Formação de peritos varia entre estados e chega a priorizar aulas de tiro, aponta estudo

    Dossiê faz panorama da perícia criminal no país e indica que falta de autonomia pode prejudicar duração e conteúdo de cursos para novos profissionais. Formação frágil pode refletir em condenações injustas e impunidade à violência de Estado

    Aprovados em concurso da Perícia Forense do Estado do Ceará (Pefoce) realizam treinamento prático de “tiro defensivo” | Foto: SSPDS-CE/Divulgação

    A formação de peritos criminais, que ajudam a coletar provas materiais e evitar injustiças no esclarecimento de crimes, tem ampla variação entre os estados do Brasil, com cargas horárias que ultrapassam mil horas de estudos ou são até sete vezes menores. Há ainda casos em que aulas de criminalística e de levantamentos técnico-periciais, comuns às investigações baseadas em ciência, têm menor tempo do que disciplinas de armamento e tiro, associadas ao policiamento ostensivo.

    O panorama é descrito no dossiê “Perícia e Direitos Humanos: recomendações para o aperfeiçoamento da Perícia Criminal“, lançado pelo Instituto Vladimir Herzog (IVH) junto da Fundação Friedrich Ebert Brasil (FES) em um evento em Brasília na última quarta-feira (23/4) — a Ponte esteve na cerimônia a convite do IVH. O estudo aponta que a autonomia dos órgãos de perícia criminal, uma reivindicação das entidades, é fundamental tanto na maior duração quanto no aprimoramento do conteúdo dessas formações.

    Leia mais: Entidades pedem perícia desvinculada das polícias: ‘Falta de autonomia gera impunidade’

    O dossiê indica que a formação frágil pode refletir da deterioração dos direitos humanos. O entendimento das entidades é de que a investigação baseada em evidências como é o caso da pericial — e não apenas em provas circunstanciais, como depoimentos e confissões, típicas da apuração policial — contribui, entre outras coisas, para evitar condenações injustas e a falta de esclarecimento de casos de violência policial, nos quais a palavra do próprio agente público costuma ser preponderante.

    Estados com formação até sete vezes menor

    O dossiê traz um levantamento inédito produzido em 2021 pela Associação Brasileira de Criminalística (ABC), em que listou o tempo de formação dos ingressantes em órgãos de perícia em cada estado do país, levando em consideração os concursos públicos mais recentes àquela altura. O Paraná, com um último edital de 2017, ficou em primeiro, com uma formação que poderia chegar a 1.272 horas. Já o Rio Grande do Norte, com menor tempo, ofereceu aos ingressantes de 2021 um curso de 180 horas.

    “É inusitado, sob a ótica racional, constatar que a formação de dois profissionais que possuem as mesmas atribuições pode ser realizada com tamanha variação de tempo (de cerca de 706%)”, descreve o dossiê em seu capítulo “Formação de peritos oficiais e aperfeiçoamento do ensino pericial criminal no Brasil”, assinado pelo perito criminal Claudemir Rodrigues Dias Filho. Ele é servidor da Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo, além de professor e autor de livros sobre o tema.

    Alguns estados, como Mato Grosso do Sul e Santa Catarina, têm definida em lei uma carga horária mínima para as carreiras periciais, mas não indicam uma grade de conteúdo. A pesquisa levanta a hipótese, ao analisar o caso de São Paulo, de que um maior intervalo entre concursos causaria uma carga horária menor de formação, dada a necessidade de ocupar com maior rapidez os cargos vagos — uma estimativa no dossiê indica que o Brasil teria um déficit de ao menos 38.150 peritos criminais.

    Formação frágil dos peritos criminais pode refletir da deterioração dos direitos humanos no país, aponta estudo apresentado esta semana em Brasília | Foto: Paulo Batistella/Ponte Jornalismo

    Autonomia influencia em conteúdo na formação

    O estudo também aponta que órgãos de perícia com maior flexibilidade para estruturar a própria formação apresentam um curso mais sólido e homogêneo, além de, consequentemente, mais duradouro. São os casos do Paraná e de Santa Catarina, onde a perícia não está submetida à Polícia Civil mas tem autonomia dentro de uma Polícia Científica. Esses estados também têm órgãos próprios de ensino.

    “Essa flexibilidade permitiu uma maior especialização na formação de peritos. Em Santa Catarina, o curso de formação de peritos criminais tem carga horária variável, de acordo com a especialidade”, indica o estudo. Ele argumenta ainda que a Academia de Ciências Forenses do Paraná e a Academia de Perícia de Santa Catarina deram mais ênfase a disciplinas de áreas técnico-científicas do que São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, com cursos mais voltados a atividades policiais.

    Leia mais: Artigo | A ADPF das Favelas e a luta por uma perícia independente e autônoma

    “A título de exemplo, o curso de formação dos peritos criminais em São Paulo, planejado para o concurso de 2013, teve 88 horas-aula de ‘Armamento e Tiro’ e 12 horas-aula de ‘Levantamentos Técnico-Periciais’ e de ‘Introdução à Criminalística’. Avaliando a questão no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, Misse e colaboradores (2009) corroboram com esta constatação: no Rio de Janeiro, apontam que, quando oferecidos cursos aos peritos, são direcionados à atividade policial investigativa ou ostensiva; em Minas Gerais, 40 horas-horas aula da formação foram destinadas a ‘Noções de Direito’ em detrimento de 8 horas-aula de ‘Fundamentos de Criminalística'”, relata a pesquisa.

    Garantia dos direitos humanos

    O capítulo do dossiê dedicado à formação dos peritos ainda defende o treinamento continuado desses profissionais, a promoção de um currículo mínimo e de um escola nacional, além da instrução de outros profissionais da saúde e da segurança pública sobre o tema, já que eles também são necessários para a preservação de vestígios e da cadeia de custódia na produção de provas. Isso seria fundamental para a garantia dos direitos humanos.

    “As perícias criminais idôneas, confiáveis e bem fundamentadas, conferem robustez às políticas de prevenção e combate à tortura, à violência e à letalidade policial, à prevenção a condenações equivocadas, dentre outros aspectos ligados à justiça criminal e à segurança pública”, aponta.

    “Logo, um currículo mínimo deve incluir sólida formação dos profissionais da perícia criminal em Direitos Humanos, mas sem se restringir a ele. Conteúdo afeto às Ciências Sociais e que abordem a interface entre o direito, a segurança pública e a justiça criminal também devem compor o currículo mínimo. As inclusões destas disciplinas, que parecem fugir do escopo técnico pericial, são relevantes para o entendimento dos impactos da atividade policial, em geral, e do trabalho pericial, em específico, sobre a sociedade e a população”, argumenta ainda a pesquisa.

    Perícia frágil prejudica justiça desde a ditadura

    O dossiê reúne também outros três estudos temáticos para traçar um panorama da perícia criminal no contexto do sistema de Justiça e dos direitos humanos no Brasil. Um deles trata da autonomia da perícia oficial de natureza criminal. Um outro é dedicado à importância da cadeia de custódia na coleta e apresentação de provas, enquanto o último aborda a expansão da identificação genética e as implicações disso para os direitos fundamentais.

    As entidades responsáveis pelo dossiê defendem que os órgãos de perícia oficial — como os institutos médicos legais (IMLs) e de criminalística — sejam desvinculados não só da Polícia Civil, mas também da Secretaria de Segurança Pública de cada estado. Elas citam como exemplo disso o caso do jornalista e cineasta Vladimir Herzog, torturado e assassinado pelo ditadura militar-empresarial na sede do Departamento de Operações de Informação-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) em São Paulo, em 1975. Na ocasião, a perícia submetida aos militares foi complacente com o crime.

    Leia mais: ADPF das Favelas tem reviravolta, e STF diz que segurança do Rio saiu de ‘estado inconstitucional’

    Um laudo médico produzido à época ignorou, entre outras coisas, lesões de tortura no corpo da vítima e apontava como causa da morte “asfixia mecânica por enforcamento” — alegando suicídio. Não houve registro de um eventual sulco duplo no pescoço de Vlado, sinal característico de enforcamento. Para o IVH e a FES, a promoção da verdade e da justiça ainda segue ameaçada pela falta de autonomia do trabalho pericial, especialmente em casos de violência policial e de Estado.

    A desvinculação da perícia das pastas de segurança pública foi uma das 49 recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV) ao Estado brasileiro em 2014 na ocasião em que analisou o caso de Herzog. Os estudos do dossiê estão disponíveis para consulta desde outubro do ano passado.

    Antes disso, em 2020, o IVH havia publicado o relatório “Políticas de Perícia Criminal na Garantia dos Direitos Humanos”, que considerou um primeiro esforço sobre o tema. Três anos depois, o instituto havia lançado, junto da FES, o relatório “Fortalecimento da Democracia: Monitoramento das Recomendações da Comissão Nacional da Verdade”, no qual relatou ter ocorrido pouco avanço da desvinculação da perícia das polícias. As duas entidades também estiveram juntas, entre 2021 e 2022, no Grupo de Trabalho Perícia Criminal (GT), no âmbito do projeto Núcleo Monitora CNV.

    Peritos cobram governo Lula por autonomia

    No evento de lançamento do dossiê em Brasília, lideranças de entidades de peritos cobraram maiores esforços do governo Lula (PT) para que a autonomia da perícia seja garantida no Brasil. A recente Proposta de Emenda à Constituição 37/2022, a chamada PEC da Segurança Pública, foi entregue pelo ministro Ricardo Lewandowski ao Senado sem qualquer menção a um trabalho pericial autônomo. Uma outra PEC anterior, a 76/2019, que pretendia fixar na Constituição Federal a polícia científica como um órgão de segurança pública, também segue escanteada.

    Ponte apurou que, ao final do passado, as entidades de peritos criminais levaram ao ministro Lewandowski um pedido de inclusão da autonomia dos órgãos de perícia na PEC da Segurança Pública, o que acabou ignorado, embora a pasta tenha indicado não se opor à proposta. Os peritos entendem que existe um lobby de delegados, aos quais interessaria manter a perícia debaixo do guarda-chuva da Polícia Civil ou como mera linha auxiliar da investigação policial.

    A defesa de uma perícia criminal não apenas autônoma, mas também fora dos marcos policiais ainda ganhou projeção recente em meio à tramitação da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, no Supremo Tribunal Federal (STF). Integrantes do Fórum Popular de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (FPOPSEG) trataram do tema em um artigo publicado pela Ponte.

    No início de abril, o STF chegou, no entanto, a um voto de consenso que não desvinculou a perícia das polícias, mesmo em casos de mortes cometidas pelo Estado. A ordem foi para que, em ocorrências com óbitos, os próprios policiais terão de preservar a cena até a chegada de um delegado e dos peritos.

    Ainda nessas ocasiões, o Ministério Público estadual (MP-RJ) terá de ser comunicado, conforme definir um protocolo próprio a ser elaborado junto à Secretaria de Segurança Pública do Rio (SSP-RJ). À Ponte, especialistas relataram que a decisão do STF não contemplava a necessidade de uma perícia autônoma.

    *O repórter Paulo Batistella viajou a Brasília a convite do Instituto Vladimir Herzog (IVH).

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