Festival Porongos homenageia Lanceiros Negros e foi criado para questionar tradicionalismo gaúcho, lembrado todo dia 20 de setembro, com as 7 artes pretas
Nesta sexta-feira (20/9), o Rio Grande do Sul comemora a Revolta dos Farrapos, a mais longa história separatista do Brasil. Acampamentos tradicionalistas são montados, desfiles com os trajes gaúchos ocupam parte das ruas de Porto Alegre e eventos artísticos acontecem por toda parte com o principal intuito de resgatar e preservar os valores da tradição gauchesca.
Em outro lado da cidade, e diferente de grande parte da população gaúcha que exalta a Revolta dos Farrapos e a chamam de “revolução”, um grupo de agitadores culturais negros organizam outra forma de lembrar do episódio: exaltar a cultura preta e referenciar os Lanceiros Negros, bravos guerreiros que lutaram na linha de frente da guerra, em Cerro dos Porongos.
Assim surge o Festival Porongos, que acontece nesta sexta-feira (20/9), em Porto Alegre. Criado originalmente como um festival de música negra, no ano de 2018, cada vez mais o evento se aproxima das questões sociais, da unificação de lutas e da emancipação do povo negro.
Idealizado por Thaise Machado e Daniele Rodrigues, o festival mescla a visibilidade, a valorização da história negra no Rio Grande do Sul e a necessidade de emancipação da arte preta. “Surgiu a ideia de contemplar essas duas questões: um festival de música e a questão da invisibilidade do massacre dos Lanceiros Negros, que dentro do tradicionalismo gaúcho quase não é comentado. Existe toda uma comemoração, em setembro inteiro, e em nenhum momento se dá visibilidade para essa questão”, explicou Thaise.
O Lanceiro Negro era um exército formado por pessoas negras escravizadas que protagonizaram participações decisivas na Revolta dos Farrapos em troca de uma falsa liberdade. Mas foram traídos pelos grandes proprietários de terras, afinal, um dos principais impedimentos para o fim da guerra era que o Império Brasileiro não admitia que negros estivessem em liberdade e armados lutando. Tornaram-se, dessa forma, a moeda de troca dos fazendeiros.
Assim, atraídos sem armamento para o Cerro dos Porongos, cerca de 100 Lanceiros Negros foram dizimados pelo exército imperial.
A história dos Lanceiros Negros, segundo Thaise, é necessária para repensar o tradicionalismo gaúcho e a relação dos pretos na história do Rio Grande do Sul: “É muito comum quem não conhece nosso estado não acreditar que existem pretos no sul. O objetivo do festival é contribuir com essa emancipação do povo preto, colocá-lo presente em todos os lugares, fazer ele crescer, se tornar cada vez mais um ato político, fomentar cultura e gerar emprego para profissionais pretos, fazer o black money acontecer”, contou.
Segundo Thaise, apesar do massacre dos Lanceiros Negros ter acontecido em novembro, o Festival Porongos acontece em setembro justamente para pontuar as questões do tradicionalismo gaúcho. “Novembro é um mês muito concorrido, por conta do dia da Consciência Negra. Pensamos em setembro para que a sociedade veja que existem pretos, para refletirem sobre esse tradicionalismo e para que os negros consigam se enxergar nessa comemoração, da qual os brancos denominam como revolução”, disse.
Sete artes pretas
O Festival Porongos de 2019 aborda em sua programação as sete artes pretas: música, arquitetura, artes visuais, cinema, fotografia, teatro e literatura. Visando descentralizar a cultura branca, o evento tem também como objetivo democratizar o acesso e a promoção da participação social, buscando popularizar essas artes realizadas por pessoas negras.
“Analisamos o cenário cultural de Porto Alegre e pensamos em abordar essas sete artes. Acreditamos que essas pessoas que estão participando do Festival têm uma grande importância para divulgação da arte negra no Rio Grande do Sul”, contou Thaise.
Música como ferramenta de enfrentamento do racismo
O produtor cultural Paulo Neto, um dos artistas que se apresenta no Festival Porongos, explica a necessidade do evento acontecer no centro de Porto Alegre. “Existe toda uma construção de dar e construir espaços que, outrora foram ocupados por pessoas pretas e, após a higienização, estas foram expulsas desses lugares. O festival faz isso, ele traz de volta essa arte e essa cultura, que foi marginalizada, para o centro da cidade”, disse.
Além do mais, Neto acredita que a arte é uma ferramenta necessária e importante para enfrentar o racismo e lutar pela equidade de gênero. “Eu demorei para entender a força da música, antes de tomar coragem de subir no palco. Mas agora entendo a necessidade que tenho de ocupar esse lugar e falar sobre questões tão importantes para a vida de pessoas pretas. E, para mim, precisamos, como artistas, descobrir como usar essa ferramenta de luta, encontrar uma forma de se comunicar que faça as pessoas se sentirem questionadas”, contou.
Financiamentos e planos futuros
Atualmente o Festival Porongos é residente do RS Criativo, um programa da Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul. Em 2018, o festival foi realizado de forma totalmente independente. Neste ano, além do financiamento coletivo, ele está contando com o apoio e patrocínio da Federação Nacional de Arquitetura , a escola criativa Perestroika e o estúdio de tatuagem El Xixo e o bar Porto Carioca, ambos geridos por mulheres negras.
“Falamos com muitas pessoas e instituições, mas dentro do Rio Grande do Sul é muito complexo trabalhar essas questões raciais, ainda mais indo contra o tradicionalismo, fazendo um evento para pessoas negras. Mas, resistimos”, contou Thaise.
Corre que dá tempo: Clique aqui para conferir a programação completa do Festival Porongos.