Arquidiocese de São Paulo entrou com ação de reintegração de posse em novembro de 2020 e ao menos 15 pessoas foram retiradas do local nesta quarta (17) pela PM sem assistência social
“A gente não tem para onde ir, então o jeito é voltar e ocupar de novo”, lamenta a dona de casa Tauana Oliveira da Silva, 26, que vivia com o esposo e os filhos de quatro e cinco anos numa casa de propriedade da Arquidiocese de São Paulo, que havia sido ocupada em julho de 2020 por ao menos 15 pessoas. Na manhã desta quarta-feira (17/11), ela conta que as famílias foram surpreendidas pela presença de um oficial de justiça, um caminhão de mudança e policiais militares para que saíssem do imóvel localizado na Rua Professora Sebastiana da Silva Minhoto, no bairro do Tatuapé, na zona leste da capital paulista. “A gente sabia que tinha uma reintegração, mas não sabia que ia acontecer hoje”, afirma.
“Tem criança, tem mulher grávida, e não recebemos nenhum tipo de ajuda, nem da Igreja, nem da Prefeitura”, denuncia Tauana. No momento em que falava com a reportagem, ela estava no 31º DP (Vila Carrão) após ter sido levada por policiais militares sob alegação de desacato. “Eu estava fumando uma pontinha de maconha para me acalmar, porque a gente está vivendo de doação, um desespero, o policial mandou jogar no chão e pisar para apagar, eu fiz isso, mas começou um esculacho, me xingaram, mandaram tomar no cu”, afirma. “Eu fui para longe e falei ‘policial de merda’, ele ouviu e já me levou para a viatura”.
Ela conta que passou a morar na ocupação por conta do desemprego e que o espaço estava ocioso. “A gente faz um bico aqui e ali, de reciclagem, ajuda com carga e descarga, mas não temos condições”. À Ponte, o marido dela disse que na última sexta-feira (12/11), procuraram a Defensoria Pública e que um advogado que teria sido designado só teve contato com o conteúdo do processo pouco tempo antes da reintegração. Nos autos, que a reportagem acessou, ainda não consta nenhuma manifestação em prol das cinco famílias, nem de advogado ou da Defensoria Pública.
A vendedora de balas Jacqueline Silva Rodrigues, 35, conta que ainda estava grávida quando passou a morar na casa da Igreja. “Meu filho agora tem um ano e dois meses, a casa estava abandonada caindo aos pedaços e o oficial de justiça não veio aqui para dizer que a gente tinha um prazo, só mandaram sair”, lamenta. Ela ainda tem uma filha de 10 anos e outro de 15 anos. “Os policiais foram truculentos, apressavam a gente para sair como se fossem donos da casa, gritavam com a gente”. Enquanto falava com a reportagem, tentava buscar algum lugar para ficar, seus pertences foram todos colocados na rua em frente ao Grêmio Recreativo Cultural Social Batuq do Glicerio. “O que dá para a gente ver é se tem outra ocupação porque não tem como achar um lugar, é uma covardia, nem a Igreja ajudou a gente”.
A Arquidiocese entrou com a ação judicial com pedido de reintegração de posse em novembro do ano passado, solicitando a saída imediata dos ocupantes e, caso a solicitação fosse considerada procedente, que fossem condenados a pagarem os honorários, que são os serviços advocatícios prestados. Na petição, informou que o imóvel era usado como “almoxarifado/depósito” e que o local servia como “ponto de apoio às atividades sociais e pastorais” da Paróquia São Judas Tadeu. O imóvel pertence à entidade desde 1988.
Na petição, não há menção sobre auxílio aos ocupantes ou solicitação de assistência social ao poder público. “Cabe salientar que a Requerente [Arquidiocese] é pessoa jurídica sem fins econômicos, portanto não possui o lucro e acumulação de capital como princípios que norteiem suas atividades, pelo contrário, a Requerente por ser uma entidade religiosa que tem por escopo a realização de atividades religiosas, educacionais, culturais e de assistência social, finalidades previstas em seu estatuto social, e para as quais o imóvel sempre foi utilizado, antes de chegar ao estado atual, e serão utilizados, futuramente, após a retomada da posse”, escreveram os advogados José Rodolpho Perazzolo, Leandro da Costa Machado e Ricardo Gomes Ferreira, que representam a instituição.
No registro do boletim da PM quando da ocupação, em 2020, um dos ocupantes confirmou que sabia que o local pertence à Igreja, mas não tinha onde morar e, por isso, entrou com outras 15 pessoas, incluindo crianças.
Em 30 de março, o juiz Erasmo Samuel Tozetto, da 5ª Vara Cível do Foro Regional VIII – Tatuapé, determinou a expedição de mandado de reintegração de posse, porém, manteve o cumprimento suspenso por causa da pandemia, com base na recomendação nº 90 do Conselho Nacional de Justiça que prevê “cautela [para] o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, sobretudo nas hipóteses que envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica”. Na ocasião, os ocupantes também não haviam sido intimados e identificados e foi determinado prazo de 15 dias para essa intimação, sendo que o deslocamento do oficial de justiça enquanto perdurasse a fase vermelha deveria se restringir aos casos urgentes.
O oficial de justiça João Teodoro da Silva Cambur tentou cumprir o mandado em agosto e setembro, mas a reintegração não ocorreu, segundo ele escreve no processo, porque “o autor ou quem o represente não fornecer (sic) os meios necessários”. Ou seja, a Arquidiocese não havia feito o pagamento de despesas para a condução do oficial de justiça até o local. As últimas movimentações do processo é a expedição desses mandados em 21 de setembro, mas sem data e horário para cumprimento. A reportagem questionou o Tribunal de Justiça sobre a reintegração, cuja assessoria declarou que “a data para a diligência é agendada pela parte autora [Arquidiocese] e o Oficial de Justiça encarregado para o cumprimento da ordem”.
Em outubro, após ter o veto derrubado pelo Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou lei que suspende despejos na pandemia até 31 de dezembro de 2021.
O que diz a Arquidiocese
A Ponte procurou por e-mail e telefone a entidade, mas não houve resposta.
O que diz a Defensoria Pública
Também entramos em contato com o órgão sobre as famílias terem procurado auxílio jurídico. A assessoria informou que “procedeu a indicação de advogado conveniado para atuação no processo” e que as informações devem ser buscadas com ele.
As famílias com as quais a Ponte conversou disseram não ter o contato. Questionamos à Defensoria se poderia fornecer nome e telefone do advogado, que respondeu que foi fornecido a um dos ocupantes. A reportagem, porém, não conseguiu localizá-lo.
O que diz a prefeitura
Questionamos o governos municipal se havia conhecimento sobre a reintegração de posse e se foi solicitada assistência social às famílias. A assessoria respondeu que não foi intimada a acompanhar o processo:
A Prefeitura de São Paulo, por meio da Procuradoria Geral do Município (PGM), informa que esse processo judicial se trata de reintegração de posse ajuizada pelo proprietário contra os ocupantes. A Municipalidade de São Paulo não é parte do processo e não foi intimada para acompanhar a ação.
A Secretaria Municipal de Habitação informou que as famílias poderão realizar o cadastro da COHAB-SP para inserção nos programas habitacionais do município.
O que diz a polícia
A reportagem questionou a atuação dos policiais militares no local, a In Press, assessoria terceirizada da Secretaria de Segurança Pública, encaminhou a seguinte nota:
O caso foi registrado como desacato pelo 31º DP. Após ouvir todas as partes, a autoridade policial determinou a elaboração do boletim de ocorrência, que foi encaminhado ao Juizado Especial Criminal (JECRIM).
Reportagem atualizada às 17h50, de 17/11/2021, para incluir resposta da Defensoria.
Atualização às 10h43, de 18/11/2021, para incluir posicionamentos da SSP e da Prefeitura.