Ernesto Schmitz, o Betinho, de 48 anos, estava em surto quando foi alvo de quatro tiros de um policial militar, afirmam familiares e amigos. Ação da polícia se soma a outras ocorridas em Goiás, São Paulo e Santa Catarina

Eduarda Schmitz, de 24 anos, soube da morte do pai pelo Instagram. Ela leu na rede social que Ernesto Schmitz Neto, 48, o Betinho, fora morto a tiros por um policial militar dentro da casa onde morava, em Florianópolis, capital de Santa Catarina. “Quando cheguei [ao local], todos os moradores da Praia da Solidão estavam indignados”, conta Eduarda.
Betinho sempre morou naquele bairro, localizado no sul da capital catarinense. Ali, era conhecido por todos — seja pela irreverência ou por situações provocadas por ele. “O meu pai tinha problemas psicológicos, às vezes entrava em surtos”, relata a filha.
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Betinho também era conhecido como o “Anão da Solidão”. O apelido fazia referência à praia onde ele morava e à sua estatura reduzida — pouco menos de um metro e meio. Ernesto tinha ainda pernas curvadas por causa do nanismo, o que dificultava a sua locomoção.
Era sábado, 4 de janeiro, quando Betinho entrou em surto, afirmam amigos e a família. No terreno onde ele vivia, e no qual alugava alguns imóveis, discutiu com uma inquilina e a Polícia Militar foi chamada. Quando os PMs chegaram, Betinho estava sozinho dentro de sua casa.
Segundo Thomas Fidryszewski, amigo e vizinho, mais de dez agentes invadiram o imóvel arrombando a porta — logo, cinco tiros foram ouvidos. O Samu foi até o local, mas a morte de Betinho foi constatada ali. Thomas chama a ação policial de desproporcional. “A quem serve essa polícia? É uma injustiça. A nossa comunidade aqui está muito triste com tudo que aconteceu”, conta.
O caso Betinho chama a atenção diante de ações recentes da PM envolvendo pessoas com deficiências ou em surto psicótico, com desfechos letais, ocorridas em Goiás, São Paulo e Santa Catarina.
Quatro tiros com arma de fogo
Conforme o boletim de ocorrência, a Polícia Militar foi chamada ao local pela inquilina de Betinho. Em depoimento, ela contou que, naquele dia, o homem teria invadido sem motivo a residência alugada por ela. E que ele fez ameaças com uma faca e, em seguida, com uma serra.
Os policiais Rubens Celestino Espíndola Júnior e Evandro Belizário Martinho, do 4º Batalhão de Polícia Militar, contaram terem tentado, sem sucesso, dialogar com Betinho. Enquanto os agentes estavam na parte externa da casa, Betinho teria ido à sacada e feito menção de lançar uma pedra sobre os policiais. A ação motivou o disparo de um tiro de bala de borracha efetuado pelo soldado Evandro.
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Na sequência, os PMs entraram na casa. Betinho teria surgido no topo da escada para o segundo andar e tentado avançar contra o soldado Rubens, segurando uma faca e uma pedra. Rubens então fez quatro disparos com arma de fogo contra ele.
‘Controlamos crises tranquilamente’, dizem vizinhos
Para a filha, vizinhos que presenciaram a ação policial disseram não terem visto Betinho na sacada. A versão contraria o relato dos policiais. Eduarda questiona a forma como os agentes agiram. “Por que não usaram algum gás? Por que não esperaram o tempo dele se acalmar para tentar resolver as coisas? Como eles imobilizam uma pessoa de um metro de altura com quatro tiros?”, diz.
“É impressionante como nós, amigos e vizinhos aqui do Betinho, já controlamos essas crises várias vezes. Ele já pegou a faca e veio para cima de nós outras vezes, também surtado, e a gente conseguiu controlar tranquilamente”, inconforma-se Thomas.
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O amigo lembra que, nos momentos de surto, os amigos o seguravam pelos braços e o imobilizavam com certa facilidade. “E aí a polícia argumenta que precisou executar o cara porque ele foi para cima, eu acho que foi extremamente desproporcional. Mataram, executaram o Betinho”, questiona.
‘Despreparo das instituições’
O médico e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Walter Ferreira de Oliveira explica que os surtos são episódios em que as pessoas perdem o contato com a realidade. “Você pode estar em um lugar e de repente achar que as paredes estão se comprimindo contra você. Ou pode imaginar que existem bichos e insetos ou coisas que só você vê”, exemplifica Walter.
Essa condição está geralmente associada às síndromes psicóticas. Eduarda diz que o pai apresentava sintomas de problemas psiquiátricos e que a família planejava uma intervenção médica. Não deu tempo.
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Walter critica o despreparo em lidar com a ocorrência de Betinho. “Tem gente que atira, bate… Isso demonstra um despreparo das instituições que realmente deveriam estar preparadas para isso. O que cria esses problemas todos. É sofrimento, violência, porque as pessoas não estão recebendo esse tipo de preparo. Elas estão agindo como se aquilo [o surto] fosse um episódio de violência”, afirma.
Casos recentes
Nos últimos meses, outros casos de ação policial diante de pessoas em surto psicótico terminaram de maneira violenta. Em Goiás, Luiz Cláudio Dias, 59, foi morto pela Polícia Militar ao fazer refém uma técnica de enfermagem.
A família de Luiz alegou que ele estava em surto hipoglicêmico e disse que a situação demonstrou “imprudência, negligência e imperícia do Estado”. O caso ocorreu no dia 18, dentro do Hospital Municipal de Morrinhos.
Outro episódio ocorreu em agosto do ano passado, em São Paulo. Denner Wesley Batista dos Santos foi morto na frente da mãe, que havia chamado o Samu para conter o filho em surto. Dois policiais confessaram terem atirado cinco vezes contra Denner para evitar, segundo afirmaram, que o rapaz avançasse com uma faca contra os socorristas.
Também em Florianópolis, Guilherme Jockyman, 31, foi morto pela polícia logo após ter sido salvo pelos pais de uma tentativa de suicídio. A família acionou a PM para ajudar a conter Guilherme, que estava em surto psicótico. Ao chegarem, os policiais atiraram, atingindo o peito do homem.
Um cara legal
Betinho gostava de surfar. O tamanho não o impedia de pegar ondas nas praias de Florianópolis. Sua imagem ficou conhecida na cidade e nas redes quando ele foi preso por dirigir embriagado. O vídeo de uma matéria noticiosa foi publicado on-line com o título “Prenderam o Tyrion” — em referência ao personagem Tyrion Lannister, da série “Game of Thrones”, interpretado pelo ator Peter Dinklage, que também tem nanismo.
Thiago conta que, quando não estava em surto ou alterado, o amigo era tranquilo, gostava de surfar e andar pelas dunas. “Ele era um cara divertido. Nós conseguimos conversar com ele, era um cara legal”, afirma.
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Eduarda e Betinho, pai e filha, moravam em localidades distantes, mas conversavam sempre pelo WhatsApp e outros aplicativos. “Ele sempre foi uma pessoa muito carinhosa comigo. Sempre foi muito amoroso, sabe? Amor nunca me faltou”, diz ela, emocionada.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria de Estado da Segurança Pública (SSP-SC) e a Polícia Militar de Santa Catarina. Em nota, a PM disse que os policiais agiram em uma situação de “confronto”. Um Inquérito Policial Militar (IPM) foi instaurado para apurar a ocorrência.
A SSP-SC não retornou. Caso haja um posicionamento, a matéria será atualizada.
Leia a nota da PM-SC na íntegra
A Polícia Militar de Santa Catarina, por intermédio do 4º Batalhão de Polícia Militar, no dia 4, por volta das 9h40, na Rua Inério Joaquim da Silva, bairro Pântano do Sul, em Florianópolis, ocorreu um confronto contra a Polícia Militar.
2 – Informações preliminares dão conta que um homem de 48 anos, natural de Santa Catarina, durante atendimento de ocorrência de ameaça entre vizinhos, estava em posse de arma branca e, com a chegada dos policiais, tentou investir contra os mesmos, que, diante da iminente agressão letal, atingiram o homem, que veio a óbito no local.
3 – O 1º Comando Regional de Polícia Militar instaurou um Inquérito Policial Militar para apurar as circunstâncias que envolveram o atendimento da ocorrência.