Números do 1º semestre deste ano não foram divulgados e governo cita investigação de suposta manipulação de dados na gestão anterior para justificar decisão
O governo de Ronaldo Caiado (DEM) decretou sigilo dos dados sobre mortos pela polícia no 1º semestre deste ano. Com base na portaria 750/2016, que regulamenta o tratamento de “assuntos sigilosos, produzidos e custodiados” pela SSP-GO (Secretaria de Segurança Pública de Goiás), o governo ainda não divulgou os dados que informam o número de mortes durante ações policiais entre janeiro e junho de 2019.
A atual gestão aponta que o governo anterior, de Marconi Perillo (PSDB), que tinha José Eliton como chefe da pasta de segurança pública, está sob suspeita de manipular dados dos anos de 2017 e 2018 e que isso teria impactado na divulgação das estatísticas deste ano. Há uma investigação na Delegacia de Homicídios de Goiás que apura essa denúncia.
Apesar de a SSP-GO informar, em nota, que “entende a necessidade de uma comunicação transparente entre administração pública e sociedade”, o estado é o único do país a manter os números sob sigilo, com a principal alegação de “possível manipulação incorreta dos dados”. O site oficial do órgão também permanece sem apresentar dados desde 21 de outubro.
Em resposta à imposição da SSP, a CDH (Comissão de Direitos Humanos) da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Seção Goiás emitiu a portaria nº 011/19. No documento, publicado no fim do mês de outubro, o colegiado informou o encaminhamento de ofício para a SSP, MPGO (Ministério Público do Estado de Goiás) e Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios.
Assinada pelo presidente da Comissão, Roberto Serra da Silva Maia, a portaria também pediu que a SSP e o MPGO informem todos os dados que envolvem crimes violentos (com morte) ocorridos em 2019, especialmente aqueles que envolvem ações policiais.
Ao defender a transparência dos dados, o presidente da Comissão também lembrou da LAI (Lei de Acesso à Informação), dispositivo que permite o acesso a dados que envolvem a gestão pública por qualquer cidadão. “Cabe aos órgãos e entidades do poder público assegurar a gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação”, escreveu.
Na portaria, Serra considerou a informação de que, entre janeiro e setembro deste ano, foram 257 operações policiais com mortes, superando em 68 casos os números de 2018. A informação, de acordo com o registro, chegou até a Comissão de Direitos Humanos por meio de mídia impressa, em reportagem publicada no jornal O Popular.
Ainda na portaria, a CDH citou a existência de um relatório emitido na Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios de 2017, que trata da “ausência de preservação das cenas de locais em que ocorreu morte por intervenção policial”. No relatório, segundo o documento da Comissão da OAB, é possível concluir que “em boa parte dos casos, as cenas dos locais em que ocorrem mortes por intervenção policial não são preservadas”.
À Ponte, o MP afirmou que a solicitação da OAB trata de estatísticas que não estão sendo recebidas de forma sistematizada, não havendo a possibilidade de extraí-las a partir dos autos concluídos que chegaram ao órgão. “Sobre os crimes violentos praticados pela polícia em confronto com civis, o Ministério Público se preocupa com os casos e faz o tratamento adequado à medida em que eles chegam à instituição. Tudo o que acontece é denunciado”, disse a assessoria.
Inquérito apura manipulação em 2018
Prorrogado no último dia 19/11, após pedido da Delegacia Estadual de Investigação de Homicídios (DIH), o inquérito nº 325/2019 busca encontrar indícios de alteração nos números gerados pela SSP em 2018, prática apontada pela gestão de Ronaldo Caiado.
O site oficial, onde são apresentados os dados gerados pelo Observatório da Segurança Pública, está fora do ar desde 21 de outubro. A secretaria apenas informou que, após identificar “inconsistências” nos dados de 2018, a pasta optou por suspender a divulgação – inicialmente por 30 dias – até a “realização de auditorias”.
No início do mês, durante uma coletiva de imprensa, o secretário de Segurança Pública de Goiás, Rodney Miranda, foi questionado sobre o teor dos dados supostamente manipulados. Na coletiva, Miranda afirmou que dados de homicídio, por exemplo, foram enquadrados em outros tipos de crime. “Acredito que seja para maquiar dados, talvez até com proveito eleitoral, mostrar que a situação não estava tão grave quanto realmente estava”, disse.
Para Miranda, quando não se atesta a autenticidade dos dados, eles perdem o efeito comparativo. “Hoje nós temos uma base falsa em 2018 e talvez até de 2017”, justifica. Para ele, a inconsistência dos dados de anos anteriores impede que seja feito um histórico comparativo.
No relatório “Os limites do sigilo e a agenda da transparência pública no Brasil”, publicado este ano pela ONG Artigo 19, a organização ainda lembra do contexto durante a aprovação de um dos dispositivos da Lei de Acesso à Informação, que, em conjunto com a criação da Comissão de Anistia, buscava dar visibilidade às violações de direitos humanos ocorridas durante a Ditadura Militar (1964-1985).
Em um dos trechos, a ONG destaca que “as informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso”.
No critério da transparência ativa, a LAI também determina que, quando a informação é sigilosa, é preciso que se aponte o grau deste sigilo e por quanto tempo permanecerá sob tutela do órgão. A inexistência de uma lista de critérios com itens como identificação do dispositivo legal que fundamenta a informação e data da classificação, por exemplo, são consideradas violações à Lei de Acesso.
À reportagem, Júlia Rocha, que é assessora de projetos no programa de Acesso à Informação da Artigo 19, disse que, apesar de haver a permissão de restrição para documentos classificados como sigilosos, “isso não significa que o sigilo deve ser usado de maneira desenfreada”.
“A não divulgação dessas informações pode ser resultado do próprio déficit de produção da informação – ou seja, ela é produzida de forma precária, logo o dado completo não existiria e, portanto, não seria disponibilizado”, aponta.
Para Júlia, a prática desenha uma forma de barrar a fiscalização por parte da população, que deveria acompanhar temas sensíveis, como a possível alteração de dados. “O próprio estado de Goiás também perderia muito, já que, além de impossibilitar a avaliação e o aprimoramento de políticas públicas de segurança a partir de evidências, ficaria negativamente marcado em relação à parâmetros internacionais de boa gestão”.
Com a abertura de inquérito para apurar a possível manipulação nos dados de 2017 e 2018, como apontou o secretário Rodney, Júlia argumenta que, caso isso se confirme, os prejuízos para a população goiana seriam grandes. “A população, por exemplo, ficaria impossibilitada de realizar o controle social e avaliar políticas públicas e tomar decisões inteligentes”, diz.
Em relação à suspensão das estatísticas no site da SSP-GO, a assessora da Artigo 19 afirmou que o tempo, a justificativa e o prazo definido do sigilo são itens indispensáveis que devem ser informados pela pasta.
“Sem justificativa e prazo para a volta das informações ao ar, é possível interpretar a postura da secretaria como incongruente com a Lei de Acesso à Informação”, pontua.
Via aplicativo de mensagem, Larissa Oliveira, que é assessora do secretário Rodney, confirmou à reportagem que os números de 2017 e 2018 continuam sendo auditados. Sem informar quando, ela completa: “as informações a serem divulgadas serão apresentadas na integralidade num único momento”.