Fundação para o Bem Estar do Menor – hoje, Fundação Casa), já Ramos da Silva, era conhecido dos policiais da região, além de ter sido protagonista do filme lançado em 1981 e premiado internacionalmente, sendo par de atrizes e atores consagrados como Marília Pera, Jardel Filho e Tony Tornado, ele havia participado no mesmo ano da novela “O amor é nosso”, da TV Globo, e já havia ficado preso por duas vezes: uma por furto de uma TV quebrada, levada da casa de um comerciante, e outra por portar um revólver. Ambas as vezes não ficou sequer uma semana na cadeia.

    Antes de alcançar o final do barranco, Bicalho é detido pelos três PMs da viatura 06374. Os outros três PMs que haviam batido com a viatura 06373 seguem no encalço de Ramos da Silva, que constantemente reclamava para a família, os vizinhos e para imprensa da constante perseguição da polícia. Ao chegar à rua 22 de Agosto, a primeira após o barranco e já próximo a sua residência, ele busca abrigo na casa número 6, uma espécie de moradia coletiva.Logo atrás estão de arma em punho o sargento Francisco Silva Junior, 23 anos, e os soldados Wanderley Alessi, 25, e Walter Moreira Cipolli, 23.

    A última cena de Ramos da Silva, já que a vida imite a arte, é se esconder embaixo de um estrado, que com um fino colchão por cima servia de cama para uma idosa. O esconderijo logo foi descoberto. Testemunhas disseram à época que um dos PMs dissera “achei você, agora você não escapa, Pixote”, em clara demonstração de que sabiam quem era seu perseguido. Acuado, as últimas palavras do ator teriam sido: “não me matem, por favor não me matem, eu tenho uma filha para criar”. A filha Jacqueline Fernanda da Silva, havia nascido em 1985 fruto de seu casamento com Cida Venâncio.

    Os vizinhos contam que Fernando não teve tempo nem de terminar a frase, sendo baleado oito vezes. Os tiros acertaram o coração, tórax e o braço, em evidente defesa. Empurrado para fora da casa, os PMs alegam legítima defesa, e, após clamor dos vizinhos, socorrem o jovem até o Pronto Socorro de Diadema, que o recebeu morto. No 3° DP da cidade, os PMs apresentam como sendo de Ramos da Silva um revólver Smith & Wesson, calibre 32, com 4 disparos deflagrados.
    Segundo testemunhas era impossível o rapaz estar armado. Enquanto corria, sua camiseta larga branca era erguida ao corpo e em sua cintura nenhum volume ou arma. O rapaz também vestia uma calça jeans e um tênis. A fisionomia magra do jovem contrastava com a barba rala que ostentava para deixar uma aparência de mais velho.

    Após repercussão na mídia internacional, com um obituário de 38 linhas no jornal americano The New York Times, os PMs confessaram a farsa e disseram que mataram Pixote. Também disseram que “fizeram a arma”, ou seja, dispararam um revólver frio a esmo enquanto levavam, já morto, o jovem ao hospital. Somente naquele ano, entre janeiro e agosto, 190 pessoas haviam sido mortas em supostos confrontos com a polícia no município, que ostentava uma das maiores taxas de mortes do Brasil.

    Fernando Ramos da Silva foi enterrado em 27 de agosto, com a presença de mil pessoas no cemitério municipal de Diadema, que preserva até hoje uma foto do rapaz em sua lápide. Há no Centro de Diadema um CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial Alcool e Drogas), mantido pela prefeitura com o nome do ator.

    Os PMs tiveram condenações entre seis e quatro anos, por fraude processual e por dificultar a investigação, depois reduzidas para dois anos, mas não ficaram um dia preso. Foram apenas demitidos da corporação (não foram expulsos, porém não conseguiram ser readmitidos mesmo pedindo na Justiça).

    A reportagem procurou os acusados, mas não conseguiu localizá-los. Em 3 de setembro de 1987, o jornal Folha de S. Paulo publicou a nota de demissão dos policiais militares. Nela, o Comando da Polícia Militar informou que a demissão foi “por terem dificultado a correta elucidação dos fatos, através da alteração de dados referentes à ocorrência, bem como da o missão nas medidas necessárias no sentido de preservar a ocorrência”. Assinada pelo então chefe dos assuntos civis, o tenente coronel Julio Bono Neto, a nota continua com a mesma explicação dada hoje quando há participação efetiva de PMs em crimes. “(o comportamento) contraria normas existentes na corporação e revela nita incompatibilidade com a função policial militar”.

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