Luan Henrique de Lima, 18, saiu para festa de rua e foi morto por guardas municipais ao se envolver em briga com outros jovens, no Natal de 2023, em São José dos Campos (SP); testemunhas dizem que GCMs “chegaram atirando”
Ao telefone, o pintor Adriano Dias Lima, de 45 anos, não conseguia completar o que dizia sem desabar em lágrimas. “Foi a vida de um inocente. Isso dói na alma”, soluça. Há pouco mais de um mês, seu filho Luan Henrique Dias de Lima, 18, saiu de casa após as comemorações do Natal para um “fluxo”, como são conhecidas aglomerações de jovens que saem para beber e dançar funk na rua, e não voltou mais.
O adolescente foi atingido por quatro tiros, três nas costas e um na cabeça, por guardas civis municipais (GCM) em São José dos Campos, na região do Vale do Paraíba, em São Paulo, após ter se envolvido em uma briga. Os agentes alegam que Luan estava com uma arma na mão e não obedeceu a ordem para largar o objeto. Já dois moradores que testemunharam a ação contestaram a versão à Ponte e disseram que os guardas não gritaram e “chegaram atirando”.
De acordo com os pais de Luan, a família comemorou o Natal em casa de parentes e, já na madrugada do dia 25 de dezembro, Adriano pediu para o filho levar a mãe de volta para a residência dela. Depois, Luan decidiu sair com os primos para o fluxo da Avenida dos Sindicalistas, no bairro do Campo dos Alemães, na zona sul da cidade.
“O Luan era um menino bem caseiro, quase não dava rolê, nunca teve passagem, nem tatuagem tinha”, lembra a diarista, mãe do jovem, Maria do Socorro Henrique da Silva, 49. “Como ele estava com os primos dele, eu não fiquei tão preocupada”.
“Eu ainda falei ‘filho, não demora’. E ele disse ‘tá bom, pai’. E dormi. Foi oito horas da manhã que eu soube dessa tragédia, que os guardas tinham executado meu filho”, contou Adriano.
Moradores ouvidos pela Ponte disseram que viram o momento em que Luan estava acompanhado de outros dois jovens e que houve uma briga com um rapaz que estava acompanhado de duas mulheres, sendo uma delas grávida e que teria passado mal em meio à confusão. “Já era quase umas 7h da manhã. Eu estava passando justamente ali na avenida e vi uma briga. Só que eu não reconheci que era o Luan primeiro. E parei. Só que nessa que eu parei, a GCM já veio atirando. Tipo assim, eles não vieram pra apartar”, declarou uma testemunha. “Todo momento eu via o Luan querendo dar soco, sabe? Querendo dar chute [na briga]. Mas armado mesmo, não”.
Outro morador, que estava no fluxo, conta que um homem iniciou a briga, mas não conseguiu ouvir o motivo da discussão. “Ele passava por mim e pelos meus amigos, cumprimentava, conversava com a gente, na hora que a gente tinha se reconhecido. Aí, de manhã cedo, eu vi que ele arrumou confusão com o rapaz. Não foi ele que arrumou a confusão, o rapaz que arrumou a confusão com ele. O rapaz era até velho, o rapaz parecia que tinha uns 30 e poucos anos”, afirma. “Aí, esse rapaz, ele deu uma cabeçada no Luan, só que o Luan, pelo seu porte físico, caiu no chão. Dois amigos do Luan foram defender. No meio dessa confusão toda, as pessoas ficaram olhando e eu também fico olhando. Do nada, a guarda municipal já chegou no local. Não chegou pra abordar ninguém, já chegaram atirando, todo mundo começou a correr”, prosseguiu.
De acordo com os depoimentos à Polícia Civil, os guardas Edison Julio Alves Silva e Kael da Silva Petelak disseram que tinham sido acionados para atender um alarme de pânico emitido na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Campos dos Alemães, mas a enfermeira no local disse que a pessoa que “estava causando” já tinha ido embora. Assim, na volta para a base da GCM, ao passar pela Avenida dos Sindicalistas, a dupla disse que viu “três indivíduos agredindo outro que estava ao chão e uma multidão próxima dessa agressão”.
Os agentes afirmam que, ao se aproximarem, viram “um dos indivíduos com revólver na mão e agredindo com coronhadas o individuo que estava ao solo e o ameaçando com a arma de fogo de que o mataria”. Relataram, ainda, que outro rapaz estaria com colete balístico, deram ordem de parada e mandaram parar a agressão.
Os guardas contam que, como a pessoa que estaria armada não obedeceu, “presumindo que ele fosse atirar e com a recusa de largar a arma e levantar as mãos para a abordagem, foi necessário o disparo de arma de fogo pelo GCM”. Edison diz que ele fez “dois ou três” disparos.
Com isso, eles afirmam que quando o rapaz, que seria Luan, “derrubou a arma no chão, um outro que estava com ele, usando blusa vermelha, pegou a arma”. O guarda Kael declarou que ordenou que esse segundo rapaz largasse a arma, mas como também não obedeceu, “deu dois disparos para contê-lo”. Ele disse que não sabe se esse jovem foi atingido pois correu em direção à multidão, assim como o que estaria com colete balístico e que populares teriam lhe dito que também estava armado. Também acionaram o Samu.
O homem que teria sido agredido, que vamos chamar de Samuel, disse que estava com a sua namorada e a cunhada quando se envolveu “em uma discussão com cerca de sete homens, que o acusavam de estar olhando para eles, e estando três deles armados”. O desentendimento teria evoluído para agressões contra ele com uso de “garrafas, socos, tapas e coronhadas de arma de fogo”. Samuel estava no chão enquanto era agredido e “percebeu quando um guarda municipal apontou a arma para um dos agressores e alguns instantes depois efetuou disparos em algum destes, sem contudo poder precisar qual deles foi o atingido”. Dali foi socorrido ao hospital e depois levado à delegacia.
A cunhada de Samuel disse que viu “cerca de três a quatro homens” que “o acusavam de estar olhando para eles” e a discussão se desdobrou em agressões. Ela relatou que Samuel recebeu socos, garrafadas, tapas e coronhadas com arma de fogo. Ao tentar separá-los, “percebeu que o individuo que estava agredindo caiu ao solo baleado” e não viu se ele portava arma de fogo, mas “um dos indivíduos que estava de colete, junto com esse grupo, portava uma arma de fogo, por dentro do colete” e que não viu ele pegar arma no chão.
A namorada de Samuel, que está grávida, relatou que só viu parte da briga pois passou mal e desmaiou. Ela não soube precisar quantas pessoas agrediram o companheiro nem quem estaria com arma, apenas que a irmã dela tentou separar os agressores.
O delegado Alan Barcelos de Azevedo, que estava de plantão no 3º DP de São José dos Campos, entendeu que inicialmente os guardas agiram em legítima defesa de terceiro por conta dos depoimentos de Samuel e sua cunhada, mas que ainda não havia informações suficientes para se considerar um crime de homicídio. Por isso, pediu apreensão das pistolas .40 dos GCMs e perícia para o local.
Os moradores disseram à Ponte que Luan caiu na parte de gramado da avenida e que foi arrastado até o asfalto, numa distância de 10 passos aproximadamente. O laudo de perícia do local não indica sinais de arrastamento do corpo e aponta que foi encontrada ao lado dele um estojo picotado de calibre 38, além dos quatro estojos .40 no asfalto.
Ainda no local, os moradores relataram que a guarda passou a reprimir a população, que questionava a ação, com uso de armas menos letais. “Eles estavam bem agressivos. Eles jogavam muito spray de pimenta. Bala de borracha. Eles estavam reativos. Eles estavam muito bravos”, disse um.
Adriano, pai de Luan, disse que foi atingido por uma bala de borracha no abdômen após dar um soco em um GCM por ter sido impedido de ver o filho. “Eu fui conversar com o guarda, ele não deixou nem explicar. Já veio falando que o meu moleque era bandido”, disse. “Tinha uns quatro, cinco [guardas] ao redor. E já começaram a meter um monte de bala de borracha no pessoal”.
Um mês depois da morte, em 25 de janeiro deste ano, o delegado titular Fernando Patto Xavier solicitou a busca por imagens de câmeras de segurança de estabelecimentos da avenida, que ainda não constam no inquérito, e enviou relatório final sem emitir conclusão a fim de que o Ministério Público analise o caso e peça mais diligências se achar necessário.
A família de Luan conta que tentou buscar imagens de câmeras na região, mas ou os moradores dizem que não têm mais gravação ou têm medo em fornecer.
“Nem trabalhando eu tô conseguindo”, diz Adriano, que faz trabalhos temporários de pintor. “Só pedindo pra Deus me ajudar e me dar a força. É uma dor que não tem explicação. Sofro todo dia. Trabalhei a vida toda. Paguei dois anos de curso de informática pro meu filho. Ele estava fazendo curso para conseguir um emprego”.
O que diz a Prefeitura
A Ponte pediu entrevista com os guardas, além de questionar os procedimentos adotados, se eles fazem parte do grupo que passou a usar microcâmeras nos uniformes em 2020 e a situação atual na corporação. A assessoria geral disse que a Secretaria de Proteção ao Cidadão iria responder, a reportagem encaminhou as solicitações. A pasta encaminhou a seguinte nota:
Secretaria de Proteção ao Cidadão informa que há um inquérito criminal junto a Polícia Civil em andamento e que foi instaurado processo interno de investigação pela Corregedoria para apurar a ação dos Agentes da GCM, inclusive com a análise das imagens das câmeras corporais, onde foi constatada a posse da referida arma de fogo, pois no momento da abordagem o indivíduo estava em flagrante delito de agressão, com coronhadas, à terceiro e não obedeceu aos avisos dos agentes para que parasse e se desarmasse.
A reportagem solicitou o acesso às imagens após o retorno, mas a assessoria negou:
Por se tratar de parte integrante de inquérito policial em andamento, não podemos disponibiliza-las à imprensa.
O que diz a Polícia Civil
A reportagem questionou a corporação se foram localizadas imagens de câmeras de segurança e qual o andamento da apuração, mas também não teve retorno.
Reportagem atualizada às 10h50, de 7/2/2024, para incluir resposta da Secretaria de Proteção ao Cidadão.