Com gritos de ‘se o Papa fosse mulher, o aborto seria legal’ e ‘direito ao nosso corpo, legaliza o aborto’, manifestantes marcharam em SP
Após a aprovação da legalização do aborto na Câmara dos Deputados na Argentina, impulsionada pela luta nas ruas, mulheres ocupam as ruas de São Paulo no ato “É hoje nossa hora de legalizar o aborto”, que teve início às 17h na Praça dos Ciclistas, na avenida Paulista. Cerca de 2 mil pessoas participaram da marcha.
Para Aline Oliveira, 22 anos, uma das organizadoras da marcha, a pressão para legalizar o aborto no Brasil deve vir das ruas. “Eu acho que ter a força e a representação das argentinas, ver a chance de vencer o Congresso e o lado conservador, mostra que é possível. É importante estar junto com a força delas. Do mesmo jeito que o embate lá foi difícil, aqui também será, mas é super possível se massificarmos os nossos atos”, diz Aline.
A enfermeira Karen Izitocadi, 40 anos, reforça que as manifestações terão um papel importante. “O movimento precisa se unificar e ganhar mais forma, aproveitar esse momento em que o assunto está na mídia. A pressão só virá das ruas, nem que tenhamos que tacar fogo em tudo para conseguir alguma coisa”.
Às 19h, o ato começou a descer a rua da Consolação no sentido centro. Entre os gritos entonados pelas mulheres que puxavam a marcha, estavam “O corpo é nosso, é pela vida das mulheres, legaliza”, “Se a gente se unir, o patriarcado vai cair”, “Que contradição, aborto é crime, homofobia não, legaliza”, “Se o aborto não passar, a mulherada vai parar” e “Cadê o homem que engravidou? Por que a culpa é da mulher que abortou?”.
A marcha ocorreu no dia em que se completam 100 dias sem a vereadora Marielle Franco, executada em 14 de março no Rio de Janeiro, junto com o motorista Anderson Gomes. Ela foi lembrada por diversas manifestantes, em camisetas, cartazes e falas, como as da estudante Maressa Machado, 24 anos. “Pensar em Marielle é pensar que a luta precisa se estender e precisa ganhar mais visibilidade, ela é uma fonte dessa inspiração a continuar lutando. A legalização do aborto vai vir a longo prazo, depois de muito diálogo. As ruas podem impulsionar essa vitória, esse ato é fruto disso já. A gente pode se inspirar nas argentinas, mas temos que levar em consideração que o Brasil é um caso à parte, a religião é muito forte.”
Além das reivindicações pelo fim da criminalização e pela legalização do aborto seguro, o objeto do ato era propagar aborto enquanto saúde pública: todos os dias 4 mulheres morrem no Brasil vítimas de abortos ilegal e inseguro, dizia um dos panfletos entregues pela organização, com dados do Ministério da Saúde de 2016.
A estudante Izabela Cristina Correia, 21 anos, que já realizou um aborto, destacou a importância de falar de aborto enquanto saúde pública. “O aborto é uma questão de classe e cor, as mulheres brancas que têm dinheiro conseguem fazer aborto seguro hoje, elas pagam, mas é seguro. Já a gente, mulheres pretas, morrem pra fazer. Não temos condições de criar o filho e muitas vezes o pai some. Isso aconteceu comigo, eu abortei porque o pai sumiu. Eu tive privilégios em diversas questões para fazer, mas a maioria das mulheres não tem, não tem essa oportunidade e por isso morrem. A gente tem que discutir isso, falar para as pessoas da importância do aborto, só assim teremos uma primavera feminina como tivemos em 2015″, relata.
O Coletivo Régia, que espalhou cartazes com os dizeres “sem útero, sem opinião” pelos muros e postes do trajeto do ato, explicou à Ponte a motivação do cartaz, que exclui mulheres trans e travestis do diálogo do aborto. “Uma coisa que eu te faço refletir, a mulher trans que está se transformando trans agora com 30 anos, por viver como homem nesses 30 anos, recebendo a mesma educação que os homens receberam, elas passaram pela mesma discriminação que a gente passou desde criança? O machismo está desde criança. Será que uma pessoa que chegou agora tá falando as coisas certas, tá do lado certo, ou só tá querendo transparecer uma imagem que não é real por não ter aquela vivência?”, pergunta a integrante do coletivo Victória Rocha, 21 anos
Por volta das 20h30, em frente à Câmara dos Vereadores, o ato deu espaço a uma performance artística. Com as mãos sujas de tinta vermelha, representando o sangue, uma das atrizes interpretava uma mulher que queria abortar, mas era censurada pela religião, pela moral e pela constituição. O grupo se reuniu e preparou a encenação para o ato, como contou a atriz Tatiane Lima, 22 anos.
“A ideia desde o início era que a gente tivesse uma mulher que, por várias razões, decidisse abortar e fizemos três forças para representar a igreja, a moral e a Constituição em cima dela, pressionando para que ela tomasse uma decisão, criminalizando o que ela quer fazer e ao mesmo tempo não dando uma saída para ela. É fundamental tratar o aborto como saúde e não como criminalidade. Uma mulher não está cometendo um crime, ela está escolhendo o que quer fazer com o corpo dela. Rola um tabu e um desconhecimento total do próprio corpo”, explica Tatiane.
Trinta minutos depois, às 21h, a manifestação chegou ao fim com a frase “Marielle presente, agora e sempre”.