Guerra às drogas gerou prejuízo de R$ 14 milhões a moradores de apenas duas favelas do Rio

Estudo do CESeC avaliou impacto de tiroteios com participação de agentes do Estado na economia de comunidades dos Complexos da Penha e de Manguinhos; ações policiais interromperam acesso a serviços básicos, como energia, água e internet

Ilustração: Renato Cafuzo / CESeC

Imagine que você é uma pessoa que precisa acordar cedo e pegar o transporte público para chegar ao seu local de trabalho. O barulho dos tiros e corre-corre com a presença de policiais interrompe o caminho. Não se sabe quando nem como a operação começou nem quando vai acabar e, na iminência de se proteger em meio a diversos comércios fechando as portas, você consegue voltar para a casa e se esconder, mas não consegue avisar o trabalho porque a bateria do seu celular está acabando e energia no bairro caiu depois de uma bala atravessar um poste. O chefe não quer saber o motivo da sua ausência, mas até você ter a oportunidade de sair com segurança, já perdeu o dia do serviço.

Esse pode parecer um exemplo hipotético, mas é o que acontece com frequência com moradores das comunidades Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, e Mandela de Pedra, no Complexo de Manguinhos, na cidade do Rio de Janeiro, por conta de tiroteios com participação de agentes de Estado, acordo com a pesquisa Favelas na mira do tiro: impactos da guerra às drogas na economia dos territórios, lançada nesta segunda-feira (18/9).

56,6% dos moradores não conseguiram utilizar o transporte público por conta das ações policiais, 41,1% deles relataram interrupção da energia elétrica durante o tiroteio e o fechamento dos comércios ou prestação de serviços afetou as vendas de 43,2% dos comerciantes de Vila Cruzeiro e 79% dos que atuam em Mandela de Pedra.

O Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) estimou que a guerra às drogas gerou um prejuízo de R$ 14 milhões a 800 moradores ouvidos nessas duas comunidades, sendo R$ 9,3 milhões na renda pela perda de dias de trabalho e R$ 4,6 milhões pela perda de bens materiais (destruídos ou roubados) durante as operações. Já para os 303 estabelecimentos comerciais mapeados, a projeção é de que deixaram de faturar R$ 2,5 milhões por ter que fechar as portas ou interromper o trabalho por isso. O período considerou os 12 meses anteriores à pesquisa, que aconteceu entre novembro de 2022 e fevereiro de 2023. Leia aqui a íntegra do relatório.

O estudo é a quarta e última fase do projeto “Drogas: quanto custa proibir”, que avaliou o impacto de operações policiais com a alegação de combate ao tráfico de drogas na vida de pessoas que vivem diante dessa realidade. A primeira foi sobre o gasto do sistema de justiça criminal em São Paulo e no Rio de Janeiro, a segunda tratou sobre o acesso à educação de crianças em meio aos tiroteios e a terceira apurou o adoecimento e os gastos de tratamento de saúde para moradores que vivem essa rotina de medo.

“A gente está falando de territórios majoritariamente negros, e também historicamente marginalizados e criminalizados, com uma origem associada aos quilombos, como a Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha”, explica a socióloga e coordenadora-adjunta do CESeC Mariana Siracusa. “A gente tem vários governadores se referindo a esses territórios como lugar de bandido. É o racismo que legitima a atuação das forças policiais nesses territórios. Primeiro: a gente não vê operações policiais no Leblon, em áreas privilegiadas da cidade, onde há muito mais consumo de drogas e venda de drogas. Segundo: a gente não vê ações da polícia tão violentas e brutais como há nos territórios de favela.”

A pesquisadora salienta que, além do risco de perder a vida por tiro, os moradores e comerciantes arcam com um ônus que é provocado e não reparado pelo governo, o que, para ela, evidencia uma “política de morte” nesses locais. “O racismo serve de legitimação ideológica até para essas ações do Estado, não só das polícias, mas dos serviços públicos que são precários. Por exemplo, quebra um transformador. Quanto tempo demora para consertar um transformador que foi atingido por uma bala do próprio Estado? É o Estado provocando um dano no território. Quanto tempo ele demora para restabelecer um serviço essencial para os moradores?”, critica.

O material foi produzido em conjunto com os moradores das favelas, que mapearam pela primeira vez a quantidade de estabelecimentos comerciais existentes nos territórios, num raio de 400 metros. O CESeC considerou a Vila Cruzeiro e a Mandela de Pedra por terem sido as comunidades mais afetadas por tiroteios: foram, respectivamente, oito e 10 ocorrências, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado sobre tiroteios que tiveram a participação de agentes do Estado entre junho de 2021 e maio de 2022.

Isso porque, destaca Mariana Siracusa, o próprio Estado não faz a contagem de operações policiais para disponibilizar para a sociedade. “A gente já tentou obter essas informações via Lei de Acesso à Informação e isso sempre foi negado. O que a gente sabe é que eles têm um procedimento que chama BOPM, é um boletim de ocorrência da Polícia Militar que, teoricamente, registraria essas ações, mas, até onde a gente sabe, esses documentos não são digitalizados, eles estão ainda em papel, segundo justificativa deles. Eles não sabem quantas operações são porque eles não contabilizam. A gente tem uma polícia que não tem interesse político, essa é a verdade, de contabilizar as suas ações.”

Ela afirma que é urgente a implementação de um plano de redução da letalidade policial e de controle externo das polícias, o que é de competência constitucional do Ministério Público, para reverter esse cenário. “A gente tem uma polícia no Rio de Janeiro que descumpre, que vem descumprindo, sistematicamente, uma decisão do STF, que é a ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas”, diz, em referência à determinação do Supremo Tribunal Federal sobre a proibição de operações policiais na pandemia que se desdobrou em uma série de medidas para coibir a violência policial, incluindo a redução da letalidade.

No mês passado, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou ao governo estadual, que está pelo segundo mandato sob o comando de Claudio Castro (PL), elaborar um plano de redução da letalidade policial tendo em vista ser uma das exigências para receber repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública. O indicador está dentro da meta de 80% de redução de mortes violentas intencionais estabelecidas em portaria de 4 agosto do Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Nesse mesmo texto, a pasta incluiu as câmeras nas fardas como item possível de financiamento, apesar da promessa, em abril, de se premiar os estados que aderissem à implementação do equipamento.

A socióloga destaca que o governo federal deveria condicionar os recursos à questão da letalidade. Em junho, o ministro Flavio Dino tinha divulgado o lançamento do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) 2, em que entregava R$ 4 milhões em viaturas, drones, pistolas e armas de eletrochoque e R$ 90 milhões para a construção de duas novas penitenciárias ao Rio de Janeiro, antes da questão de se incluir a violência policial como meta.

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“A gente sabe que as polícias, a política de segurança é atribuição dos estados, mas não há democracia com esses descontrole das polícias. Então, a gente precisa também cobrar posicionamentos do governo federal para que isso não se repita nos estados, como a gente está vendo na Bahia também, ações policiais cada vez mais violentas e produzindo cada vez mais mortes”, conclui a pesquisadora.

O que diz o governo do Rio de Janeiro

A Ponte procurou a assessoria do governador a respeito dos resultados da pesquisa e sobre a questão da letalidade policial. A gestão encaminhou a seguinte resposta:

O Governo do Estado do Rio já elaborou e encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um plano de redução da letalidade policial. Esse plano inclui o uso de câmeras corporais portáteis pelas forças de segurança. Na Polícia Militar, o equipamento já está sendo usado pelos agentes de todos os 39 batalhões de área do estado. Uma licitação para aquisição de câmeras embarcadas em viaturas está na fase final.

Além disso, o Governo do Estado tem investido em inteligência e treinamento. Inaugurou a Agência Central de Inteligência da Polícia Civil e está construindo o maior centro de treinamento de tropas do país.

Esse conjunto de ações levou o estado do Rio a alcançar, em julho, o menor número de mortes violentas em 32 anos, conforme divulgou o Instituto de Segurança Pública (ISP). Também houve aumento de até 200% na apreensão de drogas em bairros da capital e em comparação com o mesmo período do ano passado.

A respeito das comunidades Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, e Mandela de Pedra, no Complexo de Manguinhos, entre janeiro a 14 de setembro deste ano, foram efetuadas 47 prisões, sendo retiradas das ruas dessas localidades 7 armas de fogo, sendo 3 fuzis, 2 pistolas, 1 carabina e 1 espingarda. Também foram retomadas 2 granadas.  

Mais de 220 quilos de drogas, avaliados em R$ 1 milhão, foram apreendidas no Complexo da Penha. É importante ressaltar que os agentes da 25ª DP prenderam uma liderança do tráfico do Pará que se escondia na Vila Cruzeiro.

Policiais da DRF e agentes da PM localizaram um imóvel com 100 toneladas de cabos de telefonia furtados, em Manguinhos, e uma outra ação, da DRFC, recuperou uma carga de fios avaliada em R$ 300 mil. Nas duas localidades foram recuperados 45 veículos e 3 cargas.

O que diz o governo federal

A reportagem também questionou o Ministério da Justiça e da Segurança Pública sobre os repasses de verbas, que encaminhou a seguinte nota:

Repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública aos estados são obrigatórios por lei, que fixa inclusive o percentual do citado repasse

O Ministério da Justiça atua no âmbito de uma Federação, em que não há hierarquia entre os governos, o que dificulta imposições e impulsiona a necessidade do estabelecimento de diálogos federativos, que estão ocorrendo. Tais diálogos alcançam, inclusive, critérios e metas do Fundo Nacional de Segurança Pública. Pretender que em poucos meses todos os critérios sejam revistos é algo que se choca com a forma federativa de estado e com a realidade nacional. 

O Ministério da Justiça está trabalhando fortemente para adoção de câmeras e outras medidas de redução da letalidade policial, com a realização de seminários e cursos. Tais cursos serão ampliados com o início do Programa Bolsa Formação. Existem também os programas de apoio às vítimas, que estão sendo implementados no âmbito da Secretaria Nacional de Acesso à Justiça. 

Não há qualquer relação de causa e efeito entre repasses obrigatórios do Fundo Nacional de Segurança Pública e problemas de gestão local do sistema de segurança pública.

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