‘As faculdades de medicina não formam os médicos para nada que não seja heteronormativo’, diz autora do livro ‘Vem cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais’, que será lançado no dia 19/3 em SP
O que nasceu para ser um trabalho de conclusão de curso de jornalismo, se tornou um projeto de vida. A autora do livro ‘Vem cá: vamos conversar sobre a saúde sexual de lésbicas e bissexuais’, Larissa Darc, 21 anos, conta à Ponte como foi o processo de pesquisa investigativa sobre o tratamento do atendimento ginecológico para mulheres que amam mulheres.
Quando começou a pensar no livro, Larissa ficou dividida entre três temas: educação, periferia e sexualidade. “Na hora de decidir, eu pensei em fazer algo sobre sexualidade. Quando peguei o recorte LGBT, percebi que mesmo dentro do meio as mulheres lésbicas e bissexuais ainda são marginalizadas. Como Angela Davis, que eu usei como fundamentação teórica, diz: a gente precisa compreender que existem diversos tipos de opressão. Um homem gay vai sofrer opressão por ser um homem gay e uma mulher lésbica vai sofrer opressão tanto por ser lésbica quanto por ser mulher”, defende a jornalista.
A ideia inicial do livro era falar sobre mulheres que amam mulheres, abordando temáticas como saúde, educação e diversos outros temas que permeiam a vida de mulheres lésbicas e bissexuais. Mas, quando começou a pesquisar sobre o campo da saúde, Darc reparou que sua visão precisava mudar um pouco. “Encontrei tanta coisa, encontrei tanto relato e a falta de informação prévia pra fundamentar o capítulo, que eu percebi que era aquele o meu tema. Eu tinha muito medo de ir a fundo nesse tema, mas era aquele tema”, assegura.
Esse medo, explica a autora, vem do tabu que é falar sobre sexo entre mulheres na sociedade. “Sou uma mulher, jovem, queria falar sobre sexo e era sobre sexo entre vaginas. Tive muito medo de entrar nesse assunto e atrelar meu nome a esse assunto porque eu venho de uma família que não conversa abertamente sobre sexo. Sexo lésbico é um tabu ainda maior e falar sobre esse tema é um assunto muito pessoal porque eu sou uma mulher bissexual. Então, eu não escreveria só sobre outras pessoas, tanto que no livro eu me coloco muito em primeira pessoa, pois é um tema pessoal. O livro começa com um relato meu de uma situação que eu passei em um consultório médico em 2015”, conta.
Como um convite para um diálogo, o nome do livro é uma referência ao “ponto G” da mulher. “Esse movimento é quando a gente introduz um dedo no canal vaginal e faz o movimento do ‘vem cá’, com isso a gente consegue alcançar o ponto G”, explica a autora. As cores da capa são inspiradas na composição da bandeira lésbica.
Depois de definir o recorte, Larissa se deparou com um problema: a falta de especialistas sobre o assunto. “Como o principal ponto do livro é o despreparo dos profissionais em lidar com mulheres que não transam com caras, ou que transam com caras e com meninas, foi muito difícil achar profissionais. No meio do processo, eu dei um recorte e decidi falar só com mulheres, então todas as entrevistas são com mulheres. Por isso, quando eu comecei a procurar médicas que atendiam meninas lésbicas e tinham propriedade pra falar sobre o assunto, não queria alguém que não entendesse do assunto, pois li algumas reportagens e tinha entrevistas com médicas que não faziam ideia do que estavam falando, elas falavam para as meninas usarem plástico filme durante o sexo, sendo que não foi feito para isso”, explica.
Quando começou a conversar com médicas especialistas na saúde sexual de mulheres que se relacionam com mulheres, a autora descobriu que a falha no atendimento começa na faculdade. “As faculdades de medicina não formam os médicos para nada que não é heteronormativo [relacionamentos pessoas heterossexuais como padrão social], isso exclui tanto gays quanto lésbicas. Uma das médicas me falou que em algum momento da faculdade deram uma cartilha para ela sobre sexo gay e ponto. Então eles não falam nada do que foge do heteronormativo. Quando elas vão fazer a residência médica em ginecologia, as boas residências são em obstetrícia, que é pra cuidar de mulheres grávidas, então não existe preparo nenhum”, explica.
De contrapartida, encontrar histórias de descaso e despreparo médico foi fácil. Um dos casos contados é o de Cris Cavalcante, sobrevivente de um câncer descoberto em estágio avançado, quando já estava do tamanho de uma bola de futebol americano. O motivo da demora do diagnóstico foi a negligência médica: os médicos que atenderam Cris não quiserem realizar os exames por ela ser lésbica e não ter tido relações com homens. “Foi a primeira vez eu fiz uma apuração e não tive desafio. Eu postava em qualquer grupo de mulheres lésbicas perguntando se alguma delas já tinha tido algum problema com atendimento ginecológico e vinha uma enxurrada de relatos. Eu tive que escolher os relatos que mais me impactaram”, relembra Larissa.
Uma das descobertas da autora, durante o processo de produção do livro, são as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) que mulheres lésbicas e bissexuais estão vulneráveis a contrair por não existir um método de prevenção ou proteção durante o sexo. “Depois do livro, eu fiquei pensando bastante sobre ações que já podem ser feitas, já que não existe nenhum dispositivo de proteção de IST entre lésbicas. Existe a camisinha, que serve para relação com pênis, tanto a masculina quanto a feminina, e só. E nenhuma das duas se adapta perfeitamente à relação sexual entre mulheres. Seria legal fazer alguns estudos, mas isso leva tempo”.
Mesmo com diferença no atendimento particular e público, como explica Larissa, o sistema ginecológico de modo geral não está preparado para atender mulheres lésbicas e bissexuais. “No SUS, além do exame ser bem mais curto, você não sabe quem é o médico que vai te atender, se ele é bom ou não, e tem a questão da demora. Na primeira vez que eu fui ao médico, que é a primeira vez que eu conto no livro, demorou muito para me atenderem, eu estava com um corrimento e não sabia o que era, precisei ir num farmacêutico que minha mãe confiava, falar os sintomas, ele presumir que era uma determinada infecção, me passar o antibiótico e eu dei sorte de ter dado certo, mas podia ser uma infecção que me desse alguma consequência. Depois eu fui em uma médica particular, que me atendeu super bem, mas até hoje eu tenho dúvidas se ela me atendeu bem porque eu já tinha tido relações com homem ou por que ela era particular”, detalha a autora.
Apesar disso, Larissa assegura que a melhor alternativa para a saúde dessas mulheres ainda é o atendimento ginecológico. “Eu sei que a violência que elas sofrem é uma realidade comum e constante, mas tem algumas coisas que podem aliviar boa parte do sofrimento. Pessoas que já fizeram papanicolau sabem que é bem incômodo quando se coloca o espéculo, que é aquele instrumento que se usa para dilatar a entrada da vagina para poder coletar o material, mas ninguém fala que existem tamanhos diferentes – então há tamanhos menores que podem ser usados por mulheres lésbicas, que tem tamanho de um dedo”, explica.
O livro, feito por mulheres para mulheres, será lançado em São Paulo em março. A autora garante que o objetivo é trazer à tona a discussão para, assim, estimular mulheres lésbicas e bissexuais de se atentarem à saúde sexual. “Eu espero que esse livro chegue nas pessoas para que elas comecem a pensar nisso e conversar sobre isso. O livro não traz nenhuma resposta definitiva pois é uma reportagem. Se a gente não estiver pela gente mesmo não vai ser eles que vão estar. Se a gente não pensar em formas de melhorar o atendimento médico, em formas de criar dispositivos de proteção, em formas da gente cuidar da gente mesmo, eu tenho certeza de que não vai ser o governo que vai fazer isso”, defende Larissa.
Serviço:
Data: 19 de março
Horário: 19h30
Local: Livraria Tapera Taperá – Av. São Luís, 187 – República, 2º andar, loja 29 – SP
[…] Leia também: Ginecologistas não sabem lidar com mulheres lésbicas e bissexuais, aponta livro […]