Induzidas pela polícia e aceitas pela justiça, falsas memórias condenam inocentes

    ‘Nossa tradição punitivista desconfia de inocentes’, afirma o pesquisador Gustavo Noronha de Ávila, para quem os reconhecimentos sem provas se tornaram ‘uma forma rápida de encontrar um culpado’

    O vendedor ambulante Wilson Alberto Rosa passou 33 dias preso, no ano passado, após ser reconhecido por uma vítima de roubo. O reconhecimento foi feito a partir de uma única foto, via Whatsapp. Após a Ponte denunciar o caso, a Justiça soltou Wilson e reconheceu que era inocente. Então adolescente, João Ricardo Gouveia Bernardes passou um mês na Fundação Casa, em 2014, também vítima de um reconhecimento mal feito. Ele só foi solto após jornalistas da Ponte publicarem vídeos mostrando que o adolescente estava em casa na hora do crime — e que haviam sido ignorados pela Justiça.

    Os reconhecimentos mal feitos, que produzem falsas memórias nas vítimas e as levam a confundir pessoas inocentes com criminosas, são responsáveis por 70% dos casos de condenações de inocentes. Isso nos EUA. No Brasil, esses dados não existem. “É muitíssimo provável que tenhamos inocentes presos no Brasil. Apenas não sabemos quantos”, afirma Gustavo Noronha de Ávila, doutor e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e um dos principais especialistas brasileiros em psicologia do testemunho, autor do livro Falsas memórias e sistema penal: a prova testemunhal em xeque (Lumen Juris, 2013).

    Nesta entrevista, o pesquisador afirma que o reconhecimento por testemunhas se tornou uma das principais provas usadas pela polícia porque se revela “uma forma rápida” de encontrar um culpado. “É bastante dramático quando o sistema de justiça criminal segue utilizando de critérios norteados pelo improviso, pelo ‘aprender fazendo’, que acaba por caracterizar nossas práticas de coleta de prova penal dependente da memória”, diz.

    Ponte – O que são falsas memórias? Como elas podem prejudicar o processo penal e levar à condenação de inocentes?

    Gustavo Noronha de Ávila – Falsas memórias são distorções acerca das lembranças de uma determinada pessoa. Elas podem representar uma inovação completa em relação ao fato original, bem como se apresentarem na alteração de detalhes. São criadas através de processos naturais, endógenos, como o esquecimento decorrente do longo tempo entre a ocorrência do fato e a produção do elemento indiciário ou probatório, por exemplo. Também podem ser criadas através de uma sugestão externa. Isto é muito comum na repetição de perguntas, insistência acerca de determinada linha investigativa. Elas possuem, sim, a possibilidade de levar inocentes a condenações criminais ou mesmo à privação de liberdade antes do processo (prisões cautelares na fase investigativa, por exemplo). Nos EUA, o Innocence Project demonstrou que mais de 70% das condenações equivocadas são decorrentes de reconhecimentos mal feitos. No Brasil, ainda inexistem dados sistematizados sobre isto. O que se sabe é da distância gigantesca de nossas práticas diárias do sistema de justiça criminal, no que se refere às melhores práticas descritas há mais de 40 anos pela psicologia do testemunho. Em um relatório publicado pelo Ministério da Justiça (2015), isso ficou bastante evidente.

    Ponte – Existem números que apontem o papel das falsas memórias como causa de erros judiciários?

    Gustavo – Apenas existem números consolidados cientificamente nos EUA. Porém, existem diversos casos no Brasil demonstrando os perigos da coleta mal feita da prova penal dependente da memória. Um exemplo é o caso do dentista carioca André Biazucci Medeiros [vítima de sete acusações de estupro em 2014, todas falsas].

    Ponte – No Brasil, a prova testemunhal frequentemente é a principal, senão a única, prova usada para condenar ou inocentar alguém. Por que isso ocorre?

    Gustavo – Esse ponto é preciso. No referido relatório do MJ, do qual tive a oportunidade de participar da realização, sob a supervisão da professora Lilian Stein, ficou claro que a prova pericial nem sempre está disponível na fase da investigação. Existem demandas sociais no sentido da elucidação rápida de crimes, porém a estrutura dos institutos de perícia e médico-legais geralmente é precária. Existem poucos profissionais, que, apesar de sua excelência, não conseguem dar conta do volume de perícias a serem realizadas. Como consequência, a Policia Civil, muitas vezes, conclui o inquérito policial sem que as perícias estejam prontas. A fonte mais utilizada, então, acabará sendo a chamada prova penal dependente da memória (testemunhas, reconhecimentos, entrevistas com a vítima e com suspeitos). Além disso, existe uma cultura punitivista bastante acentuada em nosso meio. Em que pese existam importantes setores acadêmicos dando conta da necessidade de avaliarmos as causas da violência de forma mais ampla, a busca por culpados muitas vezes é informada por critérios de urgência e eficiência. Em um contexto onde os autoritarismos parecem ganhar cada vez mais força, a presunção de inocência passa a ser um entrave para a realização de justiçamentos instantâneos. O aparato policial, que está na ponta deste processo, não é imune a esses fluxos.

    Gustavo Noronha de Ávila | Foto: Divulgação

    Ponte – Qual é o risco que as falsas memórias podem produzir nesse contexto?

    Gustavo – Os riscos são enormes. É muitíssimo provável que tenhamos inocentes presos no Brasil. Apenas não sabemos quantos. Em estudos realizados no âmbito do Grupo de Pesquisa em Processos Cognitivos (GPPC), vinculado à Pós-graduação em Psicologia da PUC-RS, demonstramos os entraves judiciais existentes para o afastamento dessas condenações injustas. O erro judiciário/policial ainda é um tabu. É pouquíssimo discutido nas Faculdades de Direito, o que nos revela um quadro paradoxal. Existem entraves importantes à imposição de indenizações aos injustiçados criminalmente, o que acaba por afastar e atenuar a responsabilidade do Estado e seus agentes. No âmbito criminal, por exemplo, existe uma ação específica para afastar a condenação injusta: a revisão criminal. Ela é bastante restrita, pois relativiza uma das garantias constitucionais fundamentais, que é a coisa julgada. Por outro lado, em nossas pesquisas (ainda em fase de sistematização), estamos percebendo dificuldades enormes no provimento de revisões criminais. Em casos extremos, inclusive, são trazidas restrições não previstas no artigo 621 do Código de Processo Penal para a análise e julgamento dos pedidos. Isso poderia ser justificável em um contexto com alta adesão aos critérios da psicologia do testemunho, porém é bastante dramático quando o sistema de justiça criminal segue utilizando de critérios norteados pelo improviso, pelo “aprender fazendo”, que acaba por caracterizar nossas práticas de coleta de prova penal dependente da memória.

    Ponte – Recentemente, denunciamos na Ponte o caso dos irmãos Victor Hugo e Tiago Terkeli, que foram presos por roubo porque as vítimas, entre elas uma juíza, disseram tê-los reconhecido, embora os ladrões usassem máscara e luvas. A alegação das testemunhas é que reconheceram os jovens “pelos olhos”. No caso de Victor, esse reconhecimento valeu mais do que um documento oficial assinado pelo diretor da escola onde ele estuda afirmando que, na noite do crime, o jovem estava na sala de aula, a 83 quilômetros do local do roubo. Por que o reconhecimento tem um peso tão alto num processo?

    Gustavo – Conheço o caso do Victor apenas pelo que tem sido divulgado nas mídias. O que posso dizer, além das evidências já coletadas, diz respeito acerca de importante estudo de Nancy Steblay sobre o gun weapon effect (efeito da arma de fogo). Em pesquisa sobre o reconhecimento de pessoas, em caso de roubo, ela demonstrou como é extremamente difícil a vítima fixar elementos acerca do rosto da pessoa suspeita. Isto porque o foco irá ficar concentrado na arma de fogo, que representa uma ameaça presente à vida daquela vítima. O reconhecimento poderia ter peso importante no processo, desde que fossem seguidas algumas regras simples, decorrentes de anos de pesquisa da psicologia experimental: 1) instruções prévias à vítima/testemunha que irá reconhecer, dizendo que o suspeito pode ou não estar entre as pessoas a serem mostradas; 2) de 4 a 6 pessoas devem ser alinhadas para o reconhecimento, sendo que jamais deve ser feito o reconhecimento com apenas uma pessoa ou foto, em função de sua intolerável carga de sugestionabilidade; 3) as pessoas a serem alinhadas devem ser parecidas entre si; 4) quem organiza a linha de reconhecimento não deve saber quem é o suspeito para não influenciar quem está a reconhecer; e 5) gravação em vídeo de todo o procedimento. Em regra, estas instruções não são seguidas no contexto brasileiro. Por este motivo, as provas penais dependentes da memória deveriam ser vistas com cautela e desconfiança. O reconhecimento acaba sendo uma forma rápida de encontrarmos um culpado. Nossa tradição punitivista desconfia de inocentes, pois os rótulos são internalizados muito rapidamente. Isto demonstra a necessidade de uma cautela ainda maior. Em matéria jurídica, em tese, não temos uma hierarquia das provas. Todas elas deveriam possuir o mesmo peso, mas nem sempre é o que acontece. No caso do adolescente apreendido pela morte do médico carioca Jaime Gold [morto em 2015], fica bastante clara a condenação com base um prova única. Mesmo que as condições de reconhecimento fossem bastante desfavoráveis. Sobre este caso, produzi um parecer que pode ser útil.

    Ponte – Uma prática que vem se tornando comum é que policiais vazem fotos de suspeitos para grupos de Whatsapp perguntando aos cidadãos se reconhecem aqueles suspeitos por algum crime. Essa é uma prática que também pode levar à criação de falsas memórias e ao reconhecimento de inocentes como criminosos?

    Gustavo – Já no relatório de 2015 descrevíamos estas práticas. Inicialmente, a divulgação dos dados gerou algum tipo de surpresa, mas hoje são extremamente comuns. O problema não é a divulgação de fotos pelo WhatsApp. O problema diz respeito à quantidade e tipo de fotos mostradas à testemunha/vítima. Mostrar apenas uma foto tem sido a maior causa de condenações de inocentes nos EUA. Uma quantidade de 4 a 6 fotos de pessoas parecidas entre si seria o ideal em termos de divulgação. Caso seja mostrada apenas uma foto, teremos o procedimento mais sugestionável possível (show-up), onde a criação de falsas memórias é um risco bastante grande.

    Ponte – Um caso que vem sendo bastante comentado é a da jovem negra Barbara Querino, que foi condenada com base num reconhecimento que também começou pelo Whatsapp. A prática de fazer um reconhecimento prévio por fotografia, antes do reconhecimento formal, é correta?

    Gustavo – Não é correta de acordo com a psicologia do testemunho. Em verdade, a primeira questão que deve ser feita é a descrição das características físicas do suspeito pela testemunha/vítima. Apenas depois disso é que se deve organizar o conjunto de fotos. Esse reconhecimento prévio é nada mais do que o denominado show-up, mencionado anteriormente. Um dos problemas diz respeito à ausência de regramento dos reconhecimentos para a fase de investigação policial. Por outro lado, existe uma vantagem neste sentido: haveria a possibilidade de utilização imediata dos conhecimentos da psicologia do testemunho na fase policial. Isto seria possível com o treinamento daqueles atores jurídicos e posterior acompanhamento/fiscalização dessas práticas. Ainda me referindo à pesquisa realizada ao Ministério da Justiça, percebemos uma importante fase conduzida pelo policial militar. Via de regra é ele quem faz o primeiro reconhecimento, informal, antes mesmo de serem encaminhadas vítimas/testemunhas à Delegacia de Polícia. Esta fase também deveria ser pautada pelos conhecimentos científicos, pois as distorções geradas a partir daí tendem a ser repetidas nas etapas seguintes dos processos de criminalização. O que se sabe é que tanto para reconhecimentos, quanto para entrevistas com testemunhas/vítimas/suspeitos, os achados da psicologia do testemunho podem auxiliar a trazer informações em melhor qualidade e em maior quantidade à investigação. Além disso, na fase judicial, existe intolerável afastamento das melhores práticas da literatura.

    Ponte – Há estudos apontando dificuldade maior de reconhecimento entre pessoas de etnias diferentes?

    Gustavo – Sim, existem. No referido parecer para o caso do médico Jaime Gold, realizei estudo a este respeito. É muito mais difícil, pelo critério da familiaridade, fixar características específicas do rosto da pessoa, quando se trata de etnias diferentes. Por exemplo: quem não convive em uma comunidade com pessoas asiáticas, tenderá a pensar que são pessoas muito parecidas entre si. Após alguns meses/anos convivendo em um contexto de pessoas asiáticas, a tendência é que passemos a reconhecer diferenças importantes em termos de formato do rosto, olhos, nariz, etc. No caso do médico Jaime Gold, os dois adolescentes (o apreendido inicialmente e o que posteriormente confessou a morte) eram negros e muito parecidos entre si. O frentista do posto de gasolina próximo ao local do fato, testemunha-chave, era branca.

    Ponte – O que poderia ser feito para diminuir o risco de criação de falsas memórias e falsos reconhecimentos, tanto no inquérito policial quanto no processo penal?

    Gustavo – Existem duas estratégias importantíssimas. A primeira é o investimento em cursos, capacitações, treinamentos de todos os atores jurídicos envolvidos no processo de criminalização. Muito poucas horas costumam ser alocadas para os conteúdos de psicologia do testemunho nas Academias de Polícia (Militar e Civil), bem como nas Escolas de Magistratura e do Ministério Público. Quanto à disciplina de psicologia do testemunho, ela tem sido discutida apenas em espaços acadêmicos restritos, como a da pós-graduação. É necessário cada vez mais a aproximação entre teoria e prática, neste sentido. A antecipação da prova penal dependente da memória, desde que observado de forma plena a ampla defesa e contraditório constitucionais, perante um juiz de garantias, também poderia colaborar para diminuir a influência do tempo e a consequente curva de esquecimento da vítima/testemunha. Também é fundamental ter em mente que a ciência pode auxiliar, mas apenas ela não resolve o problema estrutural. Neste sentido, reformas como a realizada no Estado norte-americano da Virgínia não obtiveram os resultados esperados, conforme pesquisa publicada em 2013 por Brandon Garrett. A cultura investigativa anterior não pode ser substituída apenas por novas regras. É preciso ter em mente a necessária redução do próprio sistema penal enquanto input [entrada] de novas sujeições às distorções da memória existentes. Exemplo disso é a necessidade de se repensar a política de drogas, uma das grandes responsáveis pelo nosso encarceramento em massa, inclusive de inocentes, cujo retumbante fracasso é sistematicamente denunciado pelos setores acadêmicos críticos.

     

    Ponte – Como fica a questão dos policiais militares, que são os principais responsáveis por prisões no Brasil, e que frequentemente se encarregam eles próprios de fazer os reconhecimentos de suspeitos pelas vítimas?

    Gustavo – Este é um problema bastante difícil. Também pelo número de ocorrências parecidas com as quais os PMs lidam diariamente. Ao chegar no processo, é natural que muitos detalhes, por vezes importantes, tenham sido perdidos. A principal questão é saber como trabalhar com essa evidência. Além disso, pesquisas empíricas, como a de Maria Gorete de Jesus, demonstram a persistência fática da sepultada juridicamente “presunção de veracidade” dos testemunhos de PMs. Isto pode ser facilmente afastado através do conhecimento científico. Estudos recentes de Elizabeth Loftus demonstram que, mesmo em indivíduos portadores da rara síndrome da hipermemória (na qual as pessoas não esquecem detalhes ocorridos há muitos anos atrás), estão sujeitos à formação de falsas memórias quando perguntas sugestivas, por exemplo, são realizadas. Não há motivos para crer que com a memória do PM seria diferente. Esquecimento não diz respeito à ausência de vontade de lembrar, mas sim porque a informação ou os seus detalhes não estão mais acessíveis.

    Ponte – O artigo 226 do Código de Processo Penal prevê uma série de formalidades para o reconhecimento, como a necessidade de a vítima descrever o suspeito antes e de misturar o suspeito com pessoas parecidas. Ao mesmo tempo, contudo, o mesmo artigo sugere que essas formalidades não são obrigatórias, ao afirmar que só devem ser adotadas “se possível”. É preciso reformular esse item do CPP para obter reconhecimentos mais confiáveis e diminuir o risco de condenações de inocentes?

    Gustavo – Realmente, o Código de Processo Penal estabelece poucos critérios para a coleta do reconhecimento. Há questões sérias como o “se possível”, que deixa ao arbítrio do organizador da linha de reconhecimento colocar mais pessoas lado a lado com o suspeito. Ainda, a disposição acerca de haver “qualquer semelhança” entre as pessoas alinhadas é demasiadamente vaga e poderia permitir, em tese, que duas pessoas altas (mesmo sendo uma de etnia asiática e outra negra) fossem colocadas lado-a-lado. Talvez este seja o ponto mais urgente de reformulação do Código de Processo Penal. Apesar de ter participado das audiências públicas, na Câmara dos Deputados, sobre a reforma, infelizmente ainda não foram incorporadas regras mais precisas em relação ao reconhecimento pessoal e fotográfico. Enquanto não levarmos a sério os conhecimentos da psicologia do testemunho, seguiremos condenando inocentes. Pior: legitimando um processo penal digno de Kafka em função da baixa qualidade da prova penal dependente da memória produzida.

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