Organizada pelo movimento ‘A Craco Resiste’, roda levou o samba à Praça Júlio Prestes, reformada há seis meses; moradores relatam que pessoas em situação de rua são impedidas de frequentar o local
Descalço, um dos rapazes acompanhava o ritmo e arriscava passos sem medo. Crianças andavam de bicicleta e cães corriam pelo gramado. Com o pandeiro, Douglas Marco, 40 anos, puxava o repertório e guiava o coro. “Quando a gente ama, brilha mais que o sol / É muita luz, é emoção, o amor”, vibrava ao cantar uma das músicas de Arlindo Cruz.
Há seis meses, a reforma da Praça Júlio Prestes, no centro da capital paulista, em uma parceria público-privada, foi entregue pelo governo do Estado e pela prefeitura, mas era a primeira vez que Douglas pisava no local. A reforma aconteceu por conta da construção de unidades habitacionais no centro de SP.
“Está vendo esses instrumentos aqui?”, apontava. “Sei tocar todos. Toda a vez que escuto um batuque, é inexplicável a sensação. Hoje eu estou sentindo o samba irradiando meu coração”, contava emocionado. “Por trás do que as pessoas chamam de usuário de drogas, há muita história”, completava.
Organizada pelo movimento A Craco Resiste, a roda de samba, realizada no sábado (1/12), buscava promover a ocupação do espaço público por pessoas que moram e frequentam a região da Luz, conhecida como Cracolândia, e que engloba a Praça Júlio Prestes.
Douglas trabalha como assistente comercial numa empresa e conta que veio de uma família de músicos e sambistas, tendo participado de diversas apresentações. “Meus tios criaram o grupo Samba Lá de Casa e eu acompanhava direto, era maravilhoso”, lembra.
No entanto, aos 16 anos, com o falecimento da mãe, Douglas passou a sentir uma tristeza profunda. “A gente era muito ligado, foi um baque muito grande. Nesse momento, acabei indo para outros caminhos para tentar fugir da dor. Sair do vício é a dificuldade muito grande e aqui as autoridades não sabem como lidar com a gente. É desrespeito todo o dia”, conta.
“Nós só estamos sentados aqui hoje porque vocês [reportagem] e movimento estão aqui. Porque se a gente pegasse um pandeiro para fazer uma roda não iam deixar”, afirma Antônio Carlos Nascimento, 50 anos, mais conhecido como Kawex. “O artigo 5º da Constituição diz que somos todos iguais perante a lei. Então por que eu não posso estar aqui?”, questiona.
Ao contrário de Douglas, Kawex conta que tentou diversas vezes tocar cavaquinho, mas descobriu outra habilidade. “Meu pai tinha uma oficina mecânica aqui no centro e teve um dia, quando eu tinha 12 anos, que eu fui acompanhar as rodas de samba que a minha família ia e comecei a batucar. Aí eles notaram que eu sabia cantar”, lembra. “Eu cresci num momento em que o samba era muito marginalizado. Fui vendo que ele deixou de contar histórias de vida, por isso fui para o rap”, explica.
Kombat. Argument. War. Extreme. A junção das palavras que formam a frase “combate e argumentos numa guerra extrema” e nome artístico de Kawex refletem sua trajetória há 20 anos frequentando a Cracolândia. Durante o governo Collor (1990-1992), o pai do rapper acabou perdendo a oficina e teve um acidente vascular cerebral. “A situação da família começou a apertar, meu pai tinha que fazer hemodiálise, mas não tínhamos como pagar naquela época. Foi um sofrimento grande que eu não esqueço e que acabou me levando para o crime”, relembra.
No sistema carcerário, Kawex passou a nutrir um desejo que ainda pretende realizar, que é cursar uma faculdade de direito e se especializar em direito criminal. “Na cadeia, a gente só tinha acesso à bíblia e ao Código Penal. Os próprios presos não conhecem a Lei de Execução Penal e eu já fui punido lá dentro várias vezes por tentar pedir uma condição humana de tratamento que já é previsto em lei”, pontua. “Eu frequentava um grupo de teatro no semi-aberto e por causa de uma falta disciplinar, me tiraram do grupo. Me colocaram para construir gaiola de passarinho. Me diz se isso é reeducação de preso?”, contesta.
Por conta da megaoperação de maio de 2017, na região da Cracolândia, Kawex escreveu o rap São Paulo à noite, o mundo se divide em dois, em que canta sobre “um mundo que não distingue amor da maldade” e gravou seu primeiro álbum em novembro deste ano.
“Eu quero compartilhar o pouco do conhecimento que eu tive para as pessoas por meio da minha história. Todo mundo deveria ler a constituição e conhecer seus direitos para votarem de forma consciente nas pessoas”, finaliza.
O outro lado
A reportagem entrou em contato com as assessorias do Governo do Estado, da Secretaria de Segurança Pública e da Secretaria de Segurança Urbana sobre a questão do acesso à Praça Júlio Prestes.
Em nota enviada à Ponte, a GCM (Guarda Civil Metropolitana) informou que “os espaços de praças são públicos, portanto, abertos para todos os cidadãos. Reafirmamos que proibir a entrada de pessoas em situação de vulnerabilidade em determinado espaço não condiz com o trabalho desenvolvido pela GCM”.
Já a SSP (Secretaria de Segurança Pública), alegou que “o policiamento preventivo no local é mantido por equipes do 13º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano (BPM/M), com apoio da GCM. A instituição atua no entorno da praça para coibir o tráfico de drogas, garantir a ordem e assegurar o direito à livre circulação”. Na mesma nota, a SSP esclarece ainda que “a Praça Júlio Prestes foi revitalizada pela Prefeitura de São Paulo e, conforme Lei Orgânica do Município e Estatuto da Guarda Civil Metropolitana, praças são de responsabilidade administrativa e de gestão do poder municipal e da GCM. Além disso, a PM não tem atribuição para controlar o acesso a ela, portanto não há orientação para restringir ou permitir a circulação”.