Gabriel foi morto por um PM de folga quando conversava com amigos. ‘Luto por justiça’, diz mãe

    Jovem de 17 anos foi assassinado em junho de 2017, em Londrina, Paraná, após PM de folga atirar no asfalto e o projétil atingir seu tórax

    Gabriel Sartori, com a mãe, foi morto pelo PM Bruno Zangirolami, em 2017. O caso segue sem solução até hoje | Foto: Maria Cristiane Sartori

    Era feriado de Corpus Christi quando o estudante Gabriel Sartori, 17 anos, decidiu encontrar dois amigos em frente ao Colégio Estadual Professora Maria José Balzanelo Aguilera, na zona sul de Londrina, Paraná. Naquela tarde de 15 de junho de 2017, o adolescente foi morto pelo policial militar Bruno Carnelos Zangirolami, 29 anos, enquanto conversava despretensiosamente com os amigos. 

    O policial estava de folga e passeava com um cachorro da raça dobermann na rua Tarcisa Kikuti, onde fica o colégio estadual, e viu Gabriel e seus amigos, por volta das das 17h30.

    À justiça, Zangirolami disse que os jovens usavam drogas e que um deles tentou pular o muro para entrar na escola. “Saquei a pistola e disse: Polícia, mão na cabeça! Quando chegaram mais perto, atirei no chão para tentar impedir que me agredissem ou tomassem a minha arma. Saí novamente e vi o garoto no chão ”, relatou o PM à juíza da 1ª Vara Criminal de Londrina, Elisabeth Kather, em 2018. 

    Na época, o policial foi preso em flagrante pela delegada Geanne Aparecida Fernandes Felicio dos Santos, da 10ª Subdivisão Policial de Londrina, mas foi solto em seguida. A perícia do Instituto de Criminalística, da Polícia Civil, comprovou que, de fato, o tiro foi direcionado ao asfalto. 

    O PM também alegou à juíza que tentou ajudar Gabriel depois de ele ser atingido pelo tiro, mas ele morreu poucos minutos depois. Hoje, o policial trabalha na PM paranaense em atividades administrativas, na 4ª Companhia Independente de Polícia Militar. Enquanto isso, o processo sobre a morte de Gabriel segue na Justiça sem julgamento.

    Família e acusação contestam versão do PM

    Naquele 15 de junho de 2017, a gerente de loja Maria Cristiane Sartori, 45 anos, mãe de Gabriel, se preparava para ir trabalhar em um shopping. Por ser feriado, ela entraria às 14h e, assim, almoçou com o filho e sua mãe. “Foi um dia tranquilo, normal, como qualquer feriado. Me despedi do meu filho, dei um beijo, falei que o amava muito e fui trabalhar”. 

    Horas depois de último beijo em Gabriel, a vida de Maria Cristiane mudou. “Recebi um telefonema da cuidadora da minha mãe. Ela disse que o Gabriel havia levado um tiro. Foi a coisa mais irônica que ouvi na vida. Como levou um tiro? Meu filho nunca fez nada de errado”. 

    Maria Cristiane saiu correndo do trabalho, incrédula, achando que seu filho estava vivo. “Foi muito sufocante sair daquele shopping e correr até meu filho para saber que ele tinha ido embora. Dentro do meu coração de mãe, jurava que ele estava vivo. Aí, descobri toda a história foi muito traumático, até hoje é”.  

    De acordo com Maria Cristiane, a versão do policial não procede porque nem Gabriel nem os amigos tentaram pular o muro do colégio. “Não tinha motivo para os meninos pularem o muro. Ele [PM] mudou a versão e disse que os garotos tentaram ir para cima dele e isso foi uma legítima defesa”. 

    Ainda que a versão do PM fosse verdadeira, Maria Cristiane reitera que a morte do filho não poderia ter acontecido. “Não era motivo suficiente para um cara de folga, com um cachorro de grande porte, atirar. Isso a justiça em Curitiba e a de segunda instância alegam. Não haveria como o policial agir em legítima defesa, ele tinha uma arma e um cachorro de grande porte. Eu concordo com essa versão”. 

    João Vitor Oliveira, 22 anos, atualmente desempregado, um dos amigos com que Gabriel conversava, diz que os adolescentes não usavam drogas naquele momento e também que não tentaram agredir o policial. “Estávamos limpos, ficamos conversando por meia hora. Pouco tempo depois, vi um cara alto se aproximando com um cachorro bem grande. Nesse momento, ele falou: ‘Já falei para não fumar essa merda aqui!’, e deu o tiro. Só que na hora que ele sacou a arma já saímos correndo para longe dele”. 

    Na última quinta-feira (15/04) familiares protestaram por justiça pela morte de Gabriel | Foto: Eric Vilas

    Naquele instante, João correu até a esquina e viu o amigo Gabriel caído. Pensou que ele tinha apenas tropeçado. O rapaz ainda conta que não havia motivos para pular o muro, pois a escola era aberta para o lazer dos jovens nos feriados. “O colégio nos liberava para jogar bola e andar de skate. Não tinha porque pular o muro, sendo que podíamos simplesmente pedir para entrar”. 

    Ele também contesta a narrativa de que teriam avançado no policial. “Não avançamos contra o policial, éramos três jovens magros e desarmados”. 

    O advogado da família de Gabriel e assistente da acusação, José Carlos Mancini Jr., 40 anos, explica que, independentemente das versões apresentadas, o policial, sendo um representante do Estado, não poderia atirar no chão para assustar os meninos. “Se estavam usando drogas, o policial teria que conduzi-los até a delegacia, convidar os pais, conversar com eles, esse é o Estado Democrático de Direito que a gente acredita”. 

    Mancini Jr. critica o uso da arma na ação. “A solução da arma é a morte e infelizmente, nesse caso, a arma venceu e o Gabriel morreu e isso não tem como voltar atrás”. 

    Leia também: PMs atiram em jovem negro com deficiência intelectual e pisam na cabeça de seu amigo

    O advogado esclarece que após a prisão em flagrante do policial, o promotor Ricardo Domingues o denunciou, em 13 de julho de 2017, por homicídio em dolo eventual _a pessoa não quer cometer o crime ou gerar o resultado, mas assume o risco.

    Em novembro de 2018, a juíza Elisabeth Kather, da 1ª Vara Criminal de Londrina, decidiu pela pronúncia, ou seja, decidiu levar a julgamento pelo júri popular o policial militar Zangirolami. 

    Depois da pronúncia, Eduardo Miléo, advogado de defesa do policial, alegou que a decisão judicial foi dada mediante a excludente de ilicitude de legítima defesa e também solicitou a desclassificação da modalidade dolosa para o dolo eventual, ou seja, quando o agente mesmo sem querer o resultado, assume o risco de o produzir. Apesar disso, a decisão da juíza Elisabeth foi mantida pela segunda instância do Tribunal de Justiça do Paraná.

    Miléo ainda tentou recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em 9 de janeiro de 2019, e alegou novamente a mesma argumentação, o que foi negado pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca, em fevereiro de 2020. Agora a família aguarda o julgamento pelo Tribunal do Júri de forma presencial. Por conta da pandemia da Covid-19, a decisão se arrasta.

    Em entrevista à Ponte, Miléo afirmou que os rapazes estavam em frente à escola, em cima do muro, e utilizando drogas. “O militar tinha o dever de zelar pela segurança da escola, e quando saiu para abordar, os indivíduos investiram contra o militar estadual”.

    “O policial não disparou diretamente e, sim, para o solo, como comprovou a perícia. Houve um improvável ricocheteio do projétil, que acertou Gabriel. O processo está aguardando apenas as fases processuais dedicadas ao preparo do julgamento plenário”, conta Miléo.

    Sobre a demora para ocorrer o júri popular, o advogado da família de Gabriel, José Carlos Mancini, disse que é o melhor a se fazer em um momento de pandemia. “Infelizmente, essa pandemia chegou e a gente tem que aguardar para conseguir garantir um debate presencial, exatamente pela complexidade que o próprio fato apresenta”. 

    Passados quatro anos, os impactos da morte de Gabriel ainda refletem no dia a dia de sua mãe, Maria Cristiane. “É impossível dormir sem medicamentos, viver uma vida normal, sem tomar antidepressivo, eu sou medicada com remédio para viver o meu dia a dia”. 

    Ela conta que além de filho, Gabriel era um grande companheiro, fruto de uma vida repleta de dificuldades, uma vez que era mãe solteira e o pai do adolescente era ausente. “Eu tinha um um parceiro, alguém que sonhava com um futuro comigo, que falava assim: ‘Mãe, eu vou trabalhar, eu vou ganhar bem, você não vai mais trabalhar eu vou sustentar a casa”.

    Maria Cristine conta que o sonho de seu filho era servir o Exército. “Ele dizia que queria servir o Exército e o Brasil”. Ironicamente, ela busca justiça pelo filho morto por um militar. “E eu quero muito que a justiça seja feita para que ele seja condenado e expulso da corporação. Saber que alguém que deveria proteger e estar cuidando da segurança é a pessoa que tirou a vida do seu filho de repente. O mínimo que eu tenho que fazer é continuar lutando por ele”.

    Moradores do bairro vão às ruas por justiça 

    Vídeo produzido e editado por Zé Pulinho do Movimento Autônomo

    Na noite de quinta-feira (15/04), dia em que Gabriel completaria 21 anos, familiares e amigos do jovem reuniram-se em frente ao Colégio Estadual Professora Maria José Balzanelo Aguilera para protestar contra a morte do estudante e pedir justiça no caso. Cerca de 20 pessoas gritavam: “Sartori, presente! Hoje e sempre!”. Eles levavam uma faixa que dizia: “Gabriel vive. Perdoar nunca, esquecer jamais!”. 

    Os manifestantes também fizeram um minuto de silêncio em homenagem ao adolescente. Desde a sua morte, outros dois atos aconteceram em Londrina. Dessa vez, o Movimento Autônomo, organização social local, foi quem organizou a mobilização.

    O advogado Lucas, 24 anos, que esteve presente no ato e não quis se identificar complemente por temer represálias, lamentou a morte de Gabriel, um conhecido seu do bairro. “Foi muito dolorido, principalmente por ver a mãe dele, pela condição de ele ser filho único, mas essa morte também serviu como um grande alerta em todo o bairro, para a comunidade se organizar, se unir e se opor a esse tipo de violência estatal”. 

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    A violência policial cresceu no Conjunto Cafezal desde a morte de Gabriel, conta Lucas. “O abuso e a violência policial nos últimos dois anos, principalmente esse ano, piorou. Nós somos abordados na frente de casa sem fazer nada de errado, sofremos humilhações dos policiais. Eu sofri dois enquadros junto com amigos nos últimos meses e, no penúltimo, assisti um amigo meu negro apanhar de um policial branco”. 

    Para Lucas, a única saída é a união. “Quando o movimento se organiza, se une, quando a comunidade dá os braços criamos condições para que esse tipo de coisa seja muito difícil de acontecer novamente porque vai ter uma oposição radical a essa violência”.

    Procurado pela Ponte, o Ministério Público do Paraná não respondeu qual é a visão da acusação sobre o argumento de que o PM teria agido legítima defesa ao matar o jovem.

    O Tribunal de Justiça do Paraná também não informou qual é a previsão para que o PM Zangirolami seja levado ao Tribunal do Júri. 

    A reportagem fez os seguintes questionamentos à Secretaria de Segurança Pública do Paraná, do governador Ratinho Júnior (PSD):

    A Polícia Militar tem protocolo para os policiais exercerem durante as folgas?

    É permitido que o policial utilize arma de fogo durante a folga?

    O PM Zangirolami seguiu corretamente o protocolo da polícia, caso ele existe, na ação de resultou na morte de Gabriel? 

    Por que o policial trabalha agora nas atividades administrativas na 4ª Companhia Independente de Polícia Militar?

    A Segurança Pública de Ratinho Júnior não respondeu nenhuma das questões. A reportagem solicitou uma entrevista com o policial militar Bruno Carnelos Zangirolami à Secretaria de Segurança Pública do Paraná, o pedido também não foi respondido.

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