Criadas para proteger o patrimônio urbano, GCMs passaram a exercer funções de polícia e atuar na repressão no estado de São Paulo. Dados obtidos pela Ponte mostram que a capital paulista é a campeã, com 43 mortes
A estudante Camilly Pereira de Lima, de 17 anos, estava prestes a se formar e tinha mostrado com alegria para a avó, Vera Lúcia, 62, as roupas novas que usaria no show da banda Pixote, ao qual iria com a família no dia 23 de agosto, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Não deu tempo.
Na madrugada anterior, após passar na hamburgueria em que o namorado trabalhava como entregador, no bairro do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, para pegar carona com ele de moto para casa, os dois foram seguidos por uma viatura da Guarda Civil Metropolitana (GCM). A adolescente foi baleada pelas costas e morreu.
Assim como a menina, nos últimos sete anos outras 197 pessoas foram vitimadas em ações de guardas municipais em 59 cidades do estado de São Paulo — segundo microdados do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), obtidos pela Ponte via Lei de Acesso à Informação. Outras 12 vítimas foram identificadas em ações conjuntas da GCM com a Polícia Militar ou com a Polícia Civil, mas o levantamento não indica qual corporação foi autora das mortes.
A Ponte publica hoje mais duas reportagens de seu Especial GCM, que tratou da militarização de uma corporação que tem caráter civil, e relata uma caso de violência dos guardas em Osasco (SP). Diante da demanda social por segurança, as guardas têm se militarizado para atender à bandeira político-eleitoral de candidatos à prefeito das principais cidades do país, assumindo funções de policiamento e repressão, não raro com truculência.
No relato do entregador Vinicius Caetano, 20, Camilly estava sem capacete e, quando viu a viatura, acelerou por receio. Baleada pelas costas, a namorada disse ainda na garupa suas últimas palavras: “Amor, tomei um tiro” — história que a Ponte contou em agosto.
Casos como esse compõem o topo do ranking da cidade que lidera o número de mortes cometidas por guardas, a capital paulista: foram 43 vítimas, de 2017 a 18 de junho de 2024. Na sequência, vem São Bernardo do Campo, com 13 mortes; Osasco (12); Embu das Artes (8); e Cotia e Carapicuíba, com 7 mortes cada. Das 59 cidades com vítimas fatais, 22 estão na região metropolitana.
Um dos casos de maior repercussão foi o do menino Waldik Gabriel Silva Chagas, então com 11 anos, morto por um guarda civil em 2016, após uma perseguição no bairro de Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. O GCM Caio Muratori foi demitido da corporação naquele ano por disparar contra o veículo em fuga, o que constitui risco para o público. Entretanto, o guarda foi absolvido em júri popular no ano passado ao alegar que atirou porque teria sido alvo de disparos vindos do carro que a criança tinha furtado e que tentava apenas acertar os pneus.
Outro episódio que levou 18 anos para ter um desfecho foi o julgamento de dois GCMs acusados de matar o líder comunitário Leandro Machado, 23, em novembro de 2003, no bairro do Grajaú, zona sul da capital. Orlando Sérgio dos Santos e José Donizete de Freitas foram sentenciados, em 2022, a seis anos de prisão inicialmente em regime inicial e estão recorrendo em liberdade. Uma das penas de Orlando, por fraude processual, já prescreveu.
A família de Leandro acredita que os guardas estivessem em pânico por conta dos ataques do PCC que aconteciam na época e, por isso, atiraram ao verem o jovem apenas passando diante da base. O líder comunitário ajudava organizando eventos de rap e basquete para crianças da comunidade e naquele dia tinha saído para buscar a mamadeira da filha. Os guardas afirmaram que o líder comunitário invadiu a base com uma garrucha, arma de cano curto que costuma ser vendida como antiguidade.
Quase metade das mortes na folga
Os casos de mortes praticadas por GCMs em serviço foram 100; os ocorridos durante a folga dos agentes, 97. Nos anos de 2017, 2019 e 2023, as mortes cometidas por guardas que não estavam trabalhando foram maiores que durante o trabalho.
Foi o caso de dois ambulantes, Rodinei Alves dos Reis e Bruno Nascimento de Souza, que foram mortos em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, ao serem confundidos com suspeitos de uma tentativa de assalto contra dois GCMs de Itapecerica da Serra em um posto de gasolina, em 2019. Os guardas reagiram ao assalto, sendo que um atirou contra os motociclistas que tentavam roubá-los, mas outro, Adriano Borges Rodrigues, atirou no veículo em que os vendedores estavam. A ação foi gravada por câmeras de segurança.
Ano passado, Adriano foi pronunciado, ou seja, o juiz decidiu que ele deve ser levado a júri popular. Contudo, a decisão foi anulada em recurso em junho, pois os desembargadores entenderam que o juiz de primeira instância utilizou “excesso de linguagem” na sentença — ou seja, fez juízo de valor sobre o mérito da causa, e deveria proferir outra, o que ainda não ocorreu.
Nem sempre as mortes praticadas em um município foram causadas por agentes da GCM local. Em 2017, os adolescentes Rian Jorge dos Santos Farias, 18, e Carlos Henrique de Jesus, 15, foram mortos no bairro Jardim Roseli, zona leste da capital, por um guarda de folga que mora na cidade, mas trabalha em São Bernardo do Campo, por exemplo.
O GCM Samuel Alves dos Anjos foi acusado de homicídio simples, já que a promotoria entendeu que ele agiu com excesso ao disparar 18 vezes contra as vítimas. Ele alegou ter sofrido uma tentativa de assalto. Atualmente, Samuel responde o processo em liberdade, que está na fase de instrução, ou seja, de se ouvir testemunhas e produzir provas para que o juiz avalie se ele será ou não levado a júri popular.
A zona leste é a região que concentra o maior número de vítimas em São Paulo: 14 em um universo de 10 bairros. Em seguida, vêm a zona sul, com 12 mortes em 11 bairros; zona oeste, com 10 vítimas em oito bairros; zona norte, com seis mortes em cinco bairros e centro, com um caso na região da Sé.
A base de dados do MP-SP não acopla mortes de agentes de segurança pública em serviço. Na plataforma do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que agrega dados fornecidos pelos estados, também não há informação sobre mortes de guardas municipais em São Paulo, apenas das polícias estaduais. Por isso, a Ponte não teve como fazer comparação entre esses indicadores — o que demandaria pedidos de informação para as prefeituras correspondentes aos 645 municípios paulistas.
A letalidade da GCM é consideravelmente menor que a da Polícia Militar paulista, tanto por conta do seu efetivo muito menor que o das polícias quanto pela abrangência territorial que a PM tem. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 214 dos 645 municípios no estado tinham guardas municipais em 2019. Esse é o estudo mais recente do instituto em relação à segurança pública municipal.
Contudo, o cenário acende alerta sobre as mudanças em uma corporação que tem por lei uma atribuição mais preventiva que repressiva. “Não surpreende que a letalidade da atuação das guardas seja reduzida porque as guardas municipais não deveriam, a priori, fazer o enfrentamento ao crime organizado, por exemplo”, aponta o advogado Eduardo Pazinato, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “É um problema, no entanto, a gente ter tanta perda de vidas humanas numa lógica de atuação da segurança pública”, diz.
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Embora os dados do MP-SP não identifiquem qual inspetoria ou grupamento dentro da guarda foi responsável por cada morte, uma hipótese é a de que a ideia de “guerra contra o crime” tomou conta das GCMs — muitas das quais apresentam hoje grupamentos militarizados semelhantes aos da Polícia Militar, as chamadas Rondas Ostensivas Municipais (ROMU), que replicam o “padrão Rota”.
“Na perspectiva desse guarda militarizado ou do político, do prefeito, que adere essa lógica militar, ele vê o guarda que cuida da zeladoria, do patrulhamento comunitário, como um ‘guardinha do passado'”, afirma José Douglas dos Santos Silva, pesquisador do Instituto Federal do Pará (IFPA) e autor de uma tese de doutorado que investiga o processo de militarização em guardas municipais da região metropolitana de São Paulo e a atuação das ROMUs.
“O modelo em disputa é o repressivo, o violento, o truculento. Alguns interlocutores que eu entrevistei diziam que para trabalhar na ROMU, no combate à repressão, tem que ter ‘sangue nos olhos’, tem que ser ‘faca na caveira'”, relata.
O acesso a armamento é outra variável que pode estar ligada às mortes. Nem todas as guardas as possuem. De acordo a pesquisa de 2019 do IBGE, dos 214 municípios paulistas com GCMs, 119 utilizavam armas de fogo e armas menos letais, 25 só armas de fogo, 38 só armas menos letais e apenas 32 nenhum armamento.
Reinaldo Monteiro, presidente da Associação Nacional de Guardas Municipais do Brasil (AGM Brasil), pondera que, assim como outros agentes de segurança pública, os guardas estão à mercê de atuarem em situações de crime e em legítima defesa, mas reconhece que a militarização numa corporação de caráter civil virou um problema.
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“Se o órgão de segurança pública vai copiar uma força militar que tem um índice de letalidade gigantesco, você não vai ter bons resultados”, afirma. “A atuação da guarda tem que estar preocupada com uma política de não letalidade, de baixa violência policial, se puder de zero violência policial”.
Ele afirma que a legislação é clara quanto à atuação das guardas, mas há prefeituras que descaracterizam seu papel. Um exemplo citado por ele é a criação de ouvidorias internas atreladas diretamente à corporação, que deveriam ser externas, ou seja, independentes, conforme previsão no Estatuto Geral das Guardas Municipais. “Os municípios precisam entender que ouvidoria é um órgão de controle externo das guardas municipais e a corregedoria é de controle interno”, explica.
Além do Estatuto das Guardas, o Estatuto do Desarmamento prevê um mecanismo de fiscalização das guardas municipais. Contudo, a pesquisa do IBGE identificou que apenas 46,8% das municipalidades brasileiras com tais corporações afirmaram ter instituído algum tipo de controle sobre sua guarda em 2019. Isso corresponde a apenas 556 das 1.188 corporações mapeadas na época. Em São Paulo, a pesquisa apontou que só 169 dos 214 municípios com guarda tinham algum órgão de controle.
Reinaldo afirma que a entidade que preside procurou o Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), vinculado ao MP-SP, para auxiliar no fortalecimento da fiscalização das guardas. O Ministério Público tem competência constitucional de fiscalizar a atividade policial, já que a corporação, mesmo tendo atuação diferente da PM, tem poder de polícia, no sentido de regular atividades e atuar na segurança pública. A reportagem procurou a assessoria do órgão sobre o controle externo em relação à GCM, mas não houve resposta até a publicação.
O que diz a Prefeitura de São Paulo
A Ponte solicitou entrevista à ouvidora Caroline Iatarelli Fungaro, da Secretaria Municipal de Segurança Urbana da cidade de São Paulo (SMSU), para ouvir suas considerações sobre a letalidade da corporação. A assessoria da pasta negou o pedido e respondeu, em nota, que a GCM atua em conformidade com o estatuto e “pauta suas ações pelo respeito e dignidade da pessoa humana”.
A nota diz ainda que “todos os agentes que se envolvem em ocorrências com disparo de arma de fogo são afastados de suas funções e submetidos a avaliação psicológica” e que a Corregedoria faz uma apuração paralela. “Na Academia de Formação em Segurança Urbana (AFSU), todos os aspirantes são instruídos para mediação de conflitos, com foco no diálogo e integridade física dos envolvidos nas ocorrências. Ao efetivo, é aplicado, anualmente, o curso de Estágio de Qualificação Profissional, que consiste no treinamento operacional para a atuação adequada do agente frente às ocorrências atendidas”, afirma a SMSU.