Florianópolis, a ‘capital mais segura do Brasil’, esconde onda de violência e letalidade policial

    Jornal Desterro — que estreia hoje com o objetivo de cobrir violações de direitos nas periferias da capital catarinense — apurou que, em 2023, as mortes decorrentes de intervenção policial cresceram 150% em relação ao ano anterior

    Montagem: Jornal Desterro

    Essa série de reportagens — que a Ponte reproduz aqui em parceria com o jornal Desterro — contém relatos contidos de pais, mães, familiares e amigos que compartilham entre si as cicatrizes da violência e letalidade policial nas periferias centrais de Florianópolis, um território ocupado majoritariamente por pretos e pardos. Muitos deles compartilham também o medo de serem novamente agredidos após a publicação deste material.

    Para sua própria proteção, alguns indivíduos tiveram nomes, características e/ou datas de eventos substituídos ou ocultados. Ainda assim, não há garantias de que estão seguros. Por isso, declaro publicamente minha preocupação com a integridade física e mental dos envolvidos nesta apuração, que, embora tenham autorizado a publicação de suas histórias, temem retaliação dos agentes de segurança.

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    Sentados em frente à câmera, um por um, os cinco policiais envolvidos no confronto dão o seu depoimento. Relatam que, divididos em dois grupos, estavam fazendo patrulhamento de rotina na região de mata do Morro do 25, no centro de Florianópolis, quando dois deles teriam sido surpreendidos por cinco homens armados, que “fizeram menção de sacar armas”. Para se defender, dizem, os agentes do 4° batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina dispararam.

    Três dos suspeitos teriam fugido e dois permanecido no confronto armado. Os policiais afirmam que, após o cessar fogo, ao constatarem que as vítimas estavam feridas, acionaram o socorro. Porém, o SAMU não foi autorizado a subir na comunidade, porque novos tiros foram disparados pelos homens que haviam fugido.

    Em depoimento, os policiais se dizem “mais bem preparados” por terem se “defendido do ataque”. A dinâmica da ação é repetida por todos os policiais: trocaram tiros, cessaram, avançaram, acharam os corpos no chão, ouviram novos disparos e pediram reforços.

    Todos, menos um. Um PM acrescenta um novo dado à narrativa ao revelar que, em outro momento de sua vida, fora baleado por um dos jovens envolvidos no suposto conflito: Walace Henrique Alves da Silva, de 21 anos.

    Tenente-coronel André Rodrigo Serafin, representante do 4° batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina. | Foto: Warley Alvarenga/Divulgação Desterro

    O laudo pericial de Walace, elaborado pelo Instituto Médico Legal (IML), coloca em cheque a dinâmica descrita pelos policiais. A causa da morte foi politraumatismo causado por arma de fogo. O rapaz levou sete tiros: dois no tórax, um no braço esquerdo, dois na coxa esquerda e dois na coxa direita. Alguns destes disparos foram dados pelas costas. Outros, “superior para inferior”, o que pode indicar que a vítima estava no chão.

    Havia também lesões no pulmão, nos rins, no diafragma e no estômago, além de hematomas nos testículos e na coxa esquerda. O laudo aponta, ainda, que Walace teve o fêmur esquerdo fraturado e diversas escoriações pelo corpo. Todos esses ferimentos, de acordo com a polícia, foram gerados por ações de legítima defesa. Nenhum policial foi ferido na Operação.

    A cena descrita pelos policiais ocorreu no dia 21 de setembro de 2022. Com Walace estava Taynan Ribeiro Alves (20 anos), que morava próximo ao local do suposto conflito. De acordo com a família de Taynan, os dois jovens estavam desarmados quando foram até o terreno coberto por mata, por volta das 16h. Os dois desejavam construir um conjunto de casas para alugar na área.

    Poucos minutos após os disparos, familiares de Taynan chegaram ao local, onde foram informados que não havia nenhuma vítima, pois os suspeitos teriam fugido. Desconfiados, insistiram — mas foram impedidos de avançar por policiais que, com bombas de gás lacrimogêneo, ameaçavam quem se aproximava.

    “Perguntamos a todo momento: se não tem ninguém aí, se os meninos evadiram, porque a gente não pode passar? Tentamos várias vezes, mas eles não deixavam”, conta um familiar das vítimas.

    Taynan morreu após choque hipovolêmico, situação causada por grande perda de sangue. O laudo do IML registra traumatismo abdominal provocado por arma de fogo. Ele foi baleado no tórax e na coxa esquerda. O mesmo documento aponta também laceração no baço, lesão no rim esquerdo, intestino perfurado e vértebras fraturadas. Projéteis de arma de fogo foram encontrados na região abdominal direita e na pelve do jovem.

    Nenhum morador relata ter ouvido a segunda rajada de tiros que, segundo a PM, teria sido disparada em direção aos policiais. No local do suposto confronto, não foi encontrado nenhum projétil além daqueles dos tiros disparados pelos policiais.

    A morte dos dois jovens negros só foi confirmada pela PM cinco horas depois dos disparos. Diversas testemunhas denunciam que, além da execução, os policiais também praticaram omissão de socorro, impedindo que o SAMU prestasse atendimento médico de urgência às vítimas.

    “Tinha muita polícia na rua, a ambulância estava trancada no meio das viaturas. Não deixaram a ambulância subir. Quando o SAMU entrou no mato, eles desceram sozinhos, sem ninguém. Se eles tivessem deixado, de repente tinha salvado um”, relembra um familiar .

    Apesar de todas as inconsistências entre depoimentos, laudos periciais e relatos da comunidade, nenhum dos cinco policiais envolvidos no caso foi indiciado. Em 15 de dezembro de 2022, dois meses após as mortes, o caso foi arquivado pelo Ministério Público Estadual. Os responsáveis pelo inquérito que apurou os homicídios de Taynan e Walace não solicitaram as imagens das câmeras corporais usadas pelos policiais.

    “Escravidão não acabou, só mudou os personagens. Nós éramos escravos, nos botavam no tronco. Se fugia, apanhava, era marcado igual boi. Hoje em dia, eles usam a lei. Eles vêm aqui, matam nossos filhos, irmãos, companheiros, e nada é feito”, denuncia um membro da família de Taynan.

    O maciço

    A Avenida Beira Mar é um dos principais cartões postais de Florianópolis. Localizada na Agronômica, bairro com o metro quadrado mais caro da cidade, a área tem o visual marcado por edifícios altos e espelhados com apartamentos que podem custar até R$ 10 milhões. Logo atrás destes prédios, entre as brechas do paredão de concreto, está o Morro do Horácio.

    Ainda no centro, a Avenida Mauro Ramos, uma das mais movimentadas da capital catarinense, contorna as entradas das comunidades do Morro da Mariquinha e Monte Serrat/Morro da Caixa. Poucos metros à frente, sobre o túnel Antonieta de Barros, a Rua Silva Jardim demarca a entrada do Morro do Mocotó, que, no seu topo, se cruza com o Morro da Queimada.

    Contrariando estereótipos de um Estado branco e europeu, o centro da capital catarinense se constrói por pessoas negras e pobres que hoje ocupam as frestas entre as fachadas de prédios.

    Estima-se que, no início do século XVIII, 35% da população de Florianópolis eram de pessoas negras, em sua maioria, escravizadas. A expansão urbana acelerada no começo do século XX deu início a um processo de higienização social: as famílias que moravam no centro da cidade, em sua maioria descendentes de ex-escravizados, foram “empurradas” para o Maciço do Morro da Cruz, dando origem a 20 comunidades – entre elas, o Morro do Horácio, o Morro da Mariquinha e o Morro do Mocotó.

    Hoje, dois séculos depois do início de sua ocupação, o Maciço do Morro da Cruz tem cerca de 45 mil moradores e, apesar de não haver dados oficiais sobre a quantidade de negros e pardos que habitam a região, pode-se afirmar que é composto majoritariamente por pessoas negras.

    Apesar de integrar a região mais central da capital, esses territórios seguem marginalizados na cidade, sendo historicamente abandonados pelo poder público. O primeiro reservatório de água de Florianópolis foi construído em 1910, no Monte Serrat, mas os moradores instalados na comunidade desde 1860, só tiveram acesso à água encanada mais de 70 anos depois, durante a década de 1980.

    A falta de planejamento e políticas públicas para as comunidades do Maciço é sentida até hoje por seus moradores que lutam constantemente para a garantia de direitos básicos, como acesso a água potável, tratamento de esgoto e coleta regular de lixo. No cotidiano destes territórios, a única presença do estado é sua mão armada.

    “Hoje, qual é o braço do estado mais presente na periferia? É a polícia. Se essa população não entra no orçamento local de uma gestão pública, a tendência é o caminho da repressão. E a repressão é o braço militar que está ali, a polícia, é o que a gente vê nas periferias”, reflete padre Vilson.

    Figura conhecida na cidade, o padre Vilson Groh, 69, é uma das lideranças comunitárias mais importantes do Maciço. Em 1983, se instalou no Monte Serrat e nunca mais saiu de lá.

    Em 2011, fundou o Instituto Padre Vilson Groh, que atua fortalecendo organizações da sociedade civil voltadas à defesa e garantia de direitos, desenvolvendo ações e projetos em rede que contribuam na trajetória de vida de crianças, adolescentes e jovens em territórios empobrecidos. A Rede IVG, hoje formada por seis organizações e duas escolas parceiras, está presente em sete comunidades periféricas da região metropolitana de Florianópolis e também na Guiné Bissau, na África.

    O padre chama atenção para como a ausência do poder público nestes territórios leva muito jovens a se envolverem com o crime — e como, posteriormente, este mesmo Estado ausente coloca as periferias como responsáveis pela violência.

    Atuando há quase 50 anos no Maciço do Morro da Cruz, padre Vilson viu os becos e vielas das comunidades sangrarem dezenas de vezes, nos ditos ‘confrontos policiais’. Para ele, a morte destes jovens é resultado de um sistema falho, que precisa ser rediscutido desde sua base.

    Na capital que ostenta o posto de mais segura do país — de acordo com o ranking do anuário Cidades Mais Seguras do Brasil, do MySide, elaborado a partir de dados do Painel de Monitoramento de Mortalidade da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Ministério da Saúde — somente em 2023, foram 20 as mortes decorrentes de intervenção policial — o número representa aumento de 150% em relação ao ano anterior.

    Das 126 pessoas que morreram em decorrência de operações militares em Florianópolis nos últimos oito anos e meio, 49 são negras. Ou seja, apesar de apenas 22% da população de Florianópolis se autodeclarar negra conforme dados da PNAD 2022 —, quase 40% das vitimas da PM são homens negros.

    A onda de violência policial, porém, não fica restrita à cidade que está entre os principais destinos turísticos do Brasil: apenas no primeiro semestre de 2023, as mortes cometidas por policiais civis ou militares em Santa Catarina aumentaram 115% em comparação ao mesmo período do ano anterior. Foram 43 óbitos, contra 20 nos seis primeiros meses de 2022.

    Licença para matar

    Durante alguns minutos, o tenente-coronel André Rodrigo Serafin expõe uma série de fotos onde jovens, em sua maioria negros, portam armas de fogo. Ao mostrar os registros recebidos pela PM, ironiza: “Isso aqui não é guarda chuva não, viu?”

    O tom irônico se mantém na maior parte da entrevista com o representante do 4° Batalhão da Polícia Militar de Santa Catarina. Responsável pelo patrulhamento da região central, centro-leste e sul de Florianópolis, este é o batalhão envolvido na maioria das mortes denunciadas nesta reportagem — concentradas principalmente no Maciço do Morro da Cruz, conjunto de 20 favelas na região central da capital.

    As fotos dos jovens armados são expostas na sequência de uma lista, onde Serafin anuncia a quantidade de passagens pela polícia de alguns dos mortos em ações policiais. Para o oficial, os atos infracionais são justificativas válidas para as mortes — independente da gravidade dos crimes cometidos ou das circunstâncias da morte.

    Quando questionado sobre formas de evitar ou buscar diminuir essa letalidade causada pela PM, ele responde sem hesitar: “O conflito é uma escolha da vítima”.

    O posicionamento do tenente-coronel Serafim não é isolado, mas, sim, resultado da construção ideológica presente no funcionamento da Polícia Militar, e, no geral, de instituições de segurança pública no Brasil.

    Em Santa Catarina, a PM foi fundada em 1835, através da Lei Provincial Nº 12. Na época chamada de Força Policial, a instituição tinha como dever manter a ordem e a tranquilidade pública, atendendo desde incêndios até a prisão de infratores.

    Historicamente, é notável a proximidade da polícia militar com o exército brasileiro, desde sua criação. Em 1917, a Lei federal n° 3216 classificou as polícias militares dos estados como “forças auxiliares do Exército brasileiro”. Essa proximidade mostra como a proposta do policiamento e militarização busca manter uma dita ordem e controle social – onde a polícia age como mão armada do Estado.

    O site da polícia catarinense conta que a corporação “atuou em conjunto com o Exército Brasileiro (EB) para defender a unidade pátria”. Hoje, mais de 180 anos depois de sua fundação, a instituição carrega consigo os resquícios desse período, sentido na pele por muitos moradores das favelas da capital, que sofrem diariamente com a truculência da polícia cujo lema é “Preservar a ordem. Proteger a vida”.

    Na prática, essa proteção não é para qualquer um. A vida daqueles jovens negros e pobres expostos no celular de Serafin, por exemplo, não está protegida. As infrações cometidas são consideradas um aval para matar — e este modus operandi é parte de uma prática enraizada nas PMs, que, há decadas, praticam a pena de morte no país inteiro.

    Ainda ironizando a situação, Serafim complementa: “Vítima não, porque de vítima eles não tem nada. O confronto é uma escolha do infrator. Sempre que ele aponta a arma para um policial, colocando o policial em risco, justifica a resposta letal”.

    O tenente-coronel ressalta que compreende que a falta de oportunidades é um dos principais motivos para tantos jovens se envolverem no comércio ilegal de drogas. Mas garante: quando o indivíduo suspeito não responde com violência, não há disparos e confrontos. Ele indica, ainda, que a ação violenta destes jovens é, muitas vezes, motivada por facções criminosas que gerenciam o tráfico na cidade.

    “A gente trabalha para que não se tenha confronto policial. Mas é uma escolha deles. Lembrando que nós temos policiais mortos, nós temos policiais alvejados”, explica Serafim, reforçando que o confronto é uma situação que coloca os próprios policiais em risco.

    Entre 2016 e 2023, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, em Florianópolis, dois policiais militares foram mortos em serviço, enquanto 109 pessoas morreram durante operações da PM. Ou seja, 98% dos mortos em operações policiais eram civis. 2% eram policiais.

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