Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas traçou perfil de vítimas de ações policiais entre 2013 e 2016: homem, jovem, negro e periférico
Homem, negro, com até 29 anos de idade. Esta é a principal vítima da polícia de São Paulo em mortes decorrentes de intervenção policial, os chamados autos de resistência, termo aposentado em alguns estados e objeto de projeto de lei que prevê alteração no Código de Processo Penal (CPP) para extinção definitiva da expressão. Um estudo de doutorado da FGV (Fundação Getúlio Vargas) traçou o perfil dos mortos pela polícia segundo dados oficiais entre 2013 e 2016.
Os boletins de ocorrência das ações policiais que resultam em morte de civis mostram que 99% dos casos envolvem homens e menos de 1%, mulheres. Quanto à raça, morreram 62,1% negros frente a 33,9% brancos. Já o recorte da idade das vítimas aponta que 34,6% tinham entre 20 e 29 anos. Somados com os 28,4% de 10 a 19 anos, o total de jovens equivalem a 63% dos mortos pela polícia. Os números reforçam pesquisas da área realizados nos últimos anos, entre eles os apresentados em estudo divulgado na última segunda-feira (14/5) com a participação do Movimento Mães de Maio em parceria com a Unesp e Universidade de Oxford sobre o perfil das vítimas dos Crimes de Maio de 2006, quando mais de 500 civis foram mortos na resposta do Estado no enfrentamento ao PCC (Primeiro Comando da Capital).
As polícias de São Paulo mataram 943 pessoas somente ao longo de 2017, o ano com maior letalidade policial desde 1995, considerado período histórico de levantamento da SSP-SP (Secretaria da Segurança Pública de São Paulo). Comparando as mortes causadas por policiais em 2001 com 2016, há um crescimento de 41,5%, segundo o estudo – de 605 para 856. Aumento na contramão dos homicídios dolosos, que caíram 64,9% no estado, de 12.475 para 4.377.
“É um percentual muito significativo de adolescentes, com 17 anos ou menos e destoa, por exemplo, do perfil das vítimas de homicídio do estado. Fica evidente como a interação com os adolescentes, às vezes crianças, é bem mais violenta do que entre os adultos”, explica Samira Bueno, doutoranda da FGV e diretora-executiva do FBSP e responsável pelo estudo, à Ponte. “Além da idade, serem predominantemente homens e negros, eles residem em cerca de 20 municípios do estado. Ou seja, a letalidade é bastante concentrada e, em tese, mais simples de controlar. A questão que fica é: por que não controlar?”, questiona.
O coronel da reserva da PM de SP, Adilson Paes de Souza, considera que este estudo reforça um perfil já traçado anteriormente, como em pesquisas realizadas por órgãos como as Nações Unidas. “Não é segredo para ninguém que o Brasil tem um mito da democracia racial. Não existe. Existe, sim, um racismo histórico e estrutural cuja uma de suas formas de demonstração é o perfil destes mortos”, argumenta.
Também ficou definido na análise o perfil dos policiais assassinos: um praça, branco ou negro, normalmente desde a década de 1990 na corporação e membro de tropas de elite da PM (Rota, Gate, Choque e Força Tática). Nas ocorrências, os PMs eram 80% praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) e 20% oficiais (tenentes, capitães, majores e coronéis), 50% brancos e 50% negros, 58% entraram na corporação na década de 1990 e 75% atuaram em tropas de elite.
“Ao mesmo tempo em que esses policiais encarcerados veem nos mortos de suas ações a representação social do mal, o alto percentual de adolescentes entre as vítimas desacredita essa hipótese”, sustenta a pesquisadora Samira, no estudo. “A premissa é sempre de que a vítima da ação policial poderia vir a ser um grande criminoso, embora não necessariamente ela estivesse cometendo qualquer tipo de delito no momento do homicídio policial”, prossegue.
Vício de matar
A pesquisadora entrevistou 16 policiais militares condenados por homicídio e presos no Presídio Milita Romão Gomes para tentar entender o que os levou a matarem pessoas. Todos foram condenados por homicídio doloso, seja por feminicídio ou envolvimento com chacinas. A conclusão é de que através dos próprios parceiros e superiores, não oficialmente pela instituição, o policial é levado a se colocar em uma guerra. Nesta lógica, quem mata faz um bem para a sociedade.
“O curioso é que praticamente todos, com exceção de um, tinham uma relação muito frequente com o universo morte. Independente do motivo que os levou para o Romão, eles tinham se envolvido em varias resistências. Ou seja, a morte era um elemento central do cotidiano de trabalho e praticamente todos vinham de grupamentos especializados, tático móvel ou choque”, explica Samira.
No documento, relatos dos PMs mostram como era imposta a eles uma mentalidade de viverem em guerra. “Quando o cara entra [na PM] vive num mundo fictício que se transforma num palco de guerra. Induzem ele a pensar que está na guerra e que isso é legítimo. Mas quem faz isso não é a instituição, mas algumas das pessoas que a representam”, sustenta um dos PMs, durante as conversas para elaboração da análise.
Segundo a análise, esta tese da guerra tem início no século XX, passando a ser uma doutrina reforçada durante a ditadura militar (1964 a 1985) e reformada pela “hiper militarização da polícia”. É apontada “forte relação” da Rota com este pensamento, premiações dadas por mortes e o apelido dado aos policias matadores: Billy ou Bilão.
“É a tese do combate ao inimigo, um discurso que vem da ditadura e é trazida pelo país com a doutrina segurança nacional, que embasou o golpe militar e sustentou a ditadura e seus atos de repressão. A ideia do “inimigo da nação a ser combatido” é um discurso que persiste”, explica o coronel Adilson. “É importante falar da desmilitarização, que significa arrancar essa tese da vida da nação, esse viés da guerra. O nosso sistema de segurança pública, na essência, é o mesmo da ditadura. Não houve redemocratização neste sentido”, prossegue.
Os próprios policiais tinham consciência da quebra da lei, mas seguiam matando. “Eu sabia que era errado, tinha convicção disso, mas também sabia que ia prender e depois ia ser solto. Quando você trabalha na cidade grande é difícil encontrar de novo, mas no interior você sabe tudo sobre aquela pessoa. Na minha visão, eu estava fazendo o certo eliminando o inimigo e protegendo as pessoas de bem. População quer que você faça isso, mas te crucifica quando você faz”, aponta outro dos presos à pesquisadora, este ex-PM por conta do crime cometido, evidenciando uma descrença dos policiais quanto à Justiça.
Sem considerar os juízes com credibilidade para por na cadeia quem eles levavam para os tribunais, os policiais optaram pela justiça com as próprias mãos, como revela outro dos condenados. Ele ainda evidencia a existência em alguns homens do que chama de “vício de matar”.
“Para nós, policiais, você sente satisfação, sente mais satisfação do que quando você prende. Para alguns policiais vira um vício matar; quando você não consegue matar, você sente como se o seu serviço não tivesse sido feito a contento. Você sente que pode solucionar os problemas da população, você quer a qualquer custo resolver”, diz outro a Samira, conforme relatado, citando “conivência de poderes” para as mortes.
“Naquela época [anos 1980], era institucionalizada a morte de meliantes. Havia conivência de todos os poderes. Se houve ou não ocorrência, não interessava. O que importava era o resultado fim. O jargão usado na época era ‘deixa a polícia trabalhar’. Quem morria não importava”, explica à ela o PM.