Guardas usaram bombas de efeito moral e gás de pimenta para dissipar festa na periferia do município. Moradores foram agredidos e um jovem baleado no pé
Na noite da última quarta-feira (20/11), uma festa ocupava a rua Caiva, na periferia de Cajamar, região metropolitana de São Paulo. Era feriado nacional, Dia da Consciência Negra, e a moradora Janaina Ferreira, de 46 anos, conta que não participava da festa, apenas acompanhava o movimento sentada na calçada em frente à sua garagem, com a neta. Foi quando percebeu a chegada de um grupo de agentes da Guarda Civil Metropolitana (GCM) do município. A auxiliar de produção relata que, antes de conseguir entrar em casa, bombas de efeito moral já foram lançadas pelos guardas.
Quatro agentes com cassetetes nas mãos avançaram na rua enquanto as bombas de efeito moral soltavam fumaça e uma correria começava. Janaina pegou sua neta e entrou na garagem. Os guardas pararam em frente à casa, e outros membros da GCM chegaram para apoiar a equipe. “Eu falei para eles ‘parem [de disparar bombas de gás], eu sou moradora e estou com criança aqui”, ela lembra. Então, a moradora foi atacada: “Eles me deram uma cacetada e dali em diante eu já não vi mais nada.”
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Janaína levou um golpe de cassetete na cabeça e começou a sangrar. Mais bombas foram lançadas, e uma briga entre os guardas e dois homens aconteceu na rua. Para escapar do tumulto, pessoas que estavam na rua, e também as que se envolveram na briga com os GCMs, entraram na garagem.
A ação, filmada por uma câmera de segurança de um estabelecimento comercial, mostra os guardas chegando, disparando bombas e uma briga entre os GCMs e dois homens.
Socorro impedido
Matheus Gomes, 25, filho de Janaina, teria pedido aos guardas que parassem com a ação violenta, quando foi atingido por um tiro no pé esquerdo, disparado pelo guarda civil Alexandre Aparecido Silva Freitas. Nas imagens, não é possível identificar o momento exato em que Janaina é agredida e seu filho é baleado.
Ela conta que Matheus teve o socorro impedido pelos guardas. Segundo ela, vizinhos teriam pedido permissão para levar o jovem ao hospital, e os GCMs teriam dito que ele só poderia ser resgatado pelo Samu. Por fim, Matheus pôde ser levado ao hospital por um particular, mas Janaina afirma que, enquanto o jovem entrava no veículo, os guardas dispararam spray de pimenta em seu rosto. Filmagens de moradores mostram poças de sangue na garagem onde a violência ocorreu.
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Janaina também foi atendida no hospital, e saiu de lá direto para a delegacia. Seus documentos e celular haviam sido apreendidos pela GCM, assim como os de seu filho. Ela prestou depoimento e um exame de corpo de delito foi realizado a pedido do 1º Distrito Policial de Cajamar, onde o caso foi registrado. A auxiliar de produção diz que ainda não retornou à delegacia por medo: “Eu não sei se dou parte, se faço B.O, se vou na Corregedoria. Estou totalmente desorientada.”
A Ponte teve acesso ao Boletim de Ocorrência (BO) registrado pelos guardas civis após a ação. Nele, os GCMs afirmam que estavam atendendo uma ocorrência de perturbação do sossego por barulho gerado em uma adega e, após fecharem o estabelecimento, foram atacados por moradores que participavam da festa improvisada. Eles relatam que garrafas, copos e pedras foram arremessados contra eles. E que, para repelir a agressão, teriam utilizado equipamentos não letais de dispersão, como gás de pimenta e as bombas.
A versão difere do que mostra o vídeo — nele, é possível ver quatro guardas disparando bombas antes de sofrerem qualquer ataque.
‘Lesão corporal contra agente’
O relato dos guardas diz que Matheus foi um dos dois homens a partir para cima da GCM, e que ele teria tentado tomar da mão do guarda civil Alexandre Freitas o cassetete e sua arma — o que teria feito o guarda disparar no pé do jovem para repelir a ação. O depoimento não cita a agressão à Janaina.
A versão de que Matheus tentou pegar a arma do guarda civil é rechaçada por Karoline Silva, nora de Janaina. Ela diz que Matheus não fez nenhuma menção de pegar a arma de Alexandre Freitas, e que o guarda civil teria arremessado o cassetete nas pessoas, o que fez com que o objeto caísse dentro da garagem da casa.
O BO registra como crime “lesão corporal contra agente de órgão de segurança pública”, lesão corporal decorrente de intervenção policial, resistência e perturbação do trabalho ou do sossego alheios. O guarda Alexandre Freitas teve sua arma apreendida, e o boletim de ocorrência foi encaminhado ao Distrito Policial da área dos fatos.
Matheus está internado no município vizinho de Franco da Rocha, sem previsão de alta. O jovem passou por uma cirurgia no pé, e deverá ser submetido a ao menos mais um procedimento. Longe do filho, Janaina retornou ao trabalho no último sábado com medo de sair de casa e de sofrer represálias. “A gente tá com medo. Meu filho trabalha na rua, eu saio de madrugada para trabalhar. Eu vou com medo.”
Militarização da guarda
A ação violenta da guarda civil não é uma exclusividade de Cajamar. Com conduta repressiva e escopo de atuação que se expande para além de questões relacionadas à proteção do patrimônio institucional, guardas civis estão se transformando em polícias militares municipais.
Garantidas pela constituição de 1988, as GCMs foram concebidas com a ideia de proteção institucional da cidade, não se confundido com polícia. Nos últimos anos, porém, em resposta às demandas sociais por segurança pública, os órgãos têm sido transformados em forças de repressão, mimetizando o militarismo em equipamentos, fardas e truculência.
No interior de São Paulo, grupos possuem veículos blindados, armamento pesado e até “tropas especiais”. O resultado é mais violência: levantamento exclusivo da Ponte apontou que as forças mataram, nos últimos 7 anos, 200 pessoas só no estado.
O que dizem as autoridades
A Ponte procurou a prefeitura de Cajamar para ter informações sobre a atuação da GCM no episódio. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Civil do município disse que, em atendimento a ocorrência, guardas da força foram ofendidos e atacados por pessoas presentes na festa e que, por isso, “foi necessário o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo para conter a situação”. A resposta não menciona o disparo de arma de fogo. Uma sindicância foi aberta para apurar eventuais excessos. Leia abaixo a íntegra da nota:
A Prefeitura Municipal de Cajamar, por meio da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Civil, esclarece os fatos relacionados à ocorrência envolvendo a Guarda Civil Municipal (GCM) na noite do dia 20 de novembro, na Rua Caiva, Parque Maria Aparecida. A GCM foi acionada após diversas denúncias de perturbação de sossego público em decorrência de um evento com aglomeração, som alto e fechamento da via pública, envolvendo cerca de 200 pessoas em frente a uma adega. Ao chegarem ao local, os agentes foram recebidos com ofensas, xingamentos e ataques físicos, incluindo o arremesso de garrafas. Diante disso, foi necessário o uso de instrumentos de menor potencial ofensivo para conter a situação e garantir a segurança pública.
A Prefeitura informa que já foi instaurada uma sindicância para apurar os detalhes da ocorrência, incluindo possíveis excessos ou abusos na atuação dos agentes. Ressaltamos o compromisso com a transparência e a legalidade, e garantimos que todas as denúncias serão investigadas de forma rigorosa.
Em relação à adega, o estabelecimento foi interditado devido à ausência de documentação necessária para funcionamento, sendo reincidente em situações de perturbação da ordem pública.
Por fim, reafirmamos o compromisso da GCM em garantir a segurança e a ordem pública no município, pautando-se pelo respeito aos direitos de todos os cidadãos. Lamentamos profundamente os transtornos relatados e reafirmamos que tomaremos as medidas cabíveis para esclarecer os fatos.