País foi condenado por assassinato de trabalhador rural durante repressão da PM no Paraná e operação policial em São Paulo que deixou 12 mortos; casos têm mais de 20 anos e especialistas explicam quais são as consequências
Na última semana, o governo brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) a cumprir uma série de medidas em relação a dois casos de violência policial que aconteceram há mais 20 anos. A Ponte entrevistou especialistas em direito internacional sobre as consequências das sentenças.
A primeira foi a emboscada planejada e executada por mais de 50 policiais do extinto Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância (Gradi), da PM paulista, com auxílio de dois detentos, em 5 de março de 2002. A ação que deixou 12 pessoas mortas ficou conhecida como Operação Castelinho, já que o cerco da PM ao veículo que elas estavam ocorreu na praça de pedágio da Rodovia José Ermírio de Moraes que era conhecida como Castelinho, no estado de São Paulo, e tinha como alvo suspeitos de integrarem a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). As vítimas receberam um aviso falso de que um avião com dinheiro que chegaria no aeroporto de Sorocaba, no interior, e foram incentivadas a planejar um roubo.
A Corte entendeu que o Estado cometeu uma “execução extrajudicial” dessas pessoas e que a investigação continha “falhas graves”. Na sentença, determinou o cumprimento de “medidas de reparação”:
- criar um Grupo de Trabalho com a finalidade de esclarecer a atuação do Gradi no estado de São Paulo, incluindo as circunstâncias da execução extrajudicial das vítimas diretas do presente caso, e realizar recomendações que previnam a repetição dos fatos como os do presente caso;
- oferecer tratamento médico, psicológico e/ou psiquiátrico aos familiares das vítimas;
- realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional;
- adotar as medidas necessárias para garantir a plena implementação de dispositivos de geolocalização e registro de movimentos dos veículos policiais e dos policiais no estado de São Paulo;
- adotar as medidas necessárias para que se conte com um marco normativo que permita que todo agente policial envolvido em uma morte resultante de uma ação policial seja separado temporariamente de suas funções ostensivas até que se determine a conveniência e pertinência de sua reincorporação por parte das corregedorias;
- adotar as medidas necessárias para suprimir a competência da Polícia Militar para investigar delitos supostamente cometidos contra civis;
- garantir que o Ministério Público do Estado de São Paulo conte com recursos econômicos e humanos necessários para investigar as mortes de civis cometidas por policiais civis ou militares;
- pagar as quantias fixadas na Sentença a título de dano material, imaterial, custas e gastos.
A segunda condenação foi a ação da Polícia Militar que matou o camponês Antonio Tavares Pereira e afetou outros 197 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), dos quais 69 ficaram feridos, durante um protesto pela reforma agrária em Campo Largo, região metropolitana de Curitiba, no Paraná, em 2 de maio de 2000.
A Corte considerou que o Estado foi “responsável internacionalmente pelo uso desproporcional da força empregada pela Polícia Militar”, o que resultou “na violação dos direitos à vida, à integridade pessoal, à liberdade de pensamento e expressão, de reunião, da criança, de circulação e residência, às garantias judiciais e à proteção judicial, em prejuízo de Antônio Tavares Pereira, seus familiares e os demais trabalhadores”. Por isso, mandou o governo brasileiro:
- oferecer tratamento médico, psicológico e/ou psiquiátrico gratuito aos familiares de Tavares Pereira e às vítimas feridas que o requeiram;
- realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional;
- adotar todas as medidas adequadas para proteger de maneira efetiva o Monumento Antônio Tavares Pereira no local onde está construído;
- incluir um conteúdo específico no currículo permanente de formação das forças de segurança que atuam no contexto de manifestações públicas no estado do Paraná;
- adequar seu ordenamento jurídico no que diz respeito à competência da Justiça Militar;
- pagar as quantias fixadas na sentença a título de indenização por dano material, imaterial, custas e gastos.
Há itens nas sentenças que têm prazo de cumprimento, como de publicar o teor da sentença em páginas oficiais dos governos federal e estadual, de realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, de que mortes pelas polícias sejam investigadas por órgão que não seja das forças policiais, entre outros. Todas elas têm indicação de prazo de um ano a partir do momento em que o governo brasileiro é notificado da decisão.
Com isso, periodicamente o Estado vai enviar um relatório à Corte sobre o cumprimento ou não desses itens e, a depender da medida, precisa de participação das partes que foram responsáveis por enviar o caso à Corte, como explica Eduardo Baker, coordenador de programa da organização Justiça Global, uma das entidades que representaram as vítimas no caso Antonio Tavares. “Uma das medidas que tem é que o Estado faça um ato de reconhecimento público da responsabilidade internacional. Esse ato, a sentença da Corte fala, tem que ser construído em diálogo e em concordância com as vítimas e seus representantes. Então, esse é um exemplo de um ponto que, para ir para frente, vai ter que ter um diálogo entre o peticionário, que é a Justiça Global, que representa o MST, e o Estado brasileiro”, afirma.
E se o Estado não acatar a decisão? Isso não significa que a Corte vai determinar a prisão do presidente da República ou aplicar algum tipo de sanção. “O caso pode ser encaminhado à Assembleia Geral da OEA [Organização dos Estados Americanos, da qual o sistema Interamericano faz parte] pela Corte Interamericana e o Brasil, em tese, pode chegar a receber algum tipo de moção de repúdio, algum tipo de declaração por esse não cumprimento dentro do prazo”, prossegue ele.
Daniel Cerqueira, diretor de programa da ONG Due Process of Law Foundation (DPLF), aponta que esse tipo de condenação gera constrangimento perante à comunidade internacional. “Isso acaba pesando no prestígio brasileiro: o Brasil está sendo apresentado para a comunidade internacional como um país que desacata ordens de um órgão tão importante como a Corte Interamericana de Direitos Humanos”, aponta.
Nesses dois casos, a Corte não determinou a reabertura das investigações, como ocorreu na chacina da Favela Nova Brasília, realizada em 1994 e que teve sentença em 2017 — o caso estava sem solução e foi considerado impune. Depois da sentença da Corte, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) acusou cinco policiais, em 2019, pelas mortes de 13 pessoas e dois deles pelo estupro de três adolescentes ocorridos em 18 de outubro de 1994 na favela Nova Brasília, uma das 15 comunidades que compõem o Complexo do Alemão na zona norte da capital fluminense. Os policiais acusados pelos homicídios acabaram absolvidos em júri popular em 2021.
No caso da Operação Castelinho e da morte de Antonio Tavares, houve investigação tanto na Justiça Comum quanto na Justiça Militar. Sobre o caso de São Paulo, houve arquivamento na Justiça Militar e absolvição dos 55 acusados no Tribunal de Justiça de São Paulo, apesar dos recursos impetrados pelo Ministério Público.
Já no Paraná, a Justiça Militar arquivou o caso por entender que o policial agiu em legítima defesa. Na Justiça Comum, o Ministério Público fez uma acusação contra o PM por homicídio doloso (com intenção de matar), mas os defensores dele entraram com um recurso solicitando o arquivamento porque a jurisdição militar já tinha decidido sobre o caso, o que acabou sendo acatado pelo Tribunal de Justiça do Paraná.
Nesses três casos, a Corte determina que crimes cometidos por policiais contra civis, independentemente de serem com ou sem intenção, não sejam investigados pela mesma corporação e que a Justiça Militar não julgue policiais militares por crimes cometidos contra civis.
No ordenamento jurídico brasileiro, se policiais militares cometem crimes dolosos contra a vida (com intenção ou quando se assume o risco), o caso é julgado por um Tribunal do Júri. Mas se for constatado homicídio culposo (sem intenção) cometido por um PM, por exemplo, quem julga é a Justiça Militar. A Ponte já reportou casos de lesão corporal, estupro e homicídio praticados por PMs contra civis que acabaram julgados por um tribunal militar.
“Qual o problema disso? Na prática, até você descobrir ou definir que é um crime doloso contra a vida, a PM pode investigar, que foi o caso do Antônio Tavares”, enfatiza Eduardo Baker.
Cesar Muñoz, diretor-executivo da ONG Human Rights Watch (HRW) no Brasil, alerta que as determinações da Corte visam a idoneidade das investigações. “O que acontece frequentemente é que você tem dois processos andando ao mesmo tempo sobre os mesmos fatos. Então, é um problema da investigação. O direito internacional e a própria Corte Interamericana têm muita jurisprudência dizendo que a Justiça Militar não deve ser aplicada em casos de abusos contra civis. É um princípio básico e o Brasil está violando esse princípio”, sinaliza.
Não só a questão da Justiça Militar, mas também a investigação independente de crimes cometidos pelas forças policiais que sejam conduzidas pelo Ministério Público é algo que entidades de direitos humanos também requerem há muito tempo. Um exemplo são as mortes nas operações policiais na Baixada Santista desde o ano passado. A HRW elaborou um relatório em que identificou “falhas graves” de ausência de perícia ou de perícia precária na apuração inicial das mortes que aconteceram entre julho e agosto de 2023, no âmbito da Operação Escudo, que foi deflagrada após o assassinato de um soldado das Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), força especial da PM paulista.
Agora, com as novas edições das operações, chamada de Verão mas com mesmo modus operandi, na Baixada Santista, já se somaram ao menos 48 mortos, 20 a mais que a do ano passado e em menor período de tempo. Entidades de direitos humanos já fizeram ao menos três denúncias internacionais sobre a violência policial nessas operações, da Organização das Nações Unidas (ONU) à Corte IDH.
Na semana passada, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) menosprezou as denúncias e defendeu as operações. “Sinceramente, nós temos muita tranquilidade com o que está sendo feito. E aí o pessoal pode ir na ONU, pode ir na Liga da Justiça, no raio que o parta, que eu não tô nem aí”, declarou.
“As declarações do governador Tarcísio são deploráveis”, critica Muñoz. “Ele mostrou total insensibilidade e desprezo pela vida das pessoas mortas durante as operações. E eu acho que a política atual do governo do estado de São Paulo põe em perigo não só as pessoas que moram nessas comunidades como a própria polícia.”
Daniel Cerqueira, da DPLF, ressalta que o Brasil é signatário de tratados internacionais, o que implica acatar decisões da Corte. “O Brasil, sendo parte desses tratados não tem outra opção. A única maneira de desacatar deliberadamente as decisões desses tratados é denunciar o tratado”, explica. Esse é o primeiro passo de formalização para que o Estado não faça mais parte do tratado que havia aderido.
“E para você ter uma dimensão, os únicos dois Estados recentes da América Latina que denunciaram, seja a Carta da OEA ou a Convenção Americana de Direitos Humanos, foram a Venezuela e a Nicarágua”, aponta Cerqueira. “A não ser que o Tarcísio queira estar mais ou menos no mesmo nível do Nicolás Maduro e do Daniel Ortega [presidentes desses países], já que, obviamente, a direita brasileira tanto critica como ditaduras. Então, eu acho que esse tipo de declaração denota uma vocação antidemocrática do Tarcísio.”
Os especialistas apontam que o direito internacional e os tratados de direitos humanos que o Brasil é signatário são instrumentos de pressão externos que possam influenciar na dinâmica interna. Um exemplo são tribunais, como o Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando a jurisprudência internacional sobre os casos brasileiros para fundamentar decisões. O Congresso Nacional, nos projetos de lei, também podem se basear nesse material.
No caso de trabalhadores rurais assassinados, o Brasil já foi condenado em três casos e há ainda dois pendentes de julgamento. Para Eduardo Baker, houve poucos avanços na questão agrária, mas ainda faltam mudanças estruturais, sendo que uma das emergências é a proteção das pessoas que atuam nesse campo. “A sentença da Corte Interamericana, no caso com Antônio Tavares, não vai contribuir concretamente muito para a reforma agrária. Mas a gente espera, como todos esses casos já julgados e ainda a serem julgados, que possam contribuir pelo menos para garantir que esse movimento de luta possa continuar fazendo a luta pela reforma agrária sem serem criminalizados e mortos”, analisa.
“Infelizmente o Brasil vai continuar provavelmente sendo condenado nesses casos enquanto não existirem reformas no âmbito normativo e também das políticas públicas”, avalia Daniel Cerqueira. “E nesse caso, talvez a forma mais simples de ocorrer essa mudança é o próprio STF assumir de alguma maneira o controle de convencionalidade, que é essa obrigação que todo Estado parte da Convenção Americana tem de ajustar suas normas e também suas políticas públicas aos parâmetros do Sistema Interamericano de Direitos Humanos”.
O que diz o governo federal
No mesmo dia em que as sentenças foram publicadas, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Silvio Almeida, reconheceu que as violações de direitos sentenciadas contra o Brasil são desafios centrais para as políticas de direitos humanos tanto sobre a Operação Castelinho quanto a morte do camponês Antonio Tavares.
“Não podemos tolerar, em nenhum tempo, o uso da força desproporcional por parte de agentes do Estado brasileiro. É estarrecedor perceber, em uma análise de décadas, que os problemas de ontem persistem. O governo federal está comprometido em garantir a defesa dos direitos de toda a população brasileira”, declarou em nota pública.