‘Respeitem a cidade’, diz o guarda enquanto passa a bota na arte e ameaça levar os artistas à delegacia por desobediência
Uma homenagem à vereadora assassinada Marielle Franco, do Rio de Janeiro, quase acabou com pessoas detidas por desacato em Ouro Preto, Minas Gerais, no sábado (31/3). Isso porque um GCM (Guarda Civil Metropolitano) da cidade considerou afrontosa uma arte feita com o nome da parlamentar em meio aos tradicionais tapetes com serragem. Argumentou que era um ato político e não religioso, como devia ser na ocasião.
Vídeos obtidos pela Ponte mostram o momento em que o guarda passa a bota sobre o tapete para apagar o nome de Marielle e de Igor. Em setembro de 2017, Igor Arcanjo Mendes, de 20 anos, ia a um show do grupo de rap Racionais MC’s em Ouro Preto quando o carro em que estava com amigos foi abordado. O fato de a porta em que o jovem saíra emperrar e, só depois ele conseguir sair, fez o policial disparar – sustentou que se assustou, e Igor não resistiu. Seu nome também era lembrado no tapete como forma de não esquecer a violência que sofreu.
Ao mesmo tempo em que o agente apagava o tapete, ele diz ao público que “tem que respeitar Ouro Preto”. “O caldo engrossou na hora em que um deles começou a bater boca com o pessoal que fazia o tapete, ameaçar a galera de que seriam presos por desobediência. E começou a passar com o pé, apagando, dizendo que o tapete não condizia com o assunto em questão do tema daquele ano, não servia para fazer manifestação política”, explica o produtor de teatro Vinícius Amaral, que registrou as cenas.
A produção das artes com serragem acontece anualmente em Ouro Preto durante a Semana Santa e têm como base temas bíblicos e religiosos como expressão desta crença da população. Ela é acompanhada de vigília e procissão. Neste ano, a confecção começou na Igreja Nossa Senhora do Pilar e terminou em frente à Praça Tiradentes, exatamente onde estava o tapete com nome de Marielle e Igor, feita por cerca de 30 pessoas. O argumento de que a homenagem não ia de encontro com o teor religioso da cerimônia foi criticado por quem acompanhou a ação da GCM.
“Entendo quando vêm e dizem para seguir a temática religiosa, mas não era um comum acordo ali. Em frente à uma igreja, tinha um tapete escrito ‘Jesus Cristo é mulher’, mais para frente, o desenho de um OVNI com um alienígena abduzindo um dinossauro. E estava lá, bem feito, ao lado de São Francisco de Assis”, explica o diretor e dramaturgo Antônio Lagreca Nicodemo.
De acordo com as testemunhas, após a abordagem e da ameaças do guarda, um carro da PM de Minas Gerais chegou ao local minutos depois. “Três policiais ficaram próximos de onde estava o tapete, para amedrontar mesmo”, diz a atriz Flávia Gonçalves.
‘Liberdade de expressão não é absoluta’
Questionada pela Ponte, a GCM da gestão do prefeito Julio Ernesto de Grammont Machado de Araujo (MDB) explicou que frustrou diversas manifestações envolvendo temas políticos e partidários durante a a confecção dos tapetes devocionais. Após ser chamada de “fascistas, racistas, entre outras palavras”, os guardas apagaram o tapete “diante do cenário apresentado e da iminência de um distúrbio civil”, explica a nota da corporação.
“Infelizmente muitas pessoas acham que a liberdade de expressão é uma ‘carta branca’ para cometer todo tipo de abuso, e o poder publico nada pode fazer. Pior ainda, é tentar se apropriar de um evento religioso mundialmente conhecido, para dar visibilidade a causas partidárias, isso é reprovável”, sustenta a corporação, que cita “dois pontos jurídicos” para bancar a ação de apagar o tapete com as homenagens a Marielle e Igor:
“I A liberdade de expressão não é absoluta, logo deve ser respeitado os costumes locais.
II a confecção dos tapetes já é uma manifestação previamente agendada no calendário municipal pelas paroquias locais, logo não deve ser suprimida por outra manifestação”, diz.
GCM usou bota para apagar o tapete | Foto: Reprodução