Vereador Gilberto Natalini foi torturado em 1972 pelo coronel Brilhante Ustra. Em entrevista, corregedor Marcelino Fernandes disse que Ustra não foi torturador e que Brasil não teve ditadura
“Eu recebo com muita tristeza e muita apreensão [uma declaração desse tipo], porque a Polícia Militar que nós queremos não é assim. Esse oficial não tem preparo para ser corregedor da PM de São Paulo, que é exatamente a pessoa que está lá para corrigir excessos de uma minoria de policiais militares que utilizam da metodologia da tortura, do mau trato, um entulho da ditadura militar”, desabafa o médico vereador Gilberto Natalini (PV), que ficou preso por 60 dias em 1972 e sofreu torturas no Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), do Exército, no centro de São Paulo, comandado na época por Carlos Alberto Brilhante Ustra.
“Esse coronel tem que ser demitido pelo governador de São Paulo”, completa o vereador, que é aliado político do governador Márcio França (PSB) e candidato a deputado federal. O PV, partido de Natalini, faz parte da coligação São Paulo Confia e Avança, de França, que disputa o governo paulista.
Natalini rebateu as declarações feitas pelo corregedor da PM paulista, coronel Marcelino Fernandes, quando questionado pela Ponte, na última terça-feira (28/8), sobre o apoio ao presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), que é fã declarado de Ustra. Na entrevista, Fernandes afirmou que Ustra não era torturador, “Não concordo com a tese de que o Ustra era torturador, de jeito nenhum. É um absurdo”, declarou. O corregedor também afirmou que o Brasil não passou por uma ditadura, no período entre 1964 e 1985. “Na verdade tinha eleição. Para uma ditadura estaria distante, uma ditadura de Congresso”, declarou.
“Ele [Brilhante Ustra] me bateu pessoalmente. Ele me deu choque, me bateu com pedaço de madeira pessoalmente durante vários dias no Doi-Codi. Houve um dia em que ele me torturou durante uma noite toda para que eu falasse algo que não tinha para falar. Ele me torturou com as mãos dele”, exalta-se Natalini, que teve perda auditiva por causa das sessões de tortura. Ele era estudante de medicina da Escola Paulista de Medicina quando foi preso com outros 11 colegas, acusados de fazer oposição ao regime militar. “Ele jogava água com sal no chão para condução elétrica e pegava o choque no corpo todo”, conta.
Natalini compara quem diz que a ditadura não aconteceu aos que negam o nazismo. “Se tem maluco que nega o Holocausto mesmo com todos os documentos, todos os registros, todas as fotos, todos os filmes, imagina se não vai ter alguém que negue o regime militar. São uns loucos, uns tarados mentais”, afirma.
Gilberto Natalini se emociona ao lembrar do embate que teve com Brilhante Ustra, que o chamou de mentiroso durante um evento em Brasília. “Eu não sou um mentiroso. Ele torturava, sim, e eu pude dizer isso na cara dele. Tem outras pessoas que eu conheço que foram torturadas por ele também de forma bárbara. Dizer que o Ustra não foi torturador, essa, sim, é uma mentira deslavada, um engano absolutamente irresponsável. Se o corregedor quiser, eu posso contar pessoalmente para ele o que o Ustra fez para mim”, afirma. Na ocasião, Ustra chamou Natalini de terrorista o que deixou o vereador muito indignado. “Eu falei para ele ‘se minha mão tem sangue, foi operando paciente, salvando vida, agora mostra a sua e diga de quem é o sangue que está na sua'”, relembra.
O corregedor da PM, Marcelino Fernandes, também negou que Bolsonaro defenda a tortura. Em mais de uma oportunidade, no entanto, o presidenciável elogiou as ações da ditadura e, durante a votação do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, saudou no microfone do Congresso o coronel Brilhante Ustra.
“Tortura é a forma mais abjeta de um ser humano se relacionar com outro. Ainda mais quando vem do Estado. Até códigos de guerra punem tortura. Não é humano isso. Por isso que eu desaconselho qualquer brasileiro a votar no Jair Bolsonaro, que defende tortura e torturador”, ressalta Natalini.
Natalini não foi o único a criticar as declarações do corregedor. Para a secretária municipal de Direitos Humanos e Cidadania, Berenice Gianella, filha de preso político, a história não pode ser esquecida. “Eu acho que o corregedor que tem que responder pelo que diz. Sofremos em casa os efeitos da ditadura. Depois de ser solto, meu pai perdeu emprego e todo lugar que ia ele era tachado como subversivo. Isso de fato aconteceu e a gente não pode desconsiderar esse período. Eu lamento que no país e no mundo haja gente que desconsidere essas atrocidades”, disse Gianella em evento realizado nesta quinta-feira (30/8) no Memorial da Resistência, em São Paulo, pelo Dia Internacional das Vítimas de Desparecimento Forçado.
‘Nada exime os militares da culpa pela tortura’
De acordo com o professor de história da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e doutor em ciências sociais Claudinei Cássio de Rezende, autor do livro Suicídio revolucionário (Unesp, 2010), sobre a luta armada contra o regime militar, a postura do corregedor em negar o período da ditadura é uma forma de revisionismo histórico e está alicerçada na adulteração de fatos. “A insistência nesta tese tem como objetivo o fortalecimento da ideologia da extrema direita brasileira, que tem como modus operandi a aniquilação física de seus oponentes e o escamoteamento da realidade. E isso acontece para validar a posição da direita na luta política, que tem como contraface a reforma trabalhista e outras usurpações de direitos sociais”, explica Rezende, em entrevista à Ponte.
O historiador destaca que a ditadura foi um fato histórico indiscutível e lembra a violência praticada contra o ex-preso político Gregório Bezerra, preso em 1º de abril de 1964 e considerado uma das primeiras vítimas da ditadura. Na ocasião, Bezerra foi amarrado e arrastado pelas ruas do Recife. Os militares tentaram insuflar a população para linchar o militante. “[O estudioso Jacob] Gorender mostra que o militante de esquerda durante a ditadura tinha vida de dois anos até ser preso ou assassinado. A ditadura torturou desde o primeiro dia e continuou a torturar e a executar sem julgamento seus oponentes, ainda que tivesse montado um aparato jurídico para tal, com o AI (Ato Institucional) 13 e AI 14, determinando banimento e pena capital aos inimigos da pátria”, explica.
Para Rezende, documentos como o dossiê Brasil: Nunca Mais (1978 a 1985), organizado por iniciativa do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, do rabino Henry Sobel e do pastor presbiteriano Jaime Wright, em 1985, já traziam provas de torturas execráveis e ocultação de cadáveres. “Esse dossiê reuniu mais de um milhão de páginas e é uma pequena amostra do conteúdo terrorista do Estado brasileiro, especialmente dos militares do Exército, Aeronáutica e Marinha. Obviamente que a Polícia Civil também executava a tortura, pelo Dops [Departamento de Ordem Política e Social] e outros órgãos repressivos, mas funcionava como um braço civil do aparato complexo dos militares”, explica o historiador, ao rebater a afirmação do corregedor de que “os militares foram os que menos torturaram”.
“Empresários brasileiros também financiavam e até participavam de sessões de torturas, como o Henning Boilesen, dono da Ultragaz. Mas nada disso exime os militares da culpa pela tortura, desde aquelas executadas pelos militares de baixa patente até aqueles responsáveis pela instalação da ditadura, sem poupar o Marechal Castello Branco e seus sucessores. Isto é, os militares foram os responsáveis diretos pelos crimes de tortura e isso está documentado oficialmente no dossiê e em outras provas evidentes”, enfatiza.
Rezende destaca que o coronel Brilhante Ustra atuou como chefe do Doi-Codi de 1970 a 1974 e foi reconhecido por inúmeras vítimas em inquéritos militares como o torturador cujo nome de guerra era Dr. Tibiriçá. Pelo menos 45 pessoas foram mortas diretamente sob seu comando, dentre esses muitos ainda com cadáveres ocultos. A Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil lista 502 acusações de torturas sistemáticas.
Em 2008, o juiz juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, julgou procedentes as acusações contra o coronel, que, então, tornou-se o primeiro militar condenado na justiça brasileira, com evidências robustas, por crime de tortura, violação de direitos humanos e ocultação de cadáveres. Em 2012, Ustra foi condenado a pagar indenizações à esposa e à irmã do jornalista Luiz Merlino, morto sob seu comando em julho de 1971.
“De modo hipócrita, em 2013, o coronel afirmou que a presidente da república Dilma Rousseff era uma terrorista, quando a história mostra justamente o oposto. O relatório final da Comissão da Verdade apontou 377 militares envolvidos em terrorismo, violação de direitos humanos, tortura, assassinatos e ocultação de cadáveres”, explica o historiador.
Em maio deste ano, o pesquisador da FGV Mathias Spektor descobriu um memorando da CIA assinado pelo diretor William Colby, que relata uma reunião ocorrida em 30 de março de 1974, início do governo de Ernesto Geisel. “Nesse documento, prova-se a afirmação da Comissão da Verdade de que o assassinato e o terrorismo eram política institucional do Estado, e que a ordem da tortura não era uma ação clandestina dos ‘porões da ditadura’, mas uma prática oficial dos altos escalões militares. Literalmente, o documento afirma que o presidente [Ernesto] Geisel planejou continuar a política do [Garrastazu] Médici de uso sistemático de meios extra-legais contra os ‘subversivos'”, ressalta.
O documento aponta que, até aquele momento, 103 pessoas que foram enquadradas como “subversivos perigosos” haviam sido sumariamente executadas pelo Centro de Inteligência do Exército. “No dia em que este documento foi descoberto, a jornalista da TV Cultura leu um depoimento do filho do jornalista Vladimir Herzog, que fora assassinado pela ditadura em 1975. Na bancada do telejornal, o historiador Marco Antonio Villa jogou suspeição no documento, em vez de discutir o que está em jogo, ou seja, a prática terrorista dos governos militares. Essa postura mostra o funcionamento nocivo do revisionismo histórico”, critica Rezende.