Luizão lutava para regularizar terra indígena e havia sido ameaçado por fazendeiros, mas polícia trabalha apenas com hipótese de latrocínio
Na manhã de 26 de novembro último, Luiz Viana de Lima, 54 anos, índio Tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, sul da Bahia, foi morto em uma emboscada. Ele retornava para casa, deslocando-se por uma estrada vicinal, após deixar sua esposa na vizinha cidade de Buerarema. Levou um tiro nas costas, dois no peito e um na cabeça. Até o momento, ninguém foi indiciado.
Luizão, como era mais conhecido, vivia na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, uma área de cerca de 47 mil hectares que se estende por porções dos municípios de Buerarema, Ilhéus e Una. O processo de demarcação da terra indígena, habitada por aproxim
Em 2012, o procedimento demarcatório chegou às mãos do então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, para que ele o encaminhasse às etapas finais: homologação da terra indígena, pagamento das indenizações devidas a ocupantes não indígenas e reassentamento dos não índios com perfil para a reforma agrária. Desde então, porém, o processo está engavetado, sem justificativas.
No quadro da omissão por parte do governo federal, os indígenas organizaram-se para recuperar seu território. Desde 2004, vêm realizando ações conhecidas como retomadas de terras, que consistem na apropriação de fazendas no interior da delimitação e que se encontravam em posse de não índios.
A mobilização tupinambá, contudo, desatou um agudo processo de repressão e criminalização, com sucessivas ações de reintegração de posse. Em janeiro de 2014, três bases foram instaladas na terra indígena, dando-se início à ocupação militar permanente do território, que se estenderia por mais de um ano. No mês seguinte, cerca de 500 soldados do Exército foram deslocados à ár
Em declaração ao Ministério Público Federal (MPF), lavrada em 28 de novembro, Noêmia Silva de Jesus de Lima, 50 anos, viúva de Luizão, informou que ele e outros indígenas da Serra do Padeiro foram ameaçados de morte seguidas vezes. Ela também elencou possíveis mandantes e executores do crime, enfatizando sua conexão com a disputa fundiária.
A assessoria de imprensa da Polícia Civil baiana afirmou à Ponte que o delegado encarregado da investigação trabalha apenas com a hipótese de latrocínio, já que Luizão teve sua motocicleta roubada, e desconsidera a possibilidade de qualquer ligação do crime com o conflito de terras. Noêmia questiona: “Não levaram as coisas que estavam com ele no corpo, não. O dinheiro estava na carteira. Não levaram relógio, não levaram carteira, não levaram nada”.
No termo de declaração, consta ainda que a Polícia Federal (PF) em Ilhéus – que Noêmia procurou, acompanhada por um funcionário Funai – recusou-se a registrar ocorrência, alegando que o caso seria de competência da Polícia Civil.
Por determinação da Constituição de 1988, cabe à Justiça Federal processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas, decorrendo daí a atribuição da PF. Antes disso, o decreto nº 73.332/1973 já enquadrava crimes contra indígenas como competência da PF. A suspeita de que o assassinato de Luizão possa ter envolvimento com sua atuação no movimento indígena, por si só, poderia justificar o envolvimento da PF.
Luizão não é o primeiro Tupinambá assassinado no contexto da luta pela terra: são dezenas de mortes não esclarecidas. O relatório Violê
Em maio, Adenilson da Silva Nascimento (conhecido como Pinduca) foi morto em uma emboscada, quando retornava para casa acompanhado da mulher e filhos. Em setembro, Jorge Carlos Amaral do Nascimento e Maraci Oliveira da Costa foram encontrados em um matagal, decapitados. Em outubro, Uilson Conceição dos Santos foi morto a tiros, na porta de sua casa.
“Nós andamos muito, para tentar conseguir a vida”
A história de Luizão assemelha-se, em grandes traços, à de muitos Tupinambá. Filho de mãe indígena e pai sertanejo, nasceu na Serra das Trempes, região vizinha à Serra do Padeiro. Lá era o lugar de sua avó materna, seu “tronco velho”, uma índia conhecida como Maria Cundiúba. Ainda jovem, Luizão assistiu à diáspora dos parentes, acossados pela penetração de não índios, que incorporou ao mercado fundiário um território antes livre. Seus irmãos espalharam-se.Quando completou 23 anos de idade, foi sua vez de partir.
Desatado no final do século 19, o avanço da fronteira agrícola no sul da Bahia, empurrada pela cacauicultura e pelo turismo, ganhou novo fôlego a partir da década de 1920, com a constituição de chefes políticos locais, os famosos “coronéis”. Sob seus auspícios, a titulação de terras foi amplamente empregada para concentrar a posse fundiária. Nas serras do Padeiro e das Trempes, tais processos aconteceram durante todo o século 20. Com o apoio de delegados de terras, agrimensores, funcionários de cartórios e delegados de polícia, não indígenas puseram em marcha violentos mecanismos para esbulhar indígenas e camponeses.
A trajetória de Noêmia, por sua vez, ecoa a sina comum a muitas famílias camponesas pobres, que, com o parcelamento da terra ao longo das gerações, são forçadas a deixar seus sítios, insuficientes para o sustento. Ela nasceu em Piabanha, no interior do município de Maraú, também na Bahia, e chegou à Serra do Padeiro aos quatro meses de idade. Ali, a família obteve duas posses e Noêmia cresceu trabalhando na roça, ao lado dos pais.
Logo após se casarem, Luizão e Noêmia ouviram dizer que em Rondônia “se arrastava dinheiro com rodo”. Mudaram-se para lá, apenas para encontrar as roças de cacau arrasadas pela vassoura-de-bruxa. “Nós andamos muito, para tentar conseguir a vida, que eu não tinha nada”, lembrava Luizão. Depois de Rondônia, foi a vez de São Paulo. O que ganhavam, porém, só dava para comer. De volta ao sul da Bahia,instalaram-se na parcela herdada por Noêmia. E Luizão passou a trabalhar para fazendeiros, recebendo na “diária”. O sítio onde viviam era pequeno demais para o sustento: 2,5 hectares.
Antes de se somar à luta indígena, o casal sustentava-se plantando
Os dois pouco estudaram, mas garantiram que os filhos fossem à escola. Noêmia sabia que, não dispondo de terras suficientes, Luizão e ela não teriam condições de evitar que os filhos se tornassem mão-de-obra precária em fazendas de cacau. A única alternativa era deixá-los partir: Brusque (Santa Catarina). “Eles iam ficar aqui, batendo biscó para os outros?! Não!” Fazia um bom tempo que os filhos não iam à Serra do Padeiro, quando receberam o chamado informando que o pai estava morto.
“Eles falavam que iam tirar os índios debaixo de pau”
“Luiz não ia para canto nenhum, ele só ia para a roça”, lembra Noêmia. Quando, no dia 26, ele se ofereceu para levá-la a Buerarema, para que ela não viajasse no ônibus rural, ela se inquietou. “Eu falei bem assim: ‘Cuidado!’. O povo de Buerarema é vingativo. Mas ele não estava errado, ele agiu certo: ele tinha de ir à cidade. A cidade é de todo mundo.” Desde então, Noêmia não sai da aldeia. “Eu tenho direito de andar em Buerarema. Mas, se eu for para lá, o povo vai pegar e me matar.”
No início do processo de retomada, Noêmia chegou a participar de reuniões organizadas por não índios contrários à demarcação. Por ser uma não indígena casada com um indígena, ela tinha dúvidas sobre o que aconteceria consigo, caso a mobilização tupinambá fosse adiante. Segundo ela, os frequentadores das reuniões
Certo dia, ele juntou forças. “Eu pensei: ‘Sabe de uma coisa? Eu já sou um homem de maior, eu vou botar a minha cabeça onde eu quero, eu vou entrar para dentro’.” Quando Noêmia decidiu que não participaria mais das reuniões na cidade e que apoiaria o esposo em sua decisão de entrar no movimento indígena, foi acusada por membros da frente contra a demarcação de estar “em cima do muro”. “Eles falavam que iam tirar os índios da terra debaixo de pau”, lembra. “Mas eu falei para Luiz: ‘Você tem que pegar sua origem. Sua mãe é índia, você tem que pegar sua origem. Se eu fosse, eu pegava. Nem que eu morresse: eu metia a cara’.” Em agosto de 2013, o casal integrou-se à aldeia e passou a trabalhar nas roças de uma fazenda recém-retomada.
Naquele mesmo mês, Buerarema foi tomada por violentos atos contra a demarcação. Um veículo da escola indígena foi incendiado e outro, alvejado em uma emboscada – dois estudantes não indígenas acabaram feridos por estilhaços de vidro. Indígenas foram roubados e agredidos fisicamente. Dezenas de casas pertencentes a famílias tupinambá foram derrubadas e queimadas. Veículos de órgãos oficiais foram retidos e incendiados pelos manifestantes, que depredaram uma agência do Banco do Brasil e saquearam uma unidade da Empresa Baiana de Alimentos (Ebal), estatal que comercializa víveres a famílias de baixa renda.
“Daquele quebra-quebra para cá, vieram as ameaças, ameaças muito fortes, para nós dois”, conta Noêmia. “Ficavam dizendo que vinha pistoleiro pegar nós dois aqui.” Em Brusque, a filha do casal, que dera à luz havia pouco, “ficou em pânico”. Quando lembrava desse tempo, Luizão resumia: “Foi uma danação”. Segundo Noêmia, um fazendeiro tentou agredi-la na feira de Buerarema. Uma casa que o casal vinha construindo foi completamente destruída. Assustada, ela
Meses depois, a situação se distendeu. Imersos na rotina do movimento indígena, Luizão e Noêmia estavam felizes. No começo de junho, convidaram a aldeia toda para uma festa de devoção de Noêmia – mataram um garrote, mesa farta, laranjas-de-umbigo que Luizão ia buscar nas escarpas da serra, onde era possível encontrar as mais doces. “Há muito tempo, se eu soubesse que esse movimento era assim, eu tinha entrado. Depois que eu entrei no movimento, as portas se abriram pra mim. Eu estou satisfeito, graças a deus”, disse Luizão, sorriso largo, seis meses antes de ser assassinado.
Os filhos querem que Noêmia se mude para Santa Catarina: estão preocupados. Mas ela não quer deixar a aldeia, onde foi acolhida pelos Tupinambá. São quase 50 anos de memórias fincadas no pé de serra onde ela enterrou Luizão.
Outro lado
A Ponte Jornalismo entrou em contato, por e-mail, com a Divisão de Comunicação Social da Polícia Federal e com a Comunicação Social da Superintendência Regional da Polícia Federal na Bahia, para saber por que a PF não entrou na investigação da morte de Luiz. Até o momento, ninguém respondeu.
(*) Daniela Fernandes Alarcon é doutoranda e Aline Moreira Magalhães é doutora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ. Helen Catalina Ubinger é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da UFAM