Imagem capturada por policiais de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, levou entregador de quentinhas a ser preso; absolvido, ele quer andar de cabeça erguida e comemorar aniversário com a família
“O maior presente que eu ganhei foi na terça-feira (15). Graças a Deus me livrei dessa perseguição”. É assim que o entregador de quentinhas, Thiago Vianna Gomes, 28, fala da absolvição imposta pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) a uma condenação por roubo, após ter sido reconhecido em um álbum de fotografias exibido em uma delegacia na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro.
Com a decisão tomada pelo ministro Sebastião Reis, já são oito processos derrubados após o jovem negro ter sido reconhecido, em todas elas, através de fotografia. Em nenhum dos casos foram encontrados pertences das vítimas com ele.
A história de Gomes beira o absurdo e revela a problemática das ações policiais para investigar, denunciar e pedir a prisão de uma pessoa. Corria o ano de 2016 quando Gomes e alguns familiares bebiam em um barzinho em Mesquita, na Baixada Fluminense. Ele conta que pouco tempo depois da chegada ao local seu telefone tocou. Do outro lado da linha um amigo pediu ajuda para rebocar seu veículo que havia parado. Prestativo, ele seguiu junto a seus familiares até o endereço mencionado.
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Lá, seu amigo disse que buscaria uma corda para auxiliar no reboque. Nesse meio tempo, uma viatura da Polícia Militar passou pelo local. Questionado sobre o que faziam ali, contou toda a história. Os policiais então puxaram a documentação do veículo em que estavam, que havia sido emprestado pela mãe de Gomes. Não foram encontradas irregularidades. No entanto, ao puxar informações sobre o veículo de posse de seu amigo, o mesmo apresentou ser roubado. “Se eu soubesse que o carro era roubado, eu não estaria ali”, disse Gomes à reportagem da Ponte.
O amigo acabou por não voltar após sair para buscar a corda. Gomes e seus familiares foram levados até o 52° DP (Nova Iguaçu), também na Baixada Fluminense. Lá, uma foto tirada por policiais, sabe-se lá com qual intenção, acabou por transformar a vida do jovem em diversas idas e vindas a fóruns e detenções em unidades do sistema prisional.
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Fichado naquela data por receptação, Gomes foi liberado para responder o processo em liberdade após uma vaquinha para pagar a fiança feita entre seus familiares e do amigo que o teria chamado para rebocar o carro.
“Fiquei dois anos assinando [no fórum], assinava mês sim e mês não. Na época, estava trabalhando com artesanato. No último mês, na última assinatura, caiu um mandado de prisão contra mim. Estava em casa. Os policiais chegaram e eu até então não sabia de nada. Achei que era em virtude da receptação”.
De acordo com Gomes, os policiais que efetuaram a prisão nada falaram sobre o motivo que levou eles até ali. Conduzido para Benfica, na zona norte da capital fluminense, só soube o real motivo após três dias detido e através de sua mãe.
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“Na visita minha mãe falou que eu estava respondendo por quatro 157 [artigo do Códio de Processo Penal que indica roubo]. Falaram que eu estava em formação de quadrilha com um bando que já estava preso. Todos do Complexo do Chapadão. Gente que eu nunca vi na minha vida”, conta Gomes.
Foram oito meses preso, com passagem por Benfica e no Presídio Coutrin Neto, em Engenheiro Pedreira, em Japeri, também na Baixada Fluminense. Ao sair, em janeiro de 2019, Gomes teve outra surpresa desagradável. Já eram outros seis reconhecimentos por roubo. Tudo em virtude da foto tirada por policiais de Nova Iguaçu.
Naquela altura, além do medo, como seria seu futuro passou a rondar sua cabeça. Mas, ao mesmo tempo, seus filhos o faziam pensar só em trabalhar e provar sua inocência.
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“Ele nem sabia que estava sendo acusado pelos crimes. Nunca encontraram nada com ele, só reconhecido fotograficamente. A gente tem um problema com esses reconhecimentos fotográficos, que é a pessoa saber que ela é acusada muito tempo depois”, afirmou a defensora pública Rafaela Garcez.
Gomes explicou que a foto foi tirada no 52, mas todos os roubos foram na área de Nilópolis. “Os reconhecimentos foram todos na delegacia de Nilópolis”. A distância entre uma cidade e outra é de cerca de 10 quilômetros.
“A foto dele na delegacia está de cabelo loiro, entra no estigma de um cometedor de crime. Infelizmente, a nossa sociedade vê um jovem negro com o cabelo com reflexo como alguém que comete crime”, pontuou Rafaela.
Quem também faz críticas aos álbuns de fotografia de suspeitos presentes nas delegacias é o diretor do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) Guilherme Carnelós. “Qual o critério para uso desse álbum? Quem criou esse álbum? As polícias precisam se estruturar e precisam ser treinadas. Produção de prova é coisa seria. Não dá para deixar na mãos da intuição e falar: ‘foi esse aqui’”. Em sua análise, as fotos são “geralmente de pessoas negras, com um racismo muito forte envolvido. A pessoa é reconhecida pelo tom da pele e não efetivamente a pessoa que cometeu o crime”, completou.
Com tantos processos, Gomes acabou por ser preso em março deste ano, dias após o anúncio da pandemia que já assolava o mundo. De quebra, mais duas semanas detido no Presídio Ary Franco, em Água Santa, na zona norte da capital, até ser colocado em prisão domiciliar.
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Sua prisão se deu pela acusação do roubo de uma motocicleta em 2017. A vítima de roubo apontou que o assaltante era negro e tinha 1,65 metro de altura. Já Gomes possui 1,80 m. No entanto, de acordo com a advogada Rafaela, “a desembargadora [da 2ª Câmara Criminal] que atuou no julgamento pontuou que a diferença de 15 centímetros não seria significativa. Essa condenação transitou em julgado e ele foi preso. Por conta da Covid-19 consegui a prisão domiciliar”.
É tal processo, que consta entre as indagações a altura entre as duas pessoas, a foma como se deu o reconhecimento, com pessoas de tonalidades de pele diferentes, além da falta de semelhança entre Gomes e o verdadeiro suspeito, que levou Sebastião Reis conceder a absolvição.
Além dos trabalhos da Defensoria Pública, o IDDD atuou como amigo da corte perante o STJ, ou seja, acompanhou foi convidado a opinar sobre o caso. Para o instituto, “a decisão consolida ainda mais o entendimento de que o reconhecimento não pode ser a única prova para a condenação”.
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“A fotografia do rosto não fala sobre a altura. O reconhecimento equivocado não gera benefício para ninguém a não ser para o policial que quer se livrar do problema. Ninguém está falando que a vítima é maldosa. A vítima é levada a acreditar que ela está reconhecendo o autor do fato, quando não está”, afirmou Carnelós.
A prisão em casa, que o fazia trabalhar ajudando sua mãe a entregar as quentinhas, foi derrubada na última terça-feira pelo ministro do STJ, Sebastião Reis. Em seu despacho, o magistrado apontou que “o caso é de insuficiência de prova de autoria, ou seja, de aplicação pura e simples do princípio do in dubio pro reo, conclusão essa que não demanda nenhuma análise da prova coligida”.
O jovem, que ainda responde a mais dois processos entre todos os que já foram colocados em sua conta, espera que eles também tenham um final feliz em março, quando devem ocorrer as audiências. Ele também analisa que sua cor pesou nas decisões. “Isso é um pouco de racismo, com implicância do delegado. Se eu fosse realmente ladrão, eu não seria burro de roubar em Nilópolis, já que tudo cai para mim ali”.
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Gomes não tem dúvida do que espera para o futuro, principalmente como quer andar pelas ruas de seu estado, seja em Mesquita, Rio de Janeiro ou Nilópolis. “Quero ter uma vida igual todos têm, andar tranquilo na rua. Andar de cabeça erguida. Quem me conhece sabe que sempre trabalhei desde novinho. Nunca deixei faltar nada para meus filhos”, completou.
“O caso de Gomes é um símbolo do que acontece nas polícias Brasil afora, que são técnicas de reconhecimento policial completamente fora da técnica. A legislação é completamente desrespeitada. Quando se tem que fazer um processo de reconhecimento, você precisa da descrição da vítima sobre como era a pessoa que cometeu o crime. A partir dai você vai chegar se aquele suspeito que você tem em vista bate com a descrição”, explicou Carnelós.
Procurada, a Polícia Civil do Rio de Janeiro não se pronunciou sobre o uso do álbum de fotografias.
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