Há 4 anos, outro homem negro foi amarrado por PMs e autoridades não consideraram tortura

Em 2019, vídeo feito por uma testemunha mostrou homem suspeito de furto sendo amarrado pelos pés e mãos em Pirajuí, interior de SP; como no caso de Robson Francisco, PM, MP e TJ também não viram violência em ação

Diego Henrique Ribeiro foi amarrado pelos pés e mãos com corda por PMs em Pirajuí, interior de São Paulo, em 20 de fevereiro de 2019 | Fotos: reprodução

Robson Rodrigo Francisco não foi o único a ser gravado por uma testemunha com os pés e mãos amarrados por cordas por policiais militares durante uma abordagem. Em 2019, outro homem negro com então 27 anos, também suspeito de furto, foi filmado passando por situação semelhante na cidade de Pirajuí, no interior de São Paulo.

Na época, Diego Henrique Ribeiro aparecia na gravação feita por testemunhas deitado no chão com as mãos algemadas para trás e, em seguida, é puxado e virado de costas por um policial militar que amarra seus pés junto às mãos com uma corda e o coloca dentro da viatura. Assim como no caso de Robson, com a repercussão do vídeo, a corporação divulgou nota afirmando que a conduta “não condiz com o que está preconizado no POP (Procedimento Operacional Padrão) e não retrata a forma como a Polícia Militar atua na detenção de presos” e que os envolvidos foram afastados para instauração de inquérito.

O G1 tinha noticiado que a Justiça pediu explicações à polícia sobre as imagens, mas no inquérito que Diego respondeu não consta nenhuma menção por parte do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) sobre o vídeo. Na audiência de custódia, em 21 de fevereiro daquele ano, a juíza Ana Carla Criscione dos Santos determinou que a PM fosse oficiada para apurar a autoria das lesões que o jovem apresentava na cabeça, no rosto, no ombro, no tórax e no joelho conforme laudo feito pela Santa Casa de Misericórdia de Pirajuí, por ele onde passou antes de ser conduzido à delegacia.

A prisão em flagrante foi convertida em preventiva (por tempo indeterminado) e a decisão não informa se o jovem tinha relatado agressões, apenas que foi informado dos seus direitos. A Ponte não teve acesso à gravação da audiência de custódia.

Na delegacia, os policiais militares Nilton Antonangelo e Vagner Santos Oliveira, então no 4º Batalhão de Polícia Militar do Interior (BPM/I), disseram que foram acionados para uma ocorrência de roubo de celular e, quando chegaram ao local, viram Diego “em luta corporal” com a vítima. Eles afirmam que socorreram a vítima e contiveram Diego, que teria resistido à prisão, “sendo necessário o uso moderado e progressivo da força física para algemá-lo”.

No boletim de ocorrência, não há menção dos pés amarrados, mas os PMs informaram em depoimento que imobilizaram os pés para “cessar injusta agressão contra a vítima e também contra a unidade de serviço [policiais]”.

A vítima do furto disse que tinha deixado seu celular no carro estacionado em frente ao estabelecimento comercial que trabalha. Por volta das 18h10, relatou que viu Diego dentro do veículo revirando seus pertences e que ele correu quando o comerciante decidiu ir atrás. O jovem teria sido alcançado e os dois passaram a brigar. O comerciante disse que deu socos e chutes para se defender porque teria sido atingido por chutes, embora não tenha apresentado “nenhuma lesão aparente”. Em seguida, os PMs chegaram e, segundo a vítima, Diego teria resistido à abordagem. O celular teria sido encontrado dentro da cueca de Diego, que foi indiciado por roubo pelo delegado César Ricardo do Nascimento.

A prisão aconteceu no mesmo dia em que Diego tinha sido colocado em liberdade após cumprir pena por furto na Penitenciária I de Balbinos. Na delegacia, ele preferiu não se manifestar e disse que não assinaria nenhum papel. O vídeo passaria a repercutir cerca de uma semana depois da abordagem.

Em junho de 2019, o então comandante interino da 2ª Companhia do 4º BPM/I, tenente Eduardo Rezende Sanches, enviou ofício sobre a apuração em que Diego “alegou, em audiência de custódia, ter sido agredido por policiais militares”.

No documento, ele informa que “após diligências e oitivas de várias pessoas que presenciaram o ato da prisão do réu Diego Henrique Ribeiro, restou provado que não houve violência praticada por policiais militares e que as lesões apresentadas pelo supracitado foram provenientes da luta corporal ocorrida durante a detenção do delito praticado, uma vez que o mesmo foi detido por civis, quais sejam a vítima e outros dois amigos que o (sic) ajudaram a deter o infrator até a chegada da Unidade Policial Militar”.

Não há nenhuma menção sobre a forma como o jovem foi amarrado pelos PMs. O Ministério Público, que naquele momento já havia acusado Diego por roubo, assim como o Judiciário, não requisitou a íntegra da investigação preliminar da PM e ambos nem fazem referência à filmagem.

A defesa de Diego, feita por meio de um convênio da Defensoria Pública com a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção São Paulo (OAB-SP), só vai mencionar as reportagens do G1 que mostram os vídeos em maio de 2020, no momento de alegações finais, ou seja, depois de todo o processo de audiências e produção de provas e pouco tempo antes de a juíza proferir uma sentença. As imagens, contudo, são usadas apenas para argumentar que Diego aparecia nas imagens contido e agredido e que as lesões tinham sido praticadas pelo comerciante, que confirmou ter dado socos e chutes. Não é questionada a ação dos PMs.

Nas audiências, Diego disse que morava na rua e era usuário de drogas, mas nunca fez tratamento nem tinha família ou vínculo com alguém. Naquele dia, tinha saído da penitenciária e contou que foi até a praça da cidade e, andando pelas proximidades, viu um celular dentro de um carro, pegou e correu. Ele disse que viu o comerciante correndo e negou ter lutado com ele. “Disse que os policiais chegaram,
abordaram e agrediram o interrogando, pegando o celular” e que o aparelhou foi devolvido para a vítima.

A juíza Beatriz Tavares Camargo condenou Diego a cinco anos, cinco meses e 10 dias de prisão em regime fechado, além de pagamento de 12 dias-multa, em 19 de maio de 2020. Para ela, a versão dos PMs e do comerciante prevaleceram, já que “não há provas de que eles queiram deliberadamente prejudicar os acusados, imputando-lhe falsamente a prática de crime”.

“Ficou demonstrado que, a fim de assegurar a subtração, o réu entrou em luta corporal com a vítima. E os policial chegaram durante a luta corporal, marcada por socos e chutes, superando uma mera tentativa de fuga”, escreveu.

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A magistrada, que confunde o nome de Diego com Carlos Eduardo, também afirma que não duvida que ele tenha ficado ferido, mas que “esse foi um risco que assumiu” porque “investiu contra a integridade da vítima, com vistas a garantir a impunidade do furto que havia consumado”.

A defesa do jovem recorreu da condenação uma vez, tendo o pedido negado e não entrou com recursos depois. A sentença transitou em julgado em novembro de 2020, ou seja, não há mais possibilidade de recorrer após essa data.

Os sargentos Nilton Antonagelo e Vagner Santos Oliveira estão aposentados da corporação desde, respectivamente, junho de 2020 e outubro de 2021, quando foram transferidos para a reserva.

O que diz a polícia

A Ponte questionou a Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública sobre o caso de Diego, a investigação preliminar da corporação, o vídeo divulgado bem como as medidas que teriam sido tomadas na época e após a repercussão envolvendo Robson. Até a publicação, a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu.

O que diz o Ministério Público

Também questionamos a Promotoria responsável pelo caso, já que houve atuação de promotores diferentes ao longo do processo, os motivos de não terem solicitado apuração da denúncia de agressão relatada por Diego, o vídeo divulgado pela imprensa na época e qual a posição do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp) sobre os casos e que medidas estariam sendo tomadas e aguardamos resposta.

O que diz o Tribunal de Justiça

Procuramos a assessoria do tribunal a respeito da condução do caso de Diego pelo Judiciário a respeito da abordagem dos policiais e também perguntamos, no caso de Robson, por que a juíza não pediu as imagens das câmeras corporais dos policiais na audiência de custódia. A assessoria enviou a seguinte nota:

O Tribunal de Justiça de São Paulo não emite nota sobre questão jurisdicional. Os juízes têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos processos e seu livre convencimento. Essa independência é uma garantia do próprio Estado de Direito. Quando há discordância da decisão, cabe às partes a interposição dos recursos cabíveis, previstos na legislação vigente. 

Com relação ao caso do acusado Robson, conforme informado ao Ponte anteriormente, na custódia ele respondeu negativamente quando expressamente inquirido se possuía reclamações quanto ao tratamento dispensado pelos policiais. Em razão dessa resposta, a Defensoria Pública não requereu nenhuma providência. Até então, as imagens registradas no hospital não haviam sido juntadas aos autos e delas nenhum dos participantes da audiência de custódia tinha conhecimento. Apenas em 7/6/23, a Defensoria Pública, imediatamente, após tomar conhecimento, protocolou petição apresentando os vídeos e requerendo providências.

No mesmo sentido, foram as petições protocoladas posteriormente pelos advogados constituídos pelo indiciado.  Tão logo conclusos os autos, foi determinada a remessa de cópias à Justiça Militar e Corregedoria da Polícia Militar, bem como requisitadas as imagens das câmeras acopladas à farda dos policiais com o prazo de 5 dias, para encaminhamento aos órgãos correicionais referidos.

O que diz a defesa

A reportagem não conseguiu localizar o advogado Erick Medeiros Bannwart, que fez a defesa de Diego por meio de convênio da OAB-SP com a Defensoria Pública na época. Também contatamos a Defensoria Pública sobre os casos de Diego e Robson e aguardamos resposta.

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