Apontados como suspeitos de roubar o carro de uma PM, garotos tiveram que trocar campinho da comunidade pela Fundação Casa; a mãe de um deles diz que foram ameaçados: ‘ou entregam quem fez ou vocês assumem’
Iracema Rosa Silva de Lima tem dificuldade para encontrar a camisa de seu filho no meio dos panos na gaveta do armário. A., 17 anos, é jogador de futebol da várzea de São Paulo, onde representa sua quebrada: a favela São Remo, na zona oeste paulistana. Entre as camisas do Santos e do PSG, encontra o manto preto e branco, de número 1, com o desenho de um garoto olhando para casas e barracos, uma representação dessa e de tantas outras comunidades. O mesmo desenho é levado na pele por astros consagrados do futebol brasileiro, como Neymar e Gabriel Jesus, que jogam na Europa e na seleção brasileira masculina.
“Ele gosta de andar bem arrumado. Sempre está com essa camiseta e uma corrente que comprei para ele”, conta Iracema, natural de Lageado, cidade pernambucana a 196 quilômetros da capital Recife. Desde os 14 anos em São Paulo, ela começou a trabalhar aos 16 e segue até os dias de hoje na mesma “casa de família”, como se refere ao trabalho. “Sempre ensinei ao A. que nada vale mais do que o respeito, a confiança. Está vendo?! Estou aqui com uma cópia da chave da casa do meu patrão. Tem resposta maior do que essa?”, pergunta.
A. não está em casa. Na verdade, não na sua, mas na Fundação Casa, centro de internação para jovens infratores de São Paulo, antigamente chamada de Febem. Ele e o amigo Y., 16 anos, estão apreendidos desde o dia 16 de julho quando foram reconhecidos por uma policial militar vítima de roubo a carro e sequestro relâmpago, conforme registrado no B.O. (Boletim de Ocorrência). Os dois saíram naquele dia para ir até a casa da namorada de um deles, como explica Iracema, mas não voltaram. “Recebi uma ligação pouco depois da meia-noite, começo da madrugada, com um policial dizendo que ele estava preso. Perguntei o motivo e ele disse ‘vem aqui saber’. Fui e ele me levou na carceragem, dizendo para eu ‘não chorar'”, relembra.
Segundo o documento, a vítima, uma policial militar, estaria em um veículo Honda HR-V quando três pessoas a abordaram e a colocaram no banco traseiro. Como a mulher resistiu, um dos homens teria colocado a arma em sua cabeça e dentro de sua boca, fazendo com que ela entrasse no carro sob ameaça. Depois, ela conseguiu fugir quando o carro entrou na favela. Acionada, a Polícia Militar descreve que identificou três pessoas com o perfil descrito pela vítima, que tentaram fugir, mas pegaram A. e Y. e os levaram ao 91º DP (Distrito Policial). Ainda de acordo com o B.O., a vítima reconheceu os meninos “sem a menor sombra de dúvidas” e individualizou as ações: A. estaria com a arma e Y. teria ficado ao seu lado. Ela não cita detalhes de quem teria dirigido o veículo.
Dona Iracema foi duas vezes até o Brás, bairro na zona leste de São Paulo onde A. está trancafiado. É um trajeto de 1h40 de ônibus, que ela já fez duas vezes desde o ocorrido, mas que aperta no bolso. No próximo fim de semana, não conseguirá custear a passagem para vê-lo. Nessa segunda visita, no sábado (20/7), Iracema afirma que o filho contou que ele e Y. foram ameaçados pelos PMs. “Disse que era para eles entregarem quem fez se não eles que abraçariam o B.O.. ‘Respondi que não conhecia ninguém e o policial disse: então tá, ele me contou. Ameaçaram eles: ou entregam quem fez ou eles assumiriam. Tem sido difícil até para comer”, explica.
As famílias e moradores da São Remo não se conformam com as prisões. Garantem ter havido erro na identificação dos dois. “Tem sido muito difícil, nem durmo direito pensando em como ele está”, lamenta Arlindo José da Lima, pai de A.. Há seis anos, ele sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) que afetou a mobilidade do lado direito do corpo. Ainda que com o auxílio de uma muleta, anda com bastante dificuldade. “O A. me levava para todo canto, esquentava minha marmita. É um companheiro. Agora, não consigo fazer nada, nem ir ao banco”, exemplifica.
Os pais o descrevem como um garoto brincalhão, carinhoso, caseiro e fanático por futebol. O que A. gosta além de futebol? “Jogar bola”, brinca Arlindo. Dona Iracema aproveita e pega a chuteira que o filho usa, de cor laranja e cheia de buracos na sola. “Ele sempre me diz: ‘Mãe, quero dar orgulho para você. Um dia vou ser jogador de futebol’. Todas as mães gostariam de ter o filho que eu tenho”, diz, antes de pedir desculpas por interromper a entrevista para ir ao trabalho.
A. só não jogou a Taça das Favelas, campeonato em que times de futebol representam suas respectivas comunidades, por conta de um problema no coração ainda não detalhado. Já Y. jogou. Atuou como atacante sob os treinamentos de Lula Santos, professor de educação física que mora na comunidade e responsável pela garotada. Ele e a Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio organizaram um protesto na São Remo, nesta segunda-feira (22/7), para denunciar as apreensões, injustas para ele e os demais.
“Conheço os garotos há mais de 10 anos, tenho certeza 100% de que foram presos de forma ilegal. Eles nem sequer fumam cigarro”, afirma Lula, como forma de destacar bons hábitos dos dois. “Conheço nossa favela, estamos perdendo o direito de nos divertir. Tenho avisado os garotos para sempre saírem com os seus documentos, se a polícia pegar, leva mesmo”, alerta logo no começo do ato, parado em frente a um mercado local. A seguir, passou a convocar os moradores com apelos ditos pelo microfone e ecoados pela caixa de som. “Hoje foi o filho dessas mulheres, amanhã podem ser os seus. Saiam na janela ou na sacada por um minutinho que seja”, dizia.
Francisco Chagas, advogado que representa os dois rapazes, aponta que há contradições na versão oficial. “O B.O. apresenta muitas falhas, a começar por não apresentar o prefixo (placa) da viatura que atendeu a ocorrência. Outro: falam que os garotos estavam ao lado do veículo, na Rua Onofre Milano, mas na verdade eles estavam na Rua 3, que fica 20 minutos andando dali”, explica o defensor, que confirma já ter solicitado liberdade provisória para A. e Y., mas que aguarda resposta. No dia 29/7, eles passarão por uma audiência para determinar se continuarão na Fundação ou poderão retornar para suas casas enquanto o processo corre na Justiça.
A comunidade gritou pelos becos e vielas da São Remo até chegar ao campo de futebol da comunidade. No terrão, o placar ainda exibia o resultado de 3 a 3 do último jogo ocorrido ali. Jovens esticaram a faixa “Contra o genocídio” e seguiram com o protesto.
Maria Ivone, mãe de Y., pegou o microfone e fez o apelo: “Vamos nos mobilizar. Hoje é meu filho. Não estou lutando só por ele, estou lutando para que não aconteça com os seus”, seguiu. Ela já descreveu à Ponte a tristeza do filho quando ela foi visitá-lo na Fundação. “Ele me viu e chorou dizendo ‘eu tinha sonho de ser jogador de futebol e agora estou dentro de uma cela. Eu fui confundido com outra pessoa, só porque eu sou dessa cor ou por ser pobre'”, relata.
O técnico Lula pegou o microfone e abriu dois grandes cartazes. Neles, mostrou foto a foto de seus alunos premiados pelo que melhor sabem fazer: jogar bola. Ao seu lado estava outro educador social, Marcelo Dias, preso injustamente pela PM sob acusação por tráfico de drogas e que, depois de ficar mais de seis meses preso, foi inocentado pela Justiça de São Paulo. A Ponte denunciou seu caso. “Precisava vir aqui, passei na pele por essa injustiça da PM. O sistema é opressor contra o preto e pobre”, lembra. “Nessas horas, uma palavra de conforto para as famílias ajuda, faz toda diferença. E a tendência é aumentar cada vez mais casos como esse, com o governo que temos e a autonomia desenfreada que dão à PM”, analisa.
O ato prosseguiu por mais duas duas, chegando até a casa de A., antes passando por uma pequena entrada que separa a comunidade da Cidade Universitária, onde fica a USP (Universidade de São Paulo). Grades e portas giratórias de metal selecionam quem pode e não passar. Quando chegaram em frente ao espaço, uma surpresa: Arlindo, com toda dificuldade de locomoção, fez questão de sair do segundo andar em que vive, passar pelas escadas e ver o ato que buscava justiça para o seu filho. Tímido, recusou o microfone. Preferiu sentir a energia e agradecer, procurando enxugar as indisfarçáveis lágrimas que escorriam pelo seu rosto.
A Ponte questionou a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de São Paulo), chefiada neste governo de João Doria (PSDB) pelo general aposentado do Exército João Camilo Pires de Campos, e a PM, comandada pelo coronel Marcelo Vieira Salles, sobre o caso do aprisionamento de A. e Y., mas pasta e corporação não responderam até a publicação da reportagem.
*Nota – Embora manuais como o Andi recomendem o uso do termo “apreensão” de adolescentes por considerá-lo mais alinhado ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Ponte optou por usar o termo “prisão” por considerar que reflete com mais precisão a realidade dos adolescentes submetidos a medidas socioeducativas no Brasil
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[…] estavam na Fundação Casa. Desde o ocorrido, no dia 16 de julho, familiares e amigos saíram em defesa dos dois. “São meus alunos. É impossível que [essa acusação] seja verdadeira. […]