Foragido da Justiça, pastor explora usuários de drogas em recuperação

    Condenado a nove anos de prisão por assassinato, Daniel Batista de Moraes mantém casa de recuperação para dependentes químicos em Goiás. Reportagem denuncia exploração de mão de obra, rotina de semiescravidão e violação aos direitos humanos

    O suposto pastor Daniel Batista de Moraes. Foto: Arquivo pessoal

    Daniel Batista de Moraes, 31 anos, entregou o celular à mulher dele, Geice Moreira Moraes, e escondeu a taser de choque no bolso. Era manhã de segunda-feira, dia 7 de novembro de 2016. Identificando-se como policial, pastor Daniel – como gosta de ser chamado – vasculhava os ônibus que chegavam ao Terminal Isidória, em Goiânia (GO). Ele estava à procura de Marcos Antônio Pina Santos, 37. Marcos ficou internado na casa de recuperação Instituto Resgatando Vidas, presidida pela mulher de Daniel, mas administrada por ele.

    Marcos enxergou o lucro envolto no comércio de balas nos coletivos, que não sofre fiscalização por parte da Rede Metropolitana de Transportes Coletivos (RMTC), e deixou a instituição de Daniel para vender kits por conta própria. Segundo ex-diretores da entidade, cerca de R$ 30 mil são movimentados mensalmente pela Resgatando Vidas a partir da venda dos kits. Apesar da alta rotatividade, Daniel consegue manter uma média de 20 internos, todos dependentes químicos, que têm a obrigação de vender, diariamente, no mínimo 70 kits a R$ 2 cada.

    Até aqui, a Resgatando Vidas seria apenas mais uma instituição para recuperação de usuários de drogas que realiza as vendas dentro dos ônibus sob a justificativa de manter o trabalho de “recuperação” de vidas. Mas Daniel não é só mais um diretor.

    Daniel está foragido da Justiça. O mandado de prisão contra ele é um dos 23.336 que constam em aberto, somente em Goiás, segundo dados do Banco Nacional de Mandados de Prisão do Conselho Nacional de Justiça. Em 2012, ele foi sentenciado pelo 1º Tribunal do Júri de Goiânia a nove anos de prisão pelo assassinato de Damião Batista de Carvalho, ocorrido na noite do Natal de 2007. Daniel matou Damião a pedradas e pauladas após discussão durante uma festa de confraternização natalina, no Residencial Eli Forte, na capital goiana. Na região, moradores não quiseram comentar o crime que vitimou Damião, ou Baianinho, como era conhecido pelos amigos.

    Na ficha policial de Daniel consta ainda outra sentença: dois anos de reclusão, dessa vez em regime aberto. Daniel e outro réu, Walderson Gomes da Silva, foram julgados pela tentativa de assassinato de Jonas Ataídes da Silva Neto, na noite de 20 outubro de 2006, na rua Curadores, Jardim Mirabel, em Aparecida de Goiânia, na região metropolitana da capital do Estado. A vítima conseguiu fugir, após ter a perna esfaqueada e, por consequência, amputada.

    Mandando de prisão contra Daniel

    Violência

    À espera de Marcos Pina, no terminal, Daniel não se importava em chamar atenção. Falava alto ao telefone, buscando pistas de onde estaria o ex-interno. Quando Marcos chegou ao Isidória na linha 007, foi retirado à força do ônibus. Vestido de camiseta azul com o emblema da Resgatando Vidas no peito, Erenilton Erlan Souza Santos, 20 anos, surgiu como apoio de Daniel. Erlan deu uma chave de braço em Marcos enquanto o dirigente desferia vários socos no rosto da vítima.

    A cena foi acompanhada pela reportagem. Daniel agrediu Marcos dizendo: “É polícia, polícia!”. Marcos ainda tentou desmentir, mas Geice, a esposa de Daniel, reforçou a encenação do marido gritando que haviam prendido um ladrão. Os passageiros ficaram à margem da briga. Marcos foi arrastado para fora do terminal, recebeu chutes no rosto e foi largado na calçada, ensanguentado, sem os R$ 700 que arrecadara com a venda de kits de balas dentro dos ônibus desde as 5 horas da manhã. “Ele vai me matar, ele vai me perseguir”, repetia Marcos.

    O trio tentou chamar os mototaxistas em frente ao terminal para deixar o local, mas não foi atendido: “Eles agrediram uma pessoa, como é que daríamos fuga?”, indagou um dos motociclistas, sem se identificar à reportagem.

    Dois policiais militares chegaram minutos depois. Anotaram as características dos agressores, deram buscas, mas não encontraram ninguém. Daniel, Erlan e Geice haviam fugido a pé. Trezentos metros adiante embarcaram em um táxi que os levou até o terminal Cruzeiro do Sul, em Aparecida de Goiânia, onde estava estacionada a Frontier prata de Daniel.

    Marcos Pina procurou, no mesmo dia, a 8ª Delegacia de Polícia, na Avenida Segunda Radial, no Setor Pedro Ludovico, a duas quadras do terminal. Não encontrou delegado. Eram 11h15 da manhã. “Infelizmente nada foi feito. Não sei se mais tarde estarei vivo para dar outro depoimento”, disse à reportagem, em frente à delegacia.

    No dia seguinte, Marcos Pina seria novamente agredido, dessa vez, por uma equipe da Guarda Civil Metropolitana, em sua residência.

    Nova unidade em Minas Gerais

    Daniel ao lado de internos levados para Uberlândia (MG). Foto: arquivo pessoal

    Enquanto a polícia não prende Daniel Batista de Moraes, ele continua investindo na expansão da casa de recuperação. Na madrugada do dia 8 de dezembro, cerca de um mês depois de agredirem Marcos Pina no Terminal Isidória, Daniel e Erlan viajaram para Uberlândia, Minas Gerais. O objetivo de Daniel seria, segundo fontes ouvidas pela reportagem, instalar na cidade uma filial da Resgatando Vidas.

    Fotos obtidas com exclusividade mostram o grupo em um dos terminais da cidade mineira, uniformizados. Eles dormiram dentro do caminhão baú de propriedade de Tiago Ademir Mori, apontado como sócio de Daniel.

    Quando chegaram à cidade mineira, ainda de manhã, munidos de kits e vestidos da camiseta azul da Resgatando Vidas, venderam balas nos coletivos da cidade. Antes de Daniel alugar um barracão de dois cômodos, contudo, o grupo de nove pessoas, entre elas, três mulheres, chegou a dormir no baú do caminhão de Tiago por duas noites. É o que releva Erenilton Erlan Souza Santos.

    Para buscar um posicionamento da Polícia Civil acerca de Daniel estar foragido, a reportagem procurou a chefia da Polícia Judiciária da Polícia Civil na Secretaria de Segurança Pública de Goiás. O gerente de Planejamento Operacional da Superintendência da Polícia Judiciária, delegado Gustavo Carlos Ferreira, pediu que fosse feita uma denúncia pelo site da secretaria.

    Invasão a domicílio

    No dia seguinte à agressão sofrida no terminal, por volta das 15h, Marcos estava na calçada da casa onde morava com quatro amigos no Setor Caravelas, em Goiânia. Ele perguntava a João Reis, dono do barracão de alvenaria e sem reboco, o endereço da DP mais próxima para denunciar Daniel.

    De repente, uma viatura da Guarda Civil Metropolitana (GCM) apareceu na rua. Agentes armados, aos gritos, ordenaram que todos botassem as mãos na cabeça. “Mandaram a gente jogar os trem no chão, esvaziar os bolsos”. João ainda tentou explicar que era proprietário da casa, mas mandaram-no calar a boca.

    Marcos relata que os guardas levaram ele e os amigos para dentro do barracão. Dois pedreiros que trabalhavam em obra nas quitinetes testemunharam a ação dos agentes que, sem mandado de Justiça, entraram na moradia de Marcos e, segundo ele, lhes agrediram.

    A delegada Ana Scarpeli, titular do 1° Distrito Policial de Aparecida de Goiânia, instaurou inquérito para investigar a conduta da Guarda Civil. “Escutamos testemunhas, agora precisamos fazer a requisição das imagens de segurança para identificar os autores e concluir se houve ou não abuso de autoridade no local”, relata.

    Um dos jovens, segundo conta Marcos, foi obrigado pelos guardas a comer um cigarro de maconha encontrado no bolso. “O celular do rapaz ainda desapareceu depois que um GCM mandou que ele deixasse o aparelho na calçada. Além disso, os guardas mandaram a gente ir embora senão iriam voltar”, denuncia Marcos, que diz não ter dúvidas de que a Guarda Municipal invadiu sua casa a mando de Daniel. “Ele costuma fazer isso com quem atrapalha o seu enriquecimento nos ônibus. A gente acredita que sejam agentes da Guarda de Aparecida de Goiânia que costumavam, inclusive, ficar na porta da instituição”, revela Marcos.

    Depois de denunciar à polícia as agressões que sofreu no Terminal Isidória e em casa, Marcos Pina retornou para Ilhéus, na Bahia, cidade em que nasceu. Teve medo de continuar em Goiânia. Enquanto isso, Cristina Rezende, sua advogada, acompanhou o caso junto ao 8° Distrito Policial.

    No dia 26 de janeiro, Cristina Rezende representou Marcos em uma audiência conciliatória, que durou cinco minutos, no 4° Juizado Especial Criminal, no Jardim Goiás. “Essa audiência se tornou infrutífera uma vez que não houve conciliação. A defesa requereu a continuidade do feito, solicitando o envio do Termo Circunstanciado de Ocorrência ao Ministério Público. Marcos não atendeu à conciliação porque está em outro Estado para proteção de sua vida”, afirmou à reportagem a advogada de Marcos, Cristina Rezende. Além dela, compareceram à audiência a mulher de Daniel, Geice Moreira de Moraes, e a advogada de defesa dele, Betsaida Wogt Scortegagna.

    Ligações com a GCM

    Pelo que apurou a reportagem, o envolvimento de Daniel com a Guarda Metropolitana é reforçada também por outro episódio. Um agente da GCM de Aparecida, que vinha tendo problemas com drogas, esteve internado na Resgatando Vidas em 2016. Aleandro, como é conhecido, teria passado pelo menos dois meses internado, tempo em que o guarda continuou de posse da pistola PT 380. A informação é confirmada por dois ex-diretores além de vários usuários de drogas em tratamento que passaram pela instituição. Em entrevista por telefone, Geice Moreira também confirmou que Aleandro passou pela instituição.

    “Daniel andava com a pistola do guarda na rua falando que era polícia”, revela Reinaldo Rodrigues de Camargo, o Gringo, ex-diretor da Resgatando Vidas e um dos homens de confiança de Daniel.

    Um guarda civil que já trabalhou com Aleandro garantiu que o colega é um “homem problemático”. “Ele já foi viciado em crack, mas parece que melhorou”, ponderou, sob anonimato. A reportagem tentou contato com Aleandro durante os meses de dezembro e janeiro, mas o agente, que é lotado na 3º Regional da Guarda Civil Metropolitana, estaria de férias, segundo o comando da unidade.

    Comandante da 3° Regional, Luiz Maurício afirmou que Aleandro passou por um tratamento em 2016. “É costume ajudarmos os nossos agentes nesses casos. Nós indicamos um tratamento junto com a mãe de Aleandro”, afirmou, sem confirmar se foi na Resgatando Vidas. Ele não sabia que o dirigente da instituição é um foragido e disse que conversaria com Aleandro para esclarecimentos.

    Já Wéber Júnior, coordenador operacional da Guarda Civil Metropolitana de Aparecida, afirmou que só vai investigar a denúncia feita pela reportagem se “houver um caso concreto. Vamos esperar apuração da Polícia Civil”.

    Internos vivem rotina de semiescravidão e torturas

    Agressivo, Daniel Batista de Moraes não poupa nem os homens de sua confiança, a quem costuma delegar missões dentro da Resgatando Vidas: vigiar os dependentes químicos, contar o dinheiro arrecadado com a venda de balas pelos internos e coordená-los no transporte coletivo. Se faltar dinheiro da bolsa de kits, se cair a produtividade ou alguém ter uma recaída com as drogas, Daniel entra em cena. Fica a cargo dele as penalidades.

    Até o dia 12 de janeiro, a Resgatando Vidas funcionava em cima de uma loja de ferragista na avenida da Paz, no setor Garavelo, em Aparecida de Goiânia. Daniel, de Uberlândia, determinou que a instituição fosse transferida para a rua Hilário Gouveia, quadra 110, lote 24, no Buriti Sereno. O local já serviu como lar para Daniel, a mulher e um filho do casal.

    Com duas suítes, a casa do Buriti Sereno conta com duas áreas grandes, interfone e portão elétrico. Sobre essa casa também existem relatos de agressões. Um dependente químico que passou pela instituição e teve os documentos confiscados contou que, logo depois do Natal de 2016, chegou à residência sob efeito de maconha. “Ali é outro inferno, cara. Quando caí [usou maconha], ele me pegou de [sandália] kenner. Batia só na costela. Depois ele me jogou na piscina, para não ficar sinais, entendeu?”, descreve.

    Os antigos vizinhos da avenida da Paz denunciaram à reportagem que rotineiramente se escutavam gritos e barulho “de coisas batendo” de madrugada. Porém, não é qualquer um na vizinhança da Resgatando Vidas que tem coragem de comentar algo sobre o “pastor Daniel”. Adjetivado na região como “arrogante”, “bravo” e “perigoso”, Daniel já chegou a entrar na panificadora aos berros quando viu carros estacionados na sua porta. É o que contou um morador, dizendo que quando avistam a Frontier prata, os vizinhos ficam alarmados. Uma dona de casa relata ter presenciado Daniel esmurrando um jovem e expulsando-o da casa.

    Dia a dia violento

    Procurado pela reportagem após ser expulso da Resgatando Vidas de Uberlândia, no bairro Tibery, Erlan se diz arrependido de ter agredido Marcos e relata a rotina na instituição. “Ele [Daniel] quebra os caras no pau de madrugada. Na região, todo mundo tem medo dele. Ele faz lavagem cerebral nos caras para não denunciarem”, aponta o antigo braço direito de Daniel, que completa: “Já vi o pastor batendo no cara com pau e depois jogando na piscina”.

    Erlan enfatiza que Daniel é “ligeiro”. “Mesmo na avenida da Paz, Daniel levava os caras lá pra casa da piscina. Depois de bater, ele botava o moleque pra ficar uma hora dentro da piscina, de madrugada, porque dentro da piscina não fica hematoma”, explica. Sobre a agressão ao Marcos no Terminal Isidória, Erlan tenta justificar sua participação. “Agi no impulso. Daniel me mandando apagar o cara, desmaiar o cara”, recorda.

    “Uma coisa que eu vi é que aquilo ali não é coisa de Deus. Você vende através do seu testemunho no coletivo, comovendo as pessoas e as pessoas liberam os R$ 2. A família manda o filho, chega lá dentro, o cara vai ser treinado para ganhar dinheiro. Se não ganhar para a casa, ou melhor, para o falso pastor, você não vale nada, meu irmão. Ele bate, ele agride, ele manda embora”, confirma.

    A reportagem tentou ouvir Daniel sobre as denúncias. Quem atendeu a ligação foi sua esposa, Geice Moreira, que negou as acusações de agressões dentro da Resgatando Vidas. Sobre denúncias, ela se limitava a responder: “Como são drogados, é normal que os próprios internos se agridam lá dentro. Se tiverem essa conduta, eles são expulsos da casa”.

    Perigoso e gosta de se gabar dos crimes que cometeu

    Posando com fação “para amedrontar os internos”. Foto: arquivo pessoal

    Depois de mais de seis meses de convivência com Daniel, o ex-diretor da Resgatando Vida Reinaldo Rodrigues de Camargo, o Gringo, revela detalhes da rotina da casa. “Já vi o pastor batendo em pelo menos quatro internos. Joga o que tiver na frente, sem dó”, relata.

    “Pastor Daniel é um mau-caráter que manipula, usa a dependência química para lucrar. De pastor, não tem nada. Tudo ele usa a seu favor. Se for contrariado, parte para agressão não só física, mas também psicológica”, denuncia um dos homens que acompanhou a ascensão de Daniel na região metropolitana de Goiânia à frente de uma das maiores instituições irregulares do Estado.

    Gringo diz que não imaginava que Daniel pudesse ser foragido da Justiça, mas reconhece que não raramente Daniel se revelava um homem descontrolado. Segundo o ex-diretor, Daniel sempre foi um homem desconfiado e não se deixava fotografar, tampouco registrar qualquer coisa em seu nome. “O CNPJ da casa, por exemplo, está no nome da mulher dele. Eu mesmo fiz o registro”, conta.

    “Ele tem que saber que está lidando com um monte de drogado. E se um desses aí decidir apagá-lo? Tem muita gente revoltada”, assegura Gringo.

    Em raros registros fotográficos conseguidos pela reportagem, Daniel aparece esbanjando, bebendo vinho, comendo aquilo de que os internos nem sonham na rotina árdua da Resgatando Vidas. “Dinheiro da onde? Da obra, que a gente tira dos ônibus e ele vai ‘luxar’”, denuncia Erlan.

    Em uma das imagens, Daniel está empunhando facas, em uma demonstração do que é capaz. “Ele fazia isso para amedrontar os internos”, revela Gringo. Jhames Robert Silva, que assumiu a direção da casa após a saída de Gringo, conta já ter assistido a um vídeo em que Daniel aparece atirando na cabeça de um porco. “Daniel dizia no vídeo: ‘oh o que faço com safado’. Em seguida, atirava”. “Daniel é perigoso para os dependentes. Ele gosta de gabar-se dos crimes que cometeu”, confirma.

    Os dois ex-diretores são unânimes: Daniel não tem limites quando vê seu negócio sob perigo. “Falar que vai matar os outros é a bênção que sai da boca dele”, enfatiza Jhames. “Que homem de Deus é o senhor, pastor, eu dizia, e ele insistia: ‘esse safado eu vou matar, esse não fica vivo, não vai ver o sol nascer’”, lembra Jhames, que agora é diretor da instituição Guerreiros de Deus. “A nossa diferença é que seguramos o dependente por pelo menos um mês, antes de levá-lo pros ônibus”.

    Na Resgatando Vidas, como revela Jhames, o usuário de drogas é obrigado a vender balinhas no dia seguinte à internação. Ainda segundo ele, a rotina dos internos é dormir às 10hs da noite, embalando balinha, e acordar às 5hs da manhã, sem café da manhã e ir pra rua vender. “Ele não dá almoço e só uma janta que se resume a arroz, feijão e metade de um steak de frango”, relata. Ainda segundo Jhames, até o uniforme e a bolsa usados nos coletivos, o interno tem de pagar. “Todo material de higiene pessoal, o interno tem de tirar do próprio bolso. Para entrar, então, a família precisa pagar R$ 300”.

    O temperamento explosivo de Daniel já foi conhecido também por um dos fornecedores de balas para a Resgatando Vidas. A reportagem apurou que o pastor, em uma de suas idas à loja Mais Doces, na Avenida Tropical, no Garavelo, em Aparecida de Goiânia, quis entrar no depósito. Quando um funcionário tentou contê-lo, levou um soco no rosto. A partir do episódio, Daniel ficou proibido de frequentar a loja.

    Procurados, os gerentes da loja apenas confirmaram que as casas de recuperação da região são importantes clientes da empresa, mas não quiseram comentar o episódio envolvendo Daniel.

    Das drogas ao mercado informal da venda de balas no coletivo

    A política de venda de balinha no transporte coletivo não é recente. Essas instituições são dirigidas normalmente por remanescentes da Instituição Manassés, pioneira nessa abordagem terapêutica em Goiânia. Ela funcionava na avenida Venerando de Freitas Borges, no setor Jaó, mas o imóvel está desativado há mais de um ano. No site do projeto, todavia, a unidade de Goiânia continua ativa.

    “Quando a direção da unidade viu que o mercado aqui estava saturado e tinha gente bagunçando o negócio eles decidiram abandonar a unidade de Goiânia”, contou um ex-diretor da unidade da capital que não quis se identificar.

    A reportagem apurou que, na região metropolitana de Goiânia, há pelo menos quatro entidades que usam mão de obra de internos dentro dos coletivos. Entre elas estão a Resgatando Vidas, Filhos de Davi, Brasil sem Drogas, Discípulos de João (que foi extinta após Daniel entrar na casa onde moravam os jovens e agredir a todos) e Guerreiros de Deus. Sob o argumento de que não há assistência do Estado, as entidades usam a desassistência para mandar internos aos coletivos.

    Apesar do discurso ensaiado de salvação, as casas de recuperação não estão dentro da legalidade, como aponta Cristina Rezende, advogada de Marcos Pina, agredido no terminal Isidória. A maioria não possui alvará de funcionamento, registros na assistência social nem sequer o acompanhamento médico necessário para amparar os dependentes químicos em tratamento. E há agravantes, como o nítido desrespeito aos direitos humanos no trato com os internos.

    A Declaração Universal de Direitos Humanos diz que todos os indivíduos têm direito à liberdade e à segurança pessoal. “Infelizmente há uma precarização no cumprimento desses direitos”, salienta a advogada. Ela explica que a prática dos dirigentes de, logo após o primeiro dia de internação, já colocarem os dependentes para vender as balas nos ônibus, devendo ao fim do dia fazer a prestação de contas, os deixa vulneráveis.

    O Regulamento Operacional da Rede Metropolitana de Transportes Coletivos da Região Metropolitana de Goiânia (ROT) prevê que o motorista não pode “permitir a entrada no ônibus de pedintes e vendedores ambulantes”.

    Lucro

    “Muitos dos dependentes químicos, ao saírem para vender, entram em divergência com outros dependentes de clínicas ‘rivais’ e, como não estão recebendo o devido tratamento, ficam à mercê da violência. Não obstante, ao invés do tratamento estão trabalhando para as casas, sendo que o mercado de balas é altamente lucrativo, assim como o tráfico de drogas”, observa Cristina Rezende.

    Vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), André Carneiro acredita que há violação de direitos na Resgatando Vidas. “Com base nas informações que me foram repassadas me parece ser um flagrante de violação de direitos humanos de pessoas em situação de vulnerabilidade, tanto física, quanto psicológica”, considera.

    “O fato de o líder ser supostamente um religioso não pode ser tolerado nem pelo Estado e tampouco pelas instituições religiosas”. Segundo Carneiro, para que haja punição, “é preciso que se crie um processo interno para apurar esses casos, fazendo inclusive visita ao local e elaborando um relatório. Com isso a OAB oficia os órgãos competentes e acompanha o desenrolar dos fatos até o final”, finaliza.

    Falta capacitação

    A vice-presidente da Associação Goiana das Comunidades Terapêuticas, Sherydan Luiza, reconhece que instituições ilegais agem na região metropolitana de Goiânia. “Sabemos que muitas casas terapêuticas iniciam o trabalho com a força da paixão buscando contribuir com a recuperação das pessoas, crendo que é uma missão dada por Deus. Muita gente faz o trabalho de forma irresponsável”, reconhece. Para ela, precisa-se “criar leis que regulamentem esses serviços para servirem como parâmetros à fiscalização dessas entidades”.

    Ainda segundo Sherydan, os envolvidos nessas casas de recuperação precisam de treinamento. “É bom ressaltar que quem trabalha com esse tipo de serviço precisa de treinamento, educação continuidade, orientação e assistência e até supervisão externa. Hoje temos ferramentas para essas pessoas, por isso é preciso que o gestor destas instituições procure ajuda”, considera.

    “A identidade do pessoal que trabalha nas comunidades terapêuticas tem uma combinação, dedicação ao serviço, paixão para ajudar as pessoas e profissionalismo. Não se pode deixar de entender que há uma grande complexidade na dependência das drogas dentro do modelo psicossocial. Precisamos nos preparar melhor e oferecer esse serviço”, assume.

    Nota 

    O RedeMob Consórcio, responsável pelo transporte coletivo na região metropolitana de Goiânia, enviou, por meio de sua assessoria de imprensa, uma nota sobre a exploração de mão de obra de dependentes químicos em ônibus. Leia na íntegra:

    “De acordo com o art. 35 do Regulamento Operacional da RMTC (ROT) não é permitida a presença de pessoas que comprometam a tranquilidade e a segurança do demais passageiros dentro dos veículos do transporte coletivo da Região Metropolitana de Goiânia. Ainda de acordo com o documento, não é permitida comercialização de produtos de qualquer natureza ou de pedintes (Item XX, art. 49). Todos os motoristas da Rede Metropolitana de Transportes Coletivos (RMTC) são treinados e orientados com relação a essas diretrizes. 

    Todos os esforços estão sendo feitos para coibir este tipo de prática no transporte coletivo de forma a proporcionar aos clientes maior conforto e segurança em suas viagens. O RedeMob Consórcio pede o apoio da população para que faça denúncias pelo WhatsApp através do número 9.8591-8952 sempre que houver a suspeita de algo ilegal dentro dos veículos. As ocorrências são encaminhadas direto para o posto de atendimento dentro do Centro Integrado de Inteligência Controle e Comando (CIICC) da Secretaria de Segurança Pública (SSP).

    A parceria entre o RedeMob Consórcio com a SSP foi iniciada em 2014 e até novembro de 2016 já recebeu e encaminhou às autoridades policiais 11.752 denúncias que resultaram em mais de 435 detenções.”


    * Reportagem publicada originalmente na Tribuna do Planalto

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