Preso injustamente por roubo, Gabriel Pereira Severiano conseguiu a absolvição, mas o MP-RJ interpôs recurso que o levou de volta ao cárcere. Ele perdeu o parto da filha mais nova antes que uma revisão criminal o colocasse em liberdade
O maior sonho do entregador de marmitas Gabriel Pereira Severiano, de 29 anos, é recuperar o tempo que foi tirado dele. O jovem negro foi absolvido na última quarta-feira (11/9) de uma condenação por roubo, crime que sempre negou ter cometido. Gabriel ficou quase um ano preso — somados os dois períodos que passou em penitenciárias fluminenses — antes de ser solto após uma revisão criminal. No entanto, a única “prova” que ligava o entregador ao assalto a um ônibus no Rio de Janeiro era o “reconhecimento” feito por uma única passageira na porta da delegacia.
“Foi um filme de terror”, conta Gabriel sobre sua prisão. O capítulo mais terrível ocorreu este ano. Após ter sido absolvido diante da total fragilidade da prova, o jovem voltou a ser preso depois que o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) interpôs recurso contestando a decisão. De volta à penitenciária, o entregador não pôde acompanhar a gestação e nem o parto de sua filha mais nova. Beatriz nasceu em 6 de agosto, sem a presença do pai.
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A nova absolvição ocorreu somente após um pedido de revisão criminal. Isso ocorre depois do trânsito em julgado, quando não é mais possível recorrer de uma sentença. Por unanimidade, os desembargadores do Terceiro Grupo de Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) destacaram que o reconhecimento feito pela passageira “desobedeceu aos ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal”.
Relator do caso, o desembargador Alcides da Fonseca Neto ressaltou que o procedimento irregular era o único elo entre o acusado e o crime. “Cumpre asseverar, mesmo quando o reconhecimento realizado conforme o modelo legal descrito no reconhecimento pessoal, embora válido, não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, ora ancorada em um único elemento probatório, ainda mais, quando se refere ao reconhecimento pessoal realizado em desacordo com a formalidade estabelecida em texto legal”, escreveu.
“Ela nem olhou para minha cara”
O roubo pelo qual Gabriel foi condenado ocorreu em um ônibus da linha 550, que circula entre a Gávea, na zona sul do Rio de Janeiro, até a Cidade de Deus, na zona oeste. Na época, reportagem da Ponte relatou a prisão arbitrária do jovem. O veículo foi abordado perto da Estrada do Joá, na Gávea, por volta das 20h35. As imagens da câmera de segurança do veículo registraram a entrada de dois homens, que passaram a recolher objetos dos passageiros.
Naquela data, após trabalhar com a mãe na entrega de marmitas, Gabriel foi até a casa de uma namorada na Rocinha, na zona sul. Quando voltava, parado em um ponto de ônibus, foi abordado pelos policiais Alexandre da Silva Santos e Renato de Souza Fernandes, lotados na época no 23º Batalhão da Polícia Militar. O jovem negro teria “as características” de um dos suspeitos — que não estão descritas claramente no boletim de ocorrência — e foi levado à 11ª Delegacia de Polícia Civil da Rocinha.
Uma única passageira do ônibus foi ouvida como testemunha e reconheceu Gabriel na porta da delegacia. “Ela nem olhou para minha cara direito e disse que era eu”, conta o jovem. O procedimento não seguiu o que diz o artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP).
Procedimento irregular
O CPP determina que a pessoa que fará o reconhecimento deve primeiro descrever a pessoa a ser reconhecida. Um segundo passo é colocar o suspeito ao lado de pessoas semelhantes para ser apresentado à vítima ou à testemunha. Nada disso foi feito no caso de Gabriel.
Os itens roubados no ônibus tampouco estavam estavam com o entregador de marmitas, que teve seu celular pessoal apreendido. Mesmo assim, a delegada responsável, Mônica Silva Areal, determinou sua prisão em flagrante.
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Gabriel ficou preso preventivamente por seis meses. O julgamento só ocorreu em julho de 2023, quando a juíza Cristiana de Faria Cordeiro, da 13ª Vara Criminal, absolveu o entregador. Na decisão, a magistrada destacou que a vítima, e única testemunha ocular, não compareceu em juízo para confirmar o reconhecimento. Cristiana escreveu que o procedimento feito na delegacia “desobedeceu aos ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal”.
Cristina destacou ainda que as imagens da câmera do ônibus mostraram que o assalto ocorreu conforme o narrado pela testemunha, mas que não era possível dizer dizer que Gabriel aparecia ali.
Apesar de tudo isso, em novembro do ano passado, o MP-RJ apresentou recurso contra a absolvição. O parecer, assinado pelo promotor Luiz Antonio Corrêa Ayres, insistiu que havia, sim, elementos suficientes para condenar Gabriel.
De forma unânime, os desembargadores da 2ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro acataram o pedido do MP-RJ. Em seu relatório, a desembargadora Kátia Maria Amaral Jangutta, embora tenha reconhecido que o cumprimento das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal “constituem uma garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito pela prática de um crime”, considerou suficiente o reconhecimento feito fora do procedimento normal para condenar Gabriel.
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O depoimento dos policiais, que sequer citaram quais eram as características dos assaltantes descritas a eles antes de prenderem Gabriel, também foi usado como argumento para a condenação.
Sentenciado a oito anos, Gabriel foi preso no último dia 16 de abril, quando chegava para trabalhar em um pet shop. “Ali, parou minha vida totalmente. Parece que perdi 10 anos de vida”, lamenta.
Em liberdade há menos de uma semana, Gabriel finalmente conheceu sua filha Beatriz. O jovem também pôde rever e abraçar as duas mais velhas, Maria Sophia, de 10 anos, e Anna Victória, de 6. Abalado, ele conta que treme ao ver uma viatura. “Eu me sinto bastante nervoso. Fico com medo e, às vezes, passo até de cabeça baixa. É constrangedor”, conta.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a Secretaria de Estado da Polícia Militar e da Polícia Civil do Rio de Janeiro, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do Rio. Foram solicitadas entrevistas com os agentes públicos citados na reportagem e um posicionamento sobre o caso.
Em nota, a Secretaria da Polícia Militar insistiu na validade do reconhecimento irregular: “O homem foi preso em flagrante após reconhecimento presencial da vítima, que afirmou ‘sem sombra de dúvidas’ que ele seria o autor do crime. Ele foi encaminhado para audiência de custódia e teve a prisão em flagrante convertida em prisão preventiva. O caso foi enviado à Justiça”.
O MP-RJ enviou uma nota à reportagem. O texto diz que Gabriel foi reconhecido por uma das vítimas por reconhecimento pessoal e não por álbum fotográfico. A abordagem feita pelos policiais ocorreu após descrição feita por um transeunte. O entregador seria “detentor das características físicas” indicadas por essa pessoa.
A nota também destaca uma ligação que teria sido feita para a namorada de Gabriel. Segundo o MP-RJ, ela negou que estava com ele.
Para o MP-RJ, o depoimento da vítima e dos policiais que conduziram Gabriel à delegacia foram elementos suficientes para a deflagração da ação penal e recebimento da denúncia.
Os demais órgãos não responderam até a publicação. Caso respondam, a reportagem será atualizada com os posicionamentos.
*Matéria atualizada em 18/9/2024, às 11h55, para incluir a nota do MP-RJ.