Indígenas Guarani Kaiowá acusados de matar policiais no MS são julgados em SP

    Cacique Carlito e outros quatro indígenas são acusados da morte de dois policiais civis do Mato Grosso do Sul, em 2006; no primeiro dia de julgamento, testemunha de acusação diz que cacique ‘nem é índio’

    Cacique Carlito responde pela morte de dois policiais junto com outros quatro indígenas Guarani Kaiowá |Foto: Ruy Sposati/Cimi

    Nesta terça (04/06), pés descobertos ocuparam o 14º andar do Tribunal Regional Federal da 3ª Região de São Paulo, na Avenida Paulista, zona oeste da capital. O inverno paulista não intimou os indígenas, que escolheram, em sua maioria, chinelos de dedos para assistir o primeiro dia do júri de cinco indígenas Guarani Kaiowá.

    De costas para a plateia, estão sentados os réus: Carlito de Oliveira, Ezequiel Valensuela, Jair Aquino Fernandes, Lindomar Brites de Oliveira e Paulino Lopes. Os cinco são acusados de dois homicídios e uma tentativa de homicídio, em Dourados, no Mato Grosso do Sul. O caso aconteceu no dia 1º de abril de 2006.

    Depois de 13 anos de processo, a defesa solicitou transferência para São Paulo, alegando imparcialidade na ação e a Justiça concedeu o pedido. Serão quatro dias de julgamento na Justiça, até sexta-feira (7/6). De um lado, existe a versão de que os policiais entrariam na terra com a intenção de assassinar os índios. Do outro, que os policiais entraram na área por engano e foram atacados pelos réus.

    Em 1º de abril de 2006, policiais civis e indígenas entraram em confronto na aldeia Passo Piraju, na região de Porto Kambira, no Mato Grosso do Sul. O fato acarretou na morte de Rodrigo Pereira Lorenzato e Ronilson Magalhães. A terceira vítima é Emerson José Gadani que, apesar dos ferimentos, sobreviveu.

    Logo após o ocorrido, o cacique Carlito de Oliveira e outros quatro indígenas foram presos, permanecendo encarcerados de 2006 até 2012, quando passaram a cumprir a pena em uma estrutura da Funai próxima da aldeia. Seguindo o artigo 56 do Estatuto do Índio e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que permite regime semiaberto aos indígenas.

    No dia que abriu o julgamento, a juíza Andreia Moruzzi informou que a primeira parte será oitiva de testemunhas de acusação por videoconferência. O júri está composto por seis mulheres e um homem, todos atentos às falas das sete testemunhas, em audiência que começou com atraso pela manhã e encerrou perto das 20h.

    As testemunhas de acusação

    A primeira testemunha é Carlos Marques. Segundo depoimento, ele estava com a esposa e a filha em uma caminhonete própria. Os três seguiam na MS-156 quando viram um tumulto na região conhecida como Porto Cambira. Quando a caminhonete se aproximou, Carlos percebeu que eram indígenas. O veículo era guiado por sua filha que, na época, era menor de idade e não tinha carteira de habilitação.

    Ainda no relato ele disse que, ao chegar perto do grupo, um dos índios teria se aproximado da janela do carro com uma pistola cromada e dito “polícia matou polícia”. Depois mandou a família “vazar dali”. Ele informou também que viu na beira da estrada um homem com as mãos para trás e um buraco na barriga. Provavelmente seria Gadani, o único sobrevivente. “Nunca passou pela minha cabeça que poderiam ser policiais”, comenta.

    O advogado de defesa perguntou como foi feito o reconhecimento na época dos fatos. A dúvida era se cumpriu as determinações impostas pelo artigo 226 do Código Penal ou se houve sugestionamento. Questionado se ele reconheceria Carlito, a testemunha alega que “já passou muito tempo”, mas pessoalmente poderia lembrar. Ele afirma também que nunca passou por problemas pessoais com o cacique. “Nunca conversei [com o Carlito]. Nem falei nem se é bonito ou feio”, explica Marques.

    Índios Guarani Kayowá do Mato Grosso do Sul acompanham julgamento pela Justiça Federal de SP | Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    Logo depois de avistar o tumulto e conseguir sinal do celular, Carlos tentou contato com alguns amigos, a fim de pedir ajuda. Segundo ele, como o fato ocorreu no dia 1º de abril, todos acreditavam em uma brincadeira do dia da mentira. A circunstância fez com que Marques ligasse para o delegado Odovaldo Pompeu de Oliveira. Marques alegou que a fazenda ocupada tem cerca de mil hectares. Da área, o acampamento indígena ocupa 10.

    ‘Pra mim nem índio ele é’

    Odovaldo Pompeu sofre de hipertensão. Ao se sentar na cadeira, para início do depoimento, o delegado aposentado da Polícia Civil sul-mato-grossense solicitou a busca pelos seus remédios. A juíza negou, fazendo a testemunha se colocar “à disposição”.

    Em 2006, Odovaldo, conhecido pela região como Telê, fazia parte do Grupo de Investigações Gerais na área de Dourados. Quando recebeu o telefonema de Carlos, ele se dirigiu ao 1º Distrito Policial da cidade e comunicou a delegada plantonista, Magali Leite, sobre o ocorrido. Em cerca de meia hora, ele, a delegada e o perito Jean chegaram ao local dos assassinatos. Os três estavam em uma viatura descaracterizada.

    Chegando no local, Odovaldo deu voz de prisão a um casal indígena. Também avistou uma das vítimas. “O agente Rodrigo foi tirado da viatura e jogado no rio, com perfuração de arma branca”, comentou. O delegado aposentado confirma – mesmo sem saber explicar – que nenhum dos agentes efetuou disparo. Segundo relato, os policiais estavam portando pistola, submetralhadora e uma espingarda calibre 12.

    Odovaldo diz que o proprietário da fazenda havia contratado uma empresa de segurança privada e que a contratação inaugurou o conflito da equipe terceirizada e os indígenas. “Problema de invasão é grande, é bem provável que possa haver mais derramamento de sangue”, afirma. Sobre o cacique Carlito, o delegado de polícia aposentado diz que “nem é índio” e o chama de “Brasilguaio”, termo utilizado na região fronteiriça para se referir às pessoas que moram na terra de divisão do Brasil com o Paraguai.

    A delegada

    No dia 1º de abril de 2006, Magali Leite iniciava uma nova fase no trabalho. Vinda de Fátima do Sul, era o primeiro dia da delegada de polícia em Dourados. Por volta das 7h ela iniciou o plantão e não encontrou com Odovaldo, o plantonista anterior.

    Ao iniciar o dia, encaminhou a equipe para Chácara Pedroso, onde estaria escondido o autor de um crime ocorrido no dia anterior, envolvendo um pastor. Rodrigo, Emerson e Ronildo saíram com uma viatura descaracterizada em busca do assassino de um pastor. Segundo a delegada, eles entraram por engano “em um lugar de indígenas desaldeados”. Para Magali, os indígenas do acampamento não possuem etnias únicas e, portanto, não estão aldeados.

    Em depoimento, ela afirma que quando soube da fatalidade se dirigiu ao local. Magali diz que estava acompanhada da equipe, mas se lembra somente de Jean. Odovaldo estava de folga.

    A maioria dos indígenas usava chinelos de dedos, apesar do frio em torno de 15º C em São Paulo| Foto: Mariana Ferrari/Ponte Jornalismo

    O advogado de defesa questionou a escolha da viatura descaracterizada e o fato de Rodrigo estar vestindo uma bermuda, vestimenta fora do padrão policial. Magalia se exaltou e disse que os policiais estavam a “serviço”, e que tanto a viatura descaracterizada e a bermuda da vítima faziam parte da investigação – que tinha como objetivo a prisão do assassinato do religioso.

    “Não tem como a polícia prender com o giroflex. É pedir para o ladrão fugir”, responde. Magali diz que o investigado foi preso dois dias depois do ocorrido, em um local próximo da aldeia indígena, o que indica o serviço dos policias. Segunda a defesa a Chácara Pedroso fica há 25 quilômetros do local do crime.

    Réu em liberdade

    Márcio da Silva Lins também é réu da alusão, mas está em liberdade. Fora do júri por determinação da Justiça, ele acompanhou o desenrolar do processo e torce pela também liberdade dos colegas. Márcio foi preso no dia 2 de abril de 2006 e solto um ano depois. Fazia 15 dias que ele estava no acampamento em Dourados. Natural de Brasilândia, também em Mato Grosso do Sul, ele estava acompanhando o cunhado.

    Em conversa com a Ponte, ele disse que recebeu a voz de prisão dentro da aldeia e que a caminho do DOF (Departamento de Operações de Fronteira) sofreu diversas violências físicas. “Eu apanhei muito. Chegando lá apanhei mais”, relembrou.

    Quando chegou no departamento, Márcio não precisou de palavra alguma para saber que os colegas também haviam apanhado. Segundo ele, estavam com marcas roxas no corpo e com puxões de cabelo. Márcio diz que descobriu a violência em Dourados, que em Brasilândia todo mundo “é amigo” e convive em paz.

    Atualmente, Márcio busca saber sobre o seu processo e quanto tempo ainda vai demorar até chegar ao fim. “Espero que acabe logo, é difícil ser acusado do que não aconteceu”, finalizou.

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