GCMs admitem ter atirado em ação que deixou mulher morta na Luz, em São Paulo

    Agentes da GCM alegaram no boletim de ocorrência que dispararam após homem se esconder em poste e atirar contra eles; Adélia Batista foi baleada e morreu no hospital

    Adélia foi baleada durante ação da GCM | Foto: Reprodução

    Durante um confronto entre GCMs (Guardas Civis Metropolitanos) e moradores de rua na Luz, região central da cidade de São Paulo, uma mulher foi baleada e morreu na noite de quinta-feira (9/5).

    Inicialmente, houve muita confusão na confirmação da identidade da vítima, que foi chamada de Gabriela, Paula e até Aline. Mas a comunidade, ouvida pela Ponte, confirmou que se tratava de Adélia. Era uma pessoa conhecida por todos no “fluxo”, local que concentra usuários de drogas no bairro. Mais tarde, a Rede Globo também confirmou a identidade da vítima: Adélia Batista Xavier, 31 anos. Há menos de 15 dias, uma operação da PM e da GCM terminou com bombas, comércio fechado e três detidos na região.

    A Ponte conversou com algumas pessoas que confirmaram que Adélia era uma mulher com temperamento explosivo, que perambulava pelas alamedas dos Campos Elísios. Ela não era usuária de outras drogas, segundo informações de outras pessoas em situação de rua que vivem no local, “só cachaça”. Quando ela bebia, “era melhor sair de perto”, inclusive deixava de temer às ações policiais.

    Adélia, segundo pessoas que conviviam com ela, era bonita e chegou a namorar um dos traficantes mais barra pesada do local, e, por isso, em anos anteriores, era difícil chegar até ela. Quando a união se desfez, a mulher passou a “ser mais solta”.

    “Ela era bem agitada. Era garota de programa da [boate] Love Story. Conhecia ela há muitos anos. Não fumava crack. Só bebia cachaça”, disse o comerciante Paulo Rogério, 52 anos, morador de um dos hotéis na região. Paulo ainda afirmou que, durante a ação de ontem, seu imóvel foi invadido por guardas após eles arrombarem a porta. “Se eu lido com bandido eu chamo a polícia. E agora, que a polícia arromba minha casa, quem eu chamo?”, questiona o comerciante.

    Um outro homem, que preferiu não se identificar, disse que a vítima tinha família, e vivia dizendo ser da Casa Verde, um dos bairros mais tradicionais da zona norte da capital. Durante a tarde de hoje sua foto passava de celular em celular entre os habitantes daquele local.  Além da mulher morta, ao menos mais duas pessoas teriam se ferido durante a troca de tiros, de acordo com informações coletadas com moradores, polícia e coletivos que atuam no auxílio aos dependentes químicos .

    Ainda é uma incógnita quem foi o responsável por apertar o gatilho e tirar a vida da mulher. Os GCMs, guardas do prefeito Bruno Covas (PSDB), dizem que os tiros vieram de traficantes, mas testemunhas levantam a possibilidade de o disparo ter partido dos próprios guardas. As incertezas que cercam a vida e a morte de Adélia resumem a precariedade e o abandono das cerca de 600 pessoas que vivem nas ruas da Luz, na região pejorativamente batizada de Cracolândia.

    Durante uma hora desta sexta-feira (11/5), a Ponte percorreu o perímetro formado pelas Alamedas Cleveland, Barão de Piracicaba e Rua Helvétia. No alto, um drone sobrevoava o fluxo. No chão, uma dezena de guardas vestindo azul e capacete. Foi justamente no cruzamento da Helvétia com a Cleveland que moça tombou ferida por um tiro que entrou pelo queixo e saiu pela têmpora.

    Na versão dos moradores de rua, os tiros dos guardas tiveram início após um atrito por conta de uma barraca que não havia sido desmontada. “Além de obrigar a desmontagem de uma única barraca perto do fluxo, eles queriam que apenas dez pessoas passassem por vez no bloqueio deles. Imagina a quantidade de pessoas esperando eles acabarem de limpar e para voltar ao local de origem ser só dez por vez”, contou uma moradora que preferiu não se identificar.

    Já em depoimento no 77º DP (Santa Cecília), os três GCMs que se apresentaram ao delegado Milton Coccaro admitiram tiros após serem atacados por disparos de arma de fogo vindos do fluxo. De acordo com o relato dos guardas, eles atuavam dando apoio à Operação Redenção. Quando foram solicitar o desmonte da barraca, um homem se protegeu em um poste e passou a atirar contra eles. Nisso, um dos guardas, ainda segundo a versão dos servidores, teria atirado para cima e recuado. Pensando que seu parceiro de farda teria se ferido, uma guarda da GCM confirmou em seu depoimento ter atirado duas vezes na direção do atirador. Os guardas ainda contam que o homem seguiu atirando contra eles, momento em que, munidos de escudo balístico, passaram a persegui-lo. O suposto atirador fugiu. Além da munição letal, os agentes afirmaram ter usado balas de borracha para conter o atirador.

    Foi nesse ínterim em que a vítima teria sido atingida, já que os GCMs narram que, assim que voltavam para sua base após não terem localizado o homem, viram a mulher caída no chão, já sangrando. Momento esse em que acionaram o resgate, que a encaminhou para a Santa Casa de Misericórdia.

    À Ponte, o delegado Coccaro informou que recebeu dos GCMs três cartuchos deflagrados por eles de calibre 38 e 13 cápsulas de calibre 32 e 380 que teriam sido disparados contra a guarnição. Os três revólveres calibre 38 dos agentes foram apreendidos. Segundo o Boletim de Ocorrência não foi requisitada a perícia no local, “em razão da grande aglomeração de usuários de drogas, que após a ação policial voltaram a se aglomerar no sítio dos acontecimentos, inviabilizando o trabalho pericial”.

    Ainda segundo o delegado, os ânimos no local poderiam estar mais exaltados em virtude de uma operação do Denarc (Departamento de Narcóticos) da Polícia Civil naquela mesma manhã, que resultou na detenção de quatro pessoas e apreensão de uma incerta quantidade de entorpecentes.

    Em nota, a Santa Casa de Misericórdia informou que “na tarde de ontem recebemos uma paciente nessas características: mulher sem identificação, atingida em confronto na Cracolândia. Informamos que a vítima estava com ferimento na cabeça e em estado grave, sendo acompanhada por equipe do pronto-socorro. A paciente evoluiu a óbito ontem mesmo, por volta das 20h30″.

    Também por meio de nota, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) declarou que “uma mulher, ainda não identificada, foi ferida na cabeça durante um confronto entre um suspeito e GCMs, às 14h40, na Alameda Cleveland. Ela foi socorrida à Santa Casa de Misericórdia, onde morreu. A Polícia Civil solicitou exame necroscópico e datiloscópico para identificar a vítima. Todas as circunstâncias da ocorrência são apuradas por meio de inquérito policial do 77º DP. O corpo da vítima foi encaminhado ao Instituto Médico Legal (IML) Centro, que realiza exames para identificá-lo”.

    Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Urbana, responsável pela GCM, informou que uma “sindicância administrativa para a apuração dos fatos” pela Corregedoria Geral da GCM. “Na manhã da quinta-feira (9/5), durante apoio à ação de zeladoria na região da Nova Luz, a Guarda Civil Metropolitana deteve seis pessoas que portavam entorpecentes e as encaminhou ao Denarc. No período da tarde, enquanto as barracas estavam sendo retiradas do local, a GCM foi recebida a tiros e pedradas pelos usuários. Dois guardas ficaram feridos e duas viaturas danificadas. Os GCMs foram liberados após atendimento médico. Após realizar a dispersão para controlar o tumulto, os agentes perceberam que havia uma mulher ferida com um tiro na cabeça. Imediatamente, foi acionado o resgate do Corpo de Bombeiros e a mulher ferida foi socorrida e encaminhada à Santa Casa de Misericórdia. A ocorrência foi apresentada no 77º Distrito Policial”.

    A reportagem foi atualizada às 21h37 do dia 11/5 para incluir a nota enviada pela prefeitura.

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