Homem negro denuncia tortura da PM para confessar crime de tráfico de drogas em Itapevi (SP)

Câmeras nas fardas mostram policial dando murro e tapa durante abordagem em março 2023; homem ainda disse ter levado “chicotada” nas costas. Defensoria e desembargador afirmam que prisão e confissão foram ilegais

A Defensoria Pública de São Paulo busca absolver um homem negro de 27 anos que relatou ter sido agredido por policiais militares para confessar que participava do tráfico de drogas em Itapevi, no interior de São Paulo, durante uma abordagem em 2023.

O homem, que vamos chamar de Emerson, foi condenado a sete anos e seis meses de prisão em regime fechado, além do pagamento de 750 dias-multa, por tráfico de drogas, em agosto do ano passado. Ele está preso há um ano.

A sentença foi mantida em segunda instância, por maioria de votos da 13ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), neste mês, e agora a Defensoria aguarda a análise de um novo recurso enviado ao mesmo colegiado do tribunal pois um dos desembargadores considerou que a prisão de Emerson foi ilegal, já que as câmeras nas fardas dos PMs denotam que houve agressões contra ele e deixam dúvidas sobre a versão dos policiais.

Tudo aconteceu em 17 de março de 2023. Os soldados Willian Barbosa Pereira dos Santos e Márcio José Carniel Júnior disseram que estavam em patrulhamento “em local conhecido por ser ponto de venda de entorpecentes quando avistaram um indivíduo com uma sacola na mão”. Ao avistar a viatura, o homem teria fugido para o meio do mato.

A dupla teria o encontrado próximo a uma canaleta de esgoto, perto de uma sacola com porções de drogas que totalizaram 69,1 gramas de maconha, 108,3 gramas de cocaína e 87,2 gramas de crack. Os PMs ainda disseram que, “em breve entrevista informal”, Emerson disse que vendia as substâncias e estava junto com um “olheiro”, mas o comparsa não estava no local.

Na delegacia de Itapevi, Emerson disse, sem presença de advogado, que estava ajudando um rapaz que vendia drogas no local e que foi até a biqueira (ponto de venda) para comprar alimentos para ele e que correu da abordagem pois ficou com medo. Ele relatou que estava em saída temporária e já foi preso por tráfico de drogas antes.

Não consta no boletim de ocorrência se o delegado Daniel Schwarz Furlani perguntou se houve algum tipo de conduta abusiva por parte dos policiais militares nem solicitação para verificar as gravações das câmeras das fardas. Ele autuou Emerson em flagrante por tráfico de drogas.

Na audiência de custódia, Emerson relatou que ele estava no banheiro de um bar que a polícia invadiu e que correu por medo. Voltou a negar que vendia drogas e disse que foi agredido pelos PMs com murros, socos, empurrões, enforcamento e golpeado nas costas com o que para ele parecia ser um chicote.

Como o exame de corpo de delito identificou lesões na boca, pescoço, punhos, quadril, joelho e nas costas de Emerson, a juíza Rachel de Castro Moreira e Silva, do Foro de Plantão de Itapecerica da Serra, pediu ao Instituto Médico Legal (IML) um laudo complementar para verificar se as marcas nas costas eram compatíveis com uso de “chicote”. Ela também requisitou o envio das imagens das câmeras nas fardas dos PMs, mas converteu a prisão em flagrante em preventiva (por tempo indeterminado) de Emerson.

Trecho do laudo de corpo de delito de Emerson que identifica agressões na boca, no pescoço, joelho, punhos, costas e quadril | Imagem: Reprodução/Polícia Técnico-Científica

No novo exame, foi constatada que as lesões nas costas “são compatíveis com instrumento alongado, linear e fino”. Esse laudo só foi anexado ao inquérito quatro meses depois da prisão, em julho, assim como as imagens das câmeras nas fardas dos PMs, após o defensor público Felipe Matos do Amaral reiterar a decisão da juíza da audiência de custódia. Nesse intervalo, Emerson já tinha virado réu por tráfico de drogas após o juiz Udo Wolff Dick Appolo do Amaral, do Foro de Itapevi, aceitar a acusação feita pelo promotor Ricardo Beluci.

A Ponte teve acesso aos nove arquivos das câmeras enviados pela PM, sendo sete com duração de 30 minutos, um vídeo com 19 minutos e 33 segundos e outro com um minuto e 38 segundos. Essa última gravação, a mais curta, é a única em que houve gravação de áudio e mostra um dos PMs pedindo para Emerson “contar de novo” o que teria lhe dito supostamente antes, sem haver gravação, sobre participar do tráfico de drogas. Nesse vídeo, o homem, cabisbaixo e apenas respondendo o que o policial pergunta, diz que vendia drogas e que faturaria R$ 1 mil por semana.

Os demais vídeos, contudo, estão com uma resolução menor e sem áudio, pois não foi acionado pelos soldados como gravação de interesse. Também não há explicação sobre a escolha dos trechos. Quando a gravação não é destacada pelo policial como de interesse, o tempo de armazenamento é de 60 dias, porque fica entre a filmagem geral do turno e é lido como “de rotina”. Já as que têm a sinalização “de interesse”, sendo o áudio acionado, o armazenamento dessas imagens pode ser de até um ano.

As imagens disponíveis não mostram um indivíduo segurando uma sacola que corre após ver a viatura policial na rua. Há trechos em que os soldados estão abordando outros homens em frente ao que parece ser um estabelecimento, outros começam já em frente à delegacia e todos trechos sobre a abordagem a Emerson já são dentro do matagal.

Como a abordagem aconteceu à noite, tudo que é possível enxergar é por conta da iluminação feita pelos soldados que usam lanternas. Assim que Emerson é localizado, ele já coloca as mãos na cabeça. O soldado William encosta o cano da pistola na cabeça dele e parece dizer alguma coisa. Não há nenhuma sacola perto dele.

Emerson parece ser agredido com murros na cabeça, cai no chão e leva um tapa no rosto. A todo o momento, ele é segurado com força pela gola do moletom que está usando e é jogado algumas vezes no chão. Não é possível saber o que é falado entre eles pela ausência do áudio. Há trecho em que, enquanto Willian está segurando Emerson pela gola, Marcio se vira e mexe na câmera da sua farda e a cobre com a mão.

Em certo momento, parecendo ser guiado por Marcio, Emerson, ainda segurado por Willian, aponta em direção a uma árvore, onde é encontrada uma sacola cinza, que é recolhida por Marcio. Neste momento, aparentemente, Willian parece jogá-lo no chão e Emerson lhe entrega algo dobrado, que parece ser dinheiro. No auto de apreensão, não consta nenhum outro objeto além das drogas.

Trecho em que terceiro PM aparece segurando um galho de árvore que teria sido usado para agredir homem negro | Imagem: Reprodução

Em seguida, Emerson leva um tapa no rosto e é colocado no chão de novo. Ele gesticula e, em certo momento, balança a cabeça afirmativamente. As luzes das lanternas são apagadas por alguns segundos. Na câmera do soldado Márcio, é possível ver um terceiro PM segurando um grande galho de madeira em um trecho rápido.

Para o defensor Felipe Amaral, “a presença de violência por parte dos agentes policiais no momento da abordagem torna a abordagem ilícita e contamina toda a prova eventualmente obtida no ato”.

Diante do juiz e do promotor, Emerson disse que os policiais o levaram a um local isolado na mata, embora essa parte não conste no registro das câmeras dos PMs. Ele relatou que confessou o tráfico pois foi agredido e ficou com medo. Denunciou que no momento das agressões, um policial teria dito para “desligar as câmeras”. Disse que que é dependente químico e tinha “passado o dia e a noite lá [na mata] usando drogas”. Segundo ele, “os rapazes que ficam no tráfico pedem favores para eles, e, em troca, recebe alguma porção de entorpecentes”.

O defensor anexou alguns prontuários médicos que datam de 2018 a 2020, sendo que há pelo menos um deles com indicação legível de que Emerson parou no posto de saúde de Itapevi por “intoxicação” devido ao uso de 15 pinos de cocaína.

O juiz Udo Wolff, contudo, entendeu que os policiais não tinham motivos para mentir, não considerou a questão da violência denunciada e condenou o homem. “Nesses dizeres e nas imagens, observe-se, os agentes públicos não transparecerem tendenciosidade ou qualquer sorte de motivo escuso na incriminação do acusado, a quem sequer conheciam previamente, do que consta. Daí que, com efeito, não é possível, simplesmente, presumir sua parcialidade. Mesmo porque, note-se, não faria sentido o Estado atribuir a agentes públicos a função de realizar patrulhamento ostensivo e prisões em flagrante, porém negar credibilidade aos depoimentos prestados em decorrência desse mister”, argumentou.

A Defensoria impetrou recurso à 13ª Câmara Criminal e o desembargador Marcelo Semer foi o único entre três magistrados que entendeu ter havido tortura e votou pela absolvição de Emerson.

O desembargador sustenta que “há graves indícios de que Willian é autor de diversas agressões contra o réu, embora este tenha se rendido assim que foi encontrado. Tais agressões incluem socos e tapas na cabeça e rosto do réu, empurrões que o levaram ao chão, enforcamento que durou ao menos um minuto, e segurar o réu com a camisa levantada para que fosse chicoteado nas costas por um terceiro que aparentemente usava como arma galho de madeira encontrado na mata”. Semer também aponta que Willian teria aparentemente furtado o dinheiro de Emerson.

Para ele, há “graves indícios” de que Márcio “tinha ciência de tais agressões e agiu para auxiliar sua execução e impunidade, iluminando o caminho, bloqueando por diversas vezes a captura de imagem por sua câmera corporal ao tapá-la com a mão ou desviá-la, frequentemente combinando tais táticas com o apagamento de sua lanterna para que a imagem ficasse escura”.

Semer sustentou que é responsabilidade dos juízes “garantir a integridade corporal dos réus contra a violência estatal”, com base na Constituição Federal e na 7ª Convenção Interamericana de Direitos Humanos. “Tais elementos obrigam à declaração de nulidade da abordagem policial e das demais provas dela advindas, com imediata expedição de alvará de soltura ao réu”, escreveu.

Como o voto foi vencido, a Defensoria impetrou embargos infringentes, que é um recurso voltado ao mesmo colegiado por não ter havido decisão unânime e obrigar os magistrados a chegarem num acordo. Esse recurso ainda não foi julgado.

Sobre o caso de denúncia de tortura, em 26 de março do ano passado, o promotor Ricardo Beluci pediu a abertura de investigação na Polícia Civil, o que foi acatado pelo juiz Udo Wolff. Porém, o inquérito está parado. O delegado Dalmir de Magalhães requisitou a presença dos PMs para serem ouvidos, o que ainda não aconteceu, e pediu mais prazo para as diligências.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública sobre a atuação dos PMs, da Polícia Civil e a investigação da denúncia de tortura, mas até a publicação a Fator F, assessoria terceirizada da pasta, não respondeu.

A reportagem também contatou o Ministério Público e o Tribunal de Justiça sobre o caso. A assessoria do TJSP disse que o “Tribunal de Justiça não emite notas sobre questões jurisdicionais”.

Já o MP encaminhou a seguinte nota:

O réu foi preso e condenado pelo tráfico de drogas pelo Judiciário.

Defesa recorreu da sentença condenatória. Já na audiência de custódia a juíza determinou expedição de cópias para a Justiça Militar para apurar eventual abuso por parte dos Policiais Militares 

Não houve mais manifestação da Promotoria de Justiça sobre as denúncias de agressões justamente porque já foi oficiado para a Justiça Militar.

Cabe à Justiça Militar apurar os fatos.

Reportagem atualizada às 10h30, de 5/4/2024, após recebermos resposta do MPSP.

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