Depois de passar 28 dias preso por tráfico sem drogas, por causa de ‘lapso’ da polícia e da Justiça, Rogério Xavier Salles deixa prisão; Corregedoria investiga delegado
“Meus clientes, estou de volta no mesmo farol”, anunciou Rogério Xavier Salles, 32 anos, ao retornar na tarde desta quinta-feira (26/9) para a Avenida Internacional, no bairro Santo Antônio, em Osasco (Grande São Paulo), onde ganha a vida vendendo balas para os motoristas que param no semáforo. Não fazia nem 24 horas que o vendedor havia deixado uma cela no raio 3 do CDP (Centro de Detenção Provisória) 1 de Osasco, onde passou 28 dias preso por uma falsa acusação de tráfico de drogas, motivada pelo “lapso” de um delegado, um promotor e um juiz.
Rogério, um ambulante negro, foi preso em 28 de agosto, por dois policiais militares, Evelyn Daniela Bressain da Silva e Thiago Barreto Madureira, da 1ª Companhia do 14º Batalhão de Polícia Militar Metropolitano, que afirmaram ter apreendido com o vendedor uma sacola contendo 16 pinos de cocaína. Ele nega que estivesse com a sacola. No mesmo dia, o laudo de uma perícia preliminar do IC (Instituto de Criminalística), da Polícia Civil, constatou que o material apreendido não era cocaína, informação confirmada duas semanas depois pela perícia definitiva. O laudo foi ignorado pelo delegado Flávio Garbin, do 8º DP de Osasco, que registrou o resultado como positivo para cocaína — mais tarde, Garbin escreveria nos autos que havia cometido “um lapso”.
Na audiência de custódia, o promotor Rodrigo César Coccaro e o juiz Carlos Eduardo D’Elia Salvatori mantiveram a prisão do vendedor, sem mencionar o resultado negativo do laudo. Até o momento, o delegado é o único a ser investigado pela prisão sem provas de Rogério: a Secretaria de Segurança Pública do governo João Doria (PSDB) informou que “a Corregedoria da Polícia Civil instaurou um procedimento administrativo para investigar todas as circunstâncias relativas aos fatos”.
A mãe de Rogério, a também vendedora Maria Inês Xavier, 54 anos, afirma que a família pretende ir atrás, na Justiça, de uma indenização. “Não tenho medo de lutar pelos meus filhos. Por eles sou capaz de tudo. Vamos atrás, sim”, diz.
Dia de liberdade
Sabendo que Rogério seria libertado nesta quarta-feira (25/9), a reportagem da Ponte chegou cedo à casa da mãe de Rogério, Maria Inês Xavier, localizada no Jardim das Bandeiras, bairro pobre de Osasco. Demonstrando tranquilidade e equilíbrio, enquanto contava sua história e de seu filho, Inês descascava uma mandioquinha para complementar a sopa de legumes que estava a fazer com auxílio de seu marido, o motorista Ricardo Souza, padrasto de Rogério.
Entre uma frase e outra, a mãe de outros quatro filhos solta um “eu não vejo a hora”. Só deixava a ansiedade de lado quando falava da situação imposta a seu garoto. “O que fizeram com meu filho foi uma injustiça muito grande. Os policiais que fizeram isso não tiveram noção do que estavam fazendo. Você acha que alguém vai vender drogas no farol? Não tem lógica. Na delegacia o trataram como um animal”, reclamou.
Enquanto a água esquenta no fogão para um café, é a vez de Ricardo levantar a bola do enteado. “Ele é um bom vendedor. Tem jeito para a venda. É comunicativo. Gosta de trabalhar, já que antes de vender balas me ajudava a descarregar caminhão. Por onde passo entrego currículos dele na esperança de conseguir algo melhor”, menciona o tímido padrasto.
Quarenta minutos de conversa e dona Maria Inês pede licença. Avisa que vai ao quarto se arrumar para seguir em direção ao CDP . Pouco depois ela volta e segue junto à reportagem até o local. No entanto, já dentro do carro e percorrido menos de um quilômetro, recebe uma ligação de seu filho mais novo, que pede a ela para voltar. É que Rogério tinha chegado e estava, enfim, de volta ao Jardim das Bandeiras.
Ao descer do carro, já aos abraços e beijos com seu filho, a até então forte mulher deixa escorrer lágrimas sob os óculos. O coração aliviado lhe permite sorrir. Os vizinhos vão chegando, assim também como o irmão, a irmã e a sobrinha de cinco anos de Rogério. A menina pula nos braços do tio. É muita alegria para rua estreita do bairro. A menina só deixa os braços do tio dali a pouco, quando a buzina da perua escolar a chama para entrar na van e seguir para a escola, já devidamente uniformizada.
Após saudar sua família, Rogério passa a contar sobre o dia da prisão. “Estava vendendo minhas balas e a PM mandou eu encostar. Perguntaram o que eu tinha na mochila. Disseram que haviam recebido uma denúncia anônima de que eu estava vendendo drogas. Respondi que era trabalhador. A policial feminina colocou a mão em um buraco [na calçada] e achou a droga. Deus sabe de todas as coisas, eu não estava fazendo nada de errado”, diz o rapaz. Nessa altura, ainda nem sabe que só foi libertado porque as perícias para o material encontrado na sacola deram negativo para drogas.
Mesmo com o dia chuvoso, Rogério deixou o CDP vestindo apenas uma camiseta simples, bermuda e chinelo, e com alvará de soltura em mãos, mesmo traje em que a maioria dos homens que ganham a liberdade deixam para trás as grades.
‘Cheiro de cadeia’
Era para Rogério ter saído muito antes da prisão. A sua liberdade provisória havia sido pedida em 11 de setembro pelo promotor Daniel Magalhães Albuquerque Silva, que pela primeira vez chamou atenção, nos autos do processo, para o laudo do IC que havia dado negativo para cocaína. O problema é que, antes da prisão por tráfico de drogas sem drogas, Rogério cumpria pena em regime aberto por conta de um roubo praticado em 2016, quando levou R$ 32 de uma jovem “armado” com dois pedaços de cano amarrados que tentavam imitar uma arma de fogo. A nova prisão, mesmo sem provas, bastou para revogar o regime aberto que tinha antes e mantê-lo preso.
A defensora pública Juliana Gonçales Miele precisou entrar com um pedido liminar de habeas corpus para garantir a liberdade de Rogério, afirmando que o vendedor estava “preso por ordem do juízo da execução já tendo sido reconhecida a nulidade do flagrante”. “O caso, inclusive, foi noticiado pela mídia”, afirmou a defensora no pedido, referindo-se à reportagem da Ponte. O pedido foi aceito pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Durante um abraço em seu irmão caçula Júnior, 18 anos, Rogério lembra como o passado de ex-presidiário nunca deixou de persegui-lo. Primeiro na busca por emprego. “Como já fui preso, eu saio para entregar currículos e não encontro. Por isso fui vender balas no farol”, explica. E depois na decisão do juiz na audiência de custódia que decidiu mantê-lo preso, agora de forma injusta: “O juiz falou que devido ao meu histórico ele decidiu pela prisão preventiva”.
Quando a reportagem deixava a casa de sua mãe, Rogério, que tem uma residência própria num bairro vizinho, afirmou que só queria trabalhar e seguir sua vida. “Tenho medo dos policiais voltarem, mas preciso trabalhar. Já errei, errar é humano, mas persistir é burrice. Você acha que um traficante teria um celular como esse meu?”, afirma, apontando para o aparelho que segura, de um modelo muito antigo.
Quando a mãe fala em buscar reparação judicial pelo erro da Justiça, Rogério só balança a cabeça positivamente, volta-se para o banheiro e comenta: “Agora só quero tomar um banho e tirar esse cheiro de cadeia”.
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