Em recuperação na enfermaria, Igor Melo de Carvalho, de 31 anos, mandou áudio para amigos e familiares. Ele foi baleado na segunda-feira (27/2) por um PM aposentado que “procurava por suspeitos” de um assalto
O jornalista Igor Melo de Carvalho, de 31 anos, que foi baleado por um policial militar aposentado na segunda-feira (24/2), deixou o centro de terapia intensiva do Hospital Getúlio Vargas, na zona norte do Rio de Janeiro, nesta quinta-feira (27/2) e agora se recupera na enfermaria na unidade, em melhora de seu quadro de saúde. Ele também já respira sem o auxílio de aparelhos, segundo os familiares.
Igor perdeu um rim em razão dos disparos que sofreu e chegou a ser mantido sob custódia no hospital, acompanhado por policiais militares e sem poder ter a família ao lado.
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“Eu estou bem, graças a Deus. Estou me recuperando, vou sair dessa. Só quero agradecer por vocês por tudo o que fizeram por mim. Vocês sabem que eu não tive culpa de nada, que a culpa não foi minha, mas, infelizmente, ser preto no Brasil, parece que é nascer com uma marca para sofrer. Mas eu vou passar por cima disso tudo, e a gente vai fazer um churrasco maneiro lá no Juramento. Amo vocês”, disse Igor em um áudio encaminhado pela esposa a um grupo de familiares. Na quarta-feira (26/2), ele haviam feito um ato em frente ao hospital para pedir justiça por Igor, injustamente acusado de roubo.
PM aposentado ‘procurava por suspeitos’
Igor foi baleado quando voltava para casa na garupa de um mototáxi que pediu por um aplicativo, após fazer um “bico” de garçom em um bar. No caminho, o PM da reserva Carlos Alberto de Jesus, que procurava pelos suspeitos de um suposto assalto contra sua esposa, Josilene da Silva Souza, emparelhou o carro junto à moto e deu dois tiros no jornalista, derrubando ele e o condutor.
Josilene afirmou à Polícia Civil ter reconhecido Igor e o motociclista de aplicativo Thiago Marques Gonçalves, de 24 anos. O condutor sofreu escoriações leves ao cair com a moto e foi levado à Cadeia de Custódia de Benfica, onde passou por audiência de custódia e foi solto na tarde desta terça — na mesma ocasião, foi determinado o relaxamento da custódia de Igor, para ter agora os familiares ao lado.
Em entrevista à CBN, o delegado Leandro Gontijo afirmou que, se comprovada a inocência de Igor, o policial poderá responder por dupla tentativa de homicídio. A esposa dele também poderá ser eventualmente incriminada, já que deu causa ao ataque e reiterou o falso testemunho do marido.
O agressor e a mulher foram embora sem prestar socorro e também sem acionar a Polícia Militar. Igor conseguiu enviar mensagem aos colegas do bar onde trabalha, que lhe prestaram os primeiros socorros.

‘Racismo do início ao fim’
Na versão de Carlos e da esposa, ela teria sofrido um assalto à mão armada por dois homens em uma motocicleta em uma rua do bairro da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, por volta das 23h do domingo (23/2). A mulher teria então pedido ajuda ao marido, quando saíram em busca dos suspeitos. Foi nessa altura em que encontraram Igor e Thiago. O PM alegou que, inicialmente, teria dado uma ordem de parada aos dois e só atirou em reação ao passageiro da moto, que teria sacado uma arma.
A suposta arma não foi encontrada com Igor ou Thiago. Também não foi achado com eles o telefone celular que a mulher disse ter tido roubado. Além disso, os funcionários e as imagens das câmeras de segurança do Batuq, bar onde Igor trabalhava naquela noite, desmentem a versão do PM e da esposa: o jornalista permaneceu em serviço o tempo todo e só deixou o local às 1h16 da segunda. Há ainda o registro da corrida de motocicleta solicitada por ele no aplicativo ao final do expediente.
“Essa situação é racismo do início ao fim, na questão de atirar no meu primo sem sequer perguntar, no reconhecimento fotográfico que fizeram dele, que parece que deram uma foto do RG dele para essa senhora reconhecer. Então, é mais uma vez esse reconhecimento fazendo vítimas negras, é mais uma vez um homem negro saindo do trabalho e sendo confundido com um assaltante”, disse, à Ponte, Pâmela Carvalho, que é prima do jornalista, além de historiadora e educadora popular.
Genocídio da população negra
O policial que atirou em Igor também é negro. Para especialistas ouvidos pela Ponte, isso não minimiza, no entanto, a dimensão racista do caso, que aparece em vários outros episódios de violência contra pessoas negras cometidos por agentes de Estado ou civis em busca de “justiçamento”.
“O racismo é uma ideologia. E como ideologia, ele vai moldar certos comportamentos: no caso das forças de segurança, ele coloca a ideia de que todo negro é um tipo suspeito. Então, a agressão ou morte de um jovem negro por um policial a partir da ideia que ele é potencialmente suspeito é racismo, independemente de quem pratica”, explica o jornalista e pesquisador Dennis de Oliveira, autor de Racismo Estrutural: Uma perspectiva histórico-crítica, entre outros livros.
“O racismo, como componente estrutural e ideológico, não está ligado a quem pratica. Inclusive, a própria Lei Caó, a lei 7.716/1989, que tipica o crime de racismo, não fala em momento algum ser uma lei somente para pessoas brancas. É uma lei para quem pratica racismo. A ideologia molda comportamentos também das pessoas que fazem parte daquele grupo discriminado”, complementa.
Coordenador executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Fransérgio Goulart concorda que o caso de Igor expressa a institucionalização da violência contra negros. “Esse caso materializa mais uma vez que há um genocídio da população preta a partir da política de segurança pública do Rio. E essa ideia de ‘justiçamento’ parte desse processo histórico que a sociedade branca e colonizadora construiu: com relação aos corpos pretos, eu posso fazer qualquer tipo de ‘justiçamento’. O corpo que pode sofrer dor, que pode ser morto é o preto ”, explica.
Já a advogada popular Rhaysa Ruas, que é também secretária-executiva do Fórum Popular de Segurança Público do Rio de Janeiro (FPOPSEG), destaca que a lógica de “justiçamento” e a política de segurança pública do Rio carregam um caráter extrajudicial, por avalizarem execuções sem qualquer garantia legal.
“É uma política ainda pior do que nos países onde existe pena de morte, porque, onde tem, existe ainda um devido processo legal antes de a pessoa ser executada. Aqui, nem isso”, diz Rahaysa. “A pessoa pode ser baleada só por ser negra e ser confundida com alguém que tenha roubado um celular. É indignante.”
A Ponte tentou por duas ocasiões um posicionamento da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro (SSP-RJ), sob gestão Cláudio Castro (PL), mas não obteve retorno.